Francisco das Chagas de Albuquerque
Doutor em Teolgia Sistemática (Gregoriana, Roma, 2009). Professor de Teologia na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Contato: albuquerque.fc.86@gmail.com
Resumo: A relação entre catolicismo e patriotismo é uma questão relevante, hoje, sobretudo considerando a significação original deste conceito conforme a doutrina cristã e o ensinamento social da Igreja na contemporaneidade. Este artigo trata do papel desempenhado por D. Duarte Leopoldo e Silva, primeiro arcebispo de São Paulo (1906-1938) através da análise de suas “conferências patrióticas”, que foram proferidas por ocasião do Centenário da Independência. Nessas preleções mostra o patriotismo do clero na sociedade brasileira, destacando os serviços por ele prestados na esfera sociopolítica. A atuação do arcebispo realiza-se no contexto da “Restauração Católica” (1920-1930). Para se alcançar esse objetivo serão considerados: conceituação de patriotismo na tradição cristã, apresenta-se em seguida um panorama do movimento da restauração que caracterizou do catolicismo brasileiro, especialmente naquela década; nesse quadro situa-se a exposição do discurso patriótico do prelado. O percurso mostrará que a instituição eclesiástica se afasta do fim de sua existência e do compromisso pelo bem comum, negando o significado de patriotismo, à medida que se preocupa em garantir sua presença na sociedade como instituição religiosa aliando-se ao poder temporal.
Palavras-chave: Patriotismo; Clero brasileiro; D. Leopoldo; Poder temporal; Bem comum
Abstract: The relationship between Catholicism and patriotism is a relevant issue today, especially considering the original meaning of this concept according to Christian doctrine and the social teaching of the Church in contemporary times. This article deals with the role played by D. Duarte Leopoldo e Silva, first archbishop of São Paulo (1906-1938) through the analysis of his “patriotic conferences”, which were given on the occasion of the Centenary of Independence. In these lectures he shows the patriotism of the clergy in Brazilian society, highlighting the services they provide in the socio-political sphere. The archbishop's activities took place in the context of the “Catholic Restoration” (1920-1930). To achieve this objective, the following will be considered: conceptualization of patriotism in the Christian tradition, then an overview of the restoration movement that characterized Brazilian Catholicism, especially in that decade, is presented. Within this framework is the exposition of the prelate's patriotic speech. The journey will show that the ecclesiastical institution moves away from the end of its existence and the commitment to the common good, denying the meaning of patriotism, as it is concerned with guaranteeing its presence in society as a religious institution allying itself with temporal power.
Keywords: Patriotism. Brazilian clergy; D. Leopoldo; Temporal power; Common good
Um esclarecimento prévio tendo em vista que o texto é proposto a um periódico de Teologia. Considerando a importância da disciplina História para o quefazer teológico, um estudo que se inscreve nessa área do conhecimento, proporciona a interdisciplinaridade na pesquisa teológica. Efetivamente, este trabalho trata da relação da religião católica com a política, com o poder temporal na Primeira República. Neste sentido, mais especificamente, a abordagem se situa cronologicamente no período da história da Igreja Católica no Brasil (1920-1930), que historiadores denominam “Restauração Católica”. O espírito restauracionista, no entanto, remonta aos primeiros anos do período aos primeiros anos após a promulgação da primeira constituição da República brasileira (1891). Outro esclarecimento se refere ao emprego dos termos “catolicismo” e “patriotismo”, haja vista que, na história recente e atual da política e da relação desta com a religião, verificam-se fatos e direcionamentos com resultados negativos para ambos os lados. Quanto ao primeiro termo, ele não se presta para expressar adequadamente a diversidade de visões, a pluralidade de expressões da fé no âmbito católico, pois se constatam manifestações de organizações portadoras de diferentes visões eclesiológicas e respectivas condutas e práticas religiosas. Isso se torna mais evidente nos dias de hoje. Por isso, neste artigo emprega-se o termo “catolicismo” referindo-se não à Igreja como Povo de Deus, em sua diversidade e sentido amplo, mas à instituição eclesiástica representada pela sua hierarquia e intelectuais leigos atuantes, presentes nos campos sociopolítico e cultural. O segundo termo, empregado atualmente sob as variantes patriota e patriótico, por sua vez, encontra-se também presente em ambientes de posições contrapostas e tem sido empregado com as mais diversas motivações ideológicas e políticas.
Neste texto, no entanto, serão utilizados os dois vocábulos para se manter a referência das realidades históricas em questão. Trata-se de identificar a autocompreensão do catolicismo brasileiro, relativamente à sua participação nos assuntos sociopolíticos e culturais da sociedade brasileira no arco dos anos 1920 a 1930, mas considerando-a na esteira da posição a Igreja a partir da instituição da República. Nessa década ocorreram fatos e iniciativas no campo eclesiástico, como intenso movimento de reaproximação da Igreja do Estado brasileiro, a fim de garantir a visibilidade e poder do catolicismo na sociedade. Casali (1995, p. 76-90) usa a formulação “Restauração Católica”, R. Azzi (1977, p. 63) por sua vez utiliza a forma “restauração”, para designar o movimento do episcopado brasileiro de reaproximação do poder político central do país: “Durante o decênio 1920-1930, o episcopado brasileiro, com a colaboração do clero e laicato, procurará de fato criar uma nova imagem da Igreja Católica, através de uma série de iniciativas de caráter social”. Os representantes da cúpula do catolicismo, tanto clérigos como leigos, apresentavam a Igreja com uma nova roupagem.
Deve-se reconhecer, nesse período da história do catolicismo brasileiro, o protagonismo de D. Leme[2], arcebispo do Rio de Janeiro, Capital do Brasil, a partir de 1923, mas que havia traçado um projeto de recuperação a influência do catolicismo no Brasil desde quando era arcebispo do Recife, nomeado em 1916. Por outro lado, houve outros prelados que também se destacaram na implementação do projeto restauracionista, entre eles D. Duarte Leopoldo e Silva, cuja obra de caráter historiográfico O Clero e a Independencia: conferencias patrióticas[3] (1923), analise-se neste artigo. O livro versa sobre o papel do catolicismo na construção da sociedade brasileira, chamando a atenção para a patriótica atuação do clero em diversos espaços da sociedade nacional. A temática será proposta através dos seguintes passos: conceituação de patriotismo, seguida de uma visão do projeto da restauração e consequente posição do catolicismo brasileiro no período da Primeira República e mais precisamente no decênio 1920-1930, identificando-se o quadro geral da religião católica no período em questão. Dados esses passos, propõe-se a posição de D. Leopoldo conhecida através da análise da obra mencionada. A partir desses elementos propõe-se uma aproximação da função do catolicismo, ou da Igreja instituição, no Brasil, na comemoração “Centenário da Independência da pátria brasileira”. Nota-se que sua posição se afasta do compromisso de sua missão religiosa fundamental, bem como da efetiva busca bem comum. Pois à medida que se preocupa em garantir a credibilidade do catolicismo, ou seja, da Igreja na sociedade como instituição religiosa diante dos representantes políticos nacionais, compromete-se com poderes políticos e enfraquece sua tarefa evangelizadora. Desta forma, ela se torna uma instituição ligada à elite, com o risco, segundo Gramsci, de gerar duas “religiões”, uma popular e outra da elite.[4] O significado tradicional de patriotismo assumindo pelo cristianismo católico segue válido e atual, sobretudo considerando o chamamento e as orientações da Doutrina Social da Igreja.
O termo patriotismo reflete um sentimento de ligação com a pátria, mas implica algo mais que não se reduz a mero afeto, pois remete ao conceito de cidadania, que por sua vez implica os âmbitos sociopolítico e econômico. O conceito é geralmente definido como o amor que o cidadão nutre para com sua pátria. Segundo Schneider (1995, p. 44), no pensamento cristão “o patriotismo é visto desde longo tempo com um dever e ao mesmo tempo como uma virtude”. Tal ideia foi assumida pelo Concílio Vaticano II, na Constituição Pastoral Gaudium et spes (GS). Conforme essa constituição (GS 75) os sujeitos do patriotismo devem ter uma relação de comprometimento com a pátria, mas abertos aos outros povos: “Os cidadãos cultivem com grandeza de alma e fidelidade o amor à pátria, mas sem estreiteza de espírito, isto é, de tal maneira que se interessem sempre ao mesmo tempo pelo bem de toda a humanidade, que abraça raças, povos e nações, unidos por toda sorte de laços”. Frente às vicissitudes históricas do cristianismo, especificamente em sua institucionalidade, como é o caso da Igreja católica, impõe-se examinar sua relação com o poder temporal, para então compreender e ater-se fiel ao significado original do conceito de patriotismo.
Seguindo estudo de Schneider (1995), do ponto de vista da tradição cristã, com raízes na patrística, o patriotismo como amor à pátria implica dois aspectos: como um dever, mas é também uma virtude. No entanto, passando-se ao plano escatológico, o amor à “pátria celeste” tem a primazia sobre o amor à “pátria terrena”. A afirmação do Concílio Vaticano II, acima referida, emprega o termo pietas,[5] que significa em primeiro lugar “atenção”. Ou, nas palavras do autor (1995, p. 45), denota: “a respeitosa dedicação e carinho para com os pais, aquela mesma atitude com a qual se ocupa o quarto mandamento do decálogo”. O termo, no entanto, aplica-se de forma mais ampla, ou seja, o vocábulo pietas se estende a outros familiares, a outras pessoas. Ele tem uma maior abrangência que a referência particular à pátria ou à comunidade, país, ambiente cultural. Abre-se à universalidade.
Neste sentido, a pessoa é tributária desses valores, pois eles possibilitam o desenvolvimento do indivíduo da própria comunidade. No ambiente romano, por sua vez, pietas era um dos valores basilares da organização da vida social, ganhando o significado de “dedicação e uma atitude mútua”. Nessa relação, conforme Schneider (1995, p. 45-46), existe também “uma ‘pietas’ demonstrada pelo ‘pater familias’ em relação aos seus, e uma ‘pietas’ que os homens podem esperar dos deuses”. O significado de pietas cuja evolução leva à atual compreensão de patriotismo deita suas raízes na cultura romana, de onde também o cristianismo recebeu influência cultural.
Deve-se dar atenção também ao problema do desvirtuamento do sentido de patriotismo. Note-se, apenas a título de breve indicação da presença do tema na filosofia moderna, que chamou a atenção para o problema mudança na orientação do conceito. Ainda conforme Schneider (1995),[6] na história recente e contemporânea, o patriotismo foi transformado e como que expurgou o sentido de amor e respeito ao próximo, acabando no “nacionalismo”. Leibniz refletiu sobre o conceito de patriotismo introduzindo importante nuance. Para o filósofo, o exercício da liberdade e as transformações ocorridas na transmissão da noção de patriotismo levaram a uma identificação de patriotismo com nacionalismo. Na Europa antiga, foi-se substituindo patriotismo por uma consciência nacional, afastando-se do sentido de patriotismo que, num primeiro momento, tinha um significado humanista orientado ao bem comum. O nacionalismo se torna um problema para a relação de uma nação com as outras. Na verdade, o nacionalismo surge de uma acentuação exagerada do amor à pátria de modo a identificar outros países como adversários ou inimigos. Em outras palavras, o patriotismo como valor encarnado pelo/a cidadão/ã é bom, enquanto o nacionalismo, ao contrário, é uma coisa má, enquanto afastamento e fechamento a outras nações. Há uma diferença de natureza gradual entre os dois.
Por outro lado, considere-se que a comunicação e assimilação desse conceito, sofreu, historicamente, mutações que deixaram fora aspectos importantes, ou seja, apelos relevantes para a convivência humana. No grego encontra-se o termo “eusébeia” que corresponde a pietas cujo significado é “amizade”, que é devida tanto aos deuses como aos homens. O conceito situa-se no mesmo nível estrutural que a pólis. Já o termo “patriótes”, na antiguidade grega, está relacionado com a origem de alguém, com aquilo a que a pessoa pertence, com a pátria. O termo se aplica àquele que não tem cidadania, ou seja, não integra uma pólis, que possui “políteuma”, sendo usado, portanto, para se falar de escravos e animais.
Essa noção de patriótes, porém, está em concordância com a concepção de pátria dos romanos. Pois, em sentido mais estrito, o membro do povo romano não se entrega à pátria, não se sacrifica pela pátria. Mas ele se entrega, salienta Schneider (p. 46), à res publica, ou seja, aos interesses comuns do povo. Também na época medieval se deu atenção pietas. Mas Tomás de Aquino não assume o significado republicano da pietas dos romanos. Já no tempo moderno, com Leibniz, o conceito de patriotismo ganha importante nuance. Para o teólogo o exercício da liberdade e as transformações ocorridas na transmissão da noção de patriotismo chega-se a uma identificação de patriotismo com nacionalismo. Na Europa antiga foi-se substituindo patriotismo por uma consciência nacional. Afastando-se do sentido de patriotismo que, num primeiro momento, tinha um significado humanista, orientado o bem comum.
Quanto ao catolicismo, etimologicamente o vocábulo significa universal no sentido de que a mensagem do cristianismo seria levada a todos os recantos do mundo e a todos os povos. Mas, como se sabe, historicamente o conceito de universal sofreu transformação, não seria mais a mensagem a ser proposta a diferentes povos a partir de suas culturas, mas uma forma de encarnar o Evangelho é que passou a ser universal, aquela encarnada em uma cultura (a europeia, ocidental). Os primeiros portadores da pregação do cristianismo, sob a organização da Igreja católica, aportaram nas terras de Vera Cruz trazidos pelos colonizadores portugueses, em 1.500. Vigorava então o regime de padroado, de modo que ao a Igreja confiava ao rei de Portugal a missão de transmitir a doutrina cristã aos habitantes das terras conquistadas. Esse regime utilizava-se da religião para assegurar a dominação dos povos nativos. Transforma a mensagem cristã em instrumento de submissão dos indígenas aos colonizadores. Perdera-se o sentido católico do evangelho que deve ser encarnado em cada cultura, como fundamento e inspiração para a construção do bem de todos.
Uma vez assimilado o significado de patriotismo e identificado o desvirtuamento deste conceito, pergunta-se: qual a relação do catolicismo brasileiro, no movimento da restauração, com o patriotismo? Ou ainda: como a Igreja entende e expressa o patriotismo na relação institucional o Estado, com a sociedade civil e os âmbitos político e cultural? Qual foi a sua tendência nos vinte do século passado? Os esforços da restauração da influência católica no Brasil, nesse período, remontam a Giuseppe Melchiore Sarto (1835-1914), o Papa Pio X (1903-1914), cujo lema era Instaurare Omnia in Christo. A restauração de todas as coisas em Cristo, define o que a Igreja deve buscar em toda a sua ação como instituição no mundo moderno. Crítico dessa ideia, Montenegro (1972, p. 158), denuncia que a ideologia que esse lema encerra assumida no pontificado de Pio X, tem como intenção trabalhar pela “vitória da religiosidade sobre o laicismo, sobre a secularização”. O autor considera que essa noção de restauração implica uma “redução” ideológica. Sustenta que a razão dessa tentativa de recuperar a religiosidade na vida das pessoas e da sociedade provém do distanciamento da Igreja em relação ao imanente. No mundo dito moderno estava então em curso uma forte dessacralização da cultura que afetava as instituições e a sociedade em geral. No Brasil, a Igreja se sentia compelida a lutar para se reaproximar do Estado em virtude da declaração de laicidade estabelecida a partir da Proclamação da República (15-11-1889).[7]
A ideia da recuperação do lugar da religião católica na sociedade aflora, de forma mais organizada, vinte anos depois, ganhando maior força objetiva nessa década. Tal recuperação consistia na busca de reaproximação entre Igreja e Estado, que agora conta com articulação mais consistente da proposta, a partir de lideranças do episcopado e homens letrados recém-convertidos ao catolicismo, como Jackson de Figueiredo (1918), que fundou o Centro Dom Vital e a revista A Ordem, e Alceu Amoroso Lima (1928), que foi diretor da Ação Católica no Brasil.
Um resumo das motivações da busca pela restauração encontra-se no documento que transmite a posição do catolicismo sobre a “Restauração Católica”. A Carta Pastoral por ocasião do Centenário da Independência do episcopado brasileiro proporciona uma visão geral do pensamento eclesiástico naquele momento. Veja-se, na seguinte passagem, recolhida por Lustosa (1991, p. 34), o que afirmaram os bispos no referido documento pastoral a respeito da visão da Igreja diante do Estado.
[...] se o Brasil reconhece na fé católica um dos sinais de sua nacionalidade, e um dos principais fatores de sua grandeza, como disse o nosso primeiro Embaixador junto ao Vaticano, de estranhar seria que não fosse de benevolência a atitude dos poderes públicos para o catolicismo. Proceder de modo contrário seria cerrar os olhos às lições da experiência e do saber.
Verifica-se o interesse de ambos os lados para se voltar a uma cooperação entre os poderes civil e religioso, ou melhor, entre o Estado brasileiro e a Igreja católica, que pretendia que o catolicismo fosse a religião oficial do país, mantendo os privilégios que tal lugar poderia garantir-lhe como instituição. Em que pese a Constituição de 1891 definir a laicidade do Estado Brasileiro, predominava entre os intelectuais católicos, conforme afirma Lustosa (1991, p. 43), a ideia de associação entre o laicismo político e o ateísmo social:[8] “Para os católicos, esse tipo de laicismo político bloqueia as possíveis ligações com o religioso e situa o Estado no plano inclinado do ateísmo social”.[9] Esses dados históricos permitirão, como se verá mais adiante, uma análise mais consequente das conferências de D. Leopoldo.[10]
O já mencionado historiador (1990, p. 19) identifica a visão da “teologia política” do contexto da recém proclamada república brasileira, onde crescia o “liberalismo político-religioso”. Temia-se o risco de o Estado vir a tornar-se antirreligioso e não reconhecer a religião católica como “verdadeira e soberana”, transtornando os projetos da hierarquia. Em outras palavras, se o Estado declarasse o pluralismo religioso no país, o catolicismo liberal perderia a possibilidade de afirmar-se como força sociorreligiosa, para garantir a influência da religião católica na política e consequentemente na estrutura do Estado. Esse risco temido leva a hierarquia eclesiástica a usar outra linguagem marcando a diferença entre esse documento e a Carta Pastoral de 1890, esclarecendo: “[...] é um documento escrito em uma linguagem mais direta e pessoal, lançando mão de recursos afetivos, capazes de dobrar a rigidez disciplinar do velho chefe militar e explorar a sua fragilidade emocional”.
Diante desse cenário, apesar de se distanciar da ideologia liberal, a Igreja no Brasil, ainda segundo com Lustosa (1991, p. 43), procura uma aproximação, como pragmatismo político, do centro de poder político. Ela mantinha coexistência pacífica “com grupos liberais”, pois pretendia alcançar seus membros através da “evangelização e conversão”. Essas considerações remetem ao pensamento do arcebispo de São Paulo, que, como historiador, conhecia a fundo a relação entre o poder religioso e o poder político no Brasil.
Dom Duarte Leopoldo e Silva nasceu em Taubaté em 04 de abril 1867, filho de Bernardo Leopoldo e Silva e Ana Rosa Marcondes. Foi eleito bispo em 10 de maio de 1904 e foi empossado na Diocese de Curitiba em 02 de dezembro daquele ano. A nomeação transferindo-o para São Paulo, através de Breve, ocorreu em 18 de dezembro de 1906. Assumiu o governo da Província Eclesiástica de São Paulo em 14 de abril de 1907. Desde o início de seu trabalho na nova diocese deu continuidade à obra de seu antecessor Dom José de Camargos Barros. Promoveu a divisão do território paulista em outras cinco dioceses. Sua meta, de acordo com Santos (1984, p. 21), foi alcançada: a “elevação de São Paulo à categoria de Arquidiocese em 7 de junho de 1908, sendo, portanto, seu primeiro arcebispo”. Aí exerceu o pastoreio até 1938, quando veio a falecer, em 13 de novembro.
Em seu livro O Clero e a Independência: conferências patrióticas,[11] que foi publicado pelo Centro D. Vital, em 1923, expõe sua visão de patriotismo na sua relação com o catolicismo em consonância como a “Restauração Católica”. O autor (1923, p. 11) abre o primeiro capítulo de sua obra com a seguinte declaração:
O nobilíssimo empenho na defesa do torrão natal, esse amor que, sem fugir a sacrificios, ráia por vezes ao heroísmo das grandes e extraordinárias virtudes, tem alguma cousa que o subtrai ao puro domínio da natureza. Si bem o comprehendera a política, de ordinário tão eivada de preconceitos que a deturpam, jamais haveriamos de separar o patriotismo do sentimento religioso.[12]
Dois aspectos importantes saltam dessas palavras emblemáticas, que per se já expressam a compreensão da pretendida importância e influência do catolicismo na sociedade brasileira sob o signo do patriotismo. Em primeiro lugar, sobressai a nobreza do compromisso do clero com o Brasil, cuja atuação é qualificada como virtuosa. Em segundo lugar, rechaçando a visão preconceituosa da presença do clero na política, afirma a unidade entre o sentimento religioso e o sentimento de amor à pátria. Por outro lado, o arcebispo historiador, pondera que ressaltar ação do clero nos “acontecimentos políticos” não significa que sempre apoia os meios empregados nessa prática. Explicita D. Leopoldo (p. 17) o escopo de seu discurso: “O nosso estudo não comporta mais que a afirmação do patriotismo do clero brasileiro, sempre leal e eficaz, bem que, por vezes, desviado das tradições e ensinamentos da Igreja”.
Referida exaltação ponderada do patriotismo dos clérigos se relaciona com a condição do clero como parte da parcela letrada da sociedade e qualificava os clérigos como patriotas capacitados para contribuir com o progresso do país. Efetivamente, o arcebispo (1923, p. 13) se expressa de forma enfática, enaltecendo as qualidades intelectuais da “elite” da Igreja, que por sinal era escassa, como testemunha:
Escassos, principalmente no período colonial, eram os homens de illustração que pudessem nortear, seguramente, as populações que se iam desabrochando para a vida social e política. Ainda nos primórdios do Império, á parte um pequeno grupo de privilegiados que, ao depois, se fizeram notáveis, apenas no clero se encontram letras capazes de illuminar a trabalhosa marcha dos que porfiavam pelo progresso do país.[13]
Como se vê nessa citação, essa parcela religiosa da população católica do país destacava-se pelo domínio de conhecimento que faltava à imensa maioria população. Isso explica a sua importância e chance de liderança que poderia estar a serviço do poder político e econômico e dele se beneficiar, no contexto recuperação da influência católica no novo regime político. Como é sabido, nos diversos momentos da história das relações entre Igreja e Estado no Brasil, as situações concretas atraíam os clérigos ou mesmo compelia presbíteros e prelados a desempenharem papéis importantes na vida pública.
Um clero bem instruído era justamente o que esperava, no período da Primeira República, um segmento de intelectuais católicos brasileiros. Estes estavam convictos, de alguma maneira, de que era necessário e importante para a Igreja promover sua influência na sociedade pela aproximação do Estado. Era a busca que se chamou também de “promover a obra de reconciliação política e religiosa”. No entanto, e relativizando os elogios do arcebispo aos dotes intelectuais do clero, nem todo o clero podia integrar o grupo dos bem-preparados através de estudos acadêmicos. Neste sentido, é emblemática, a afirmação, segundo Moraes (apud, 1929, p. 83), de Cândido Mendes: “Um clero, instruído e edificante, como desejamos, poderá por meio da prédica e do ensino, por uma discussão inteligente e leal, esclarecer a opinião, conseguindo que Cesar se limite ao horizonte do seu poder, e não usurpe o que é Deus”. Continua o mesmo pensador (apud p. 82-83) esclarecendo qual é o espírito que anima a busca de “reconciliação”:
Essa época vai-se aproximando, porque a verdade também tem seu dia, e nutrimos a convicção de que antes de terminado o presente século, o clero educado nas sãs doutrinas catholico-romanas, mais moralizado e mais sapiente, conseguirá, por suas virtudes e por suas obras, resgatar a Igreja Brasileira da posição acanhada em que se acha.
Essas duas transcrições deixam claro também que havia, da parte de intelectuais católicos, uma pressão para que a hierarquia se empenhasse para resgatar a autoridade moral da instituição eclesiástica sob dois aspectos: a melhor formação intelectual dos clérigos e que ela fosse na linha conservadora. Tal manifestação, que teve importância para a vida interna da Igreja, na formação intelectual e moral do clero, serviria melhor ao propósito Restauracionista. Mas neste caso de forma invertida, ou seja, os ideólogos da política tinham interesse no apoio da religião, do catolicismo para seus projetos, antes que na missão religiosa própria da instituição.[14]
Desta forma, se havia forte empenho por parte da Igreja pela recuperação de seu prestígio sociopolítico no cenário nacional, por outro lado, também da parte do Estado, ao menos em termos formais, havia certa correspondência de interesse. Pode-se verificar tal posicionamento no discurso de um represente do governo em 1924. Conforme recolheu Moraes (1929, p. 81, n. 81), havia também vontade de representantes do poder político de contar com o apoio do catolicismo. Assim discursou o ministro das Relações Exteriores, Feliz Pacheco, dirigido ao Cardeal Dom Joaquim Arcoverde, em 05 de maio de 1924, no Palácio do Itamaraty.
O Governo de 15 de novembro resolveu, é verdade, a separação, por transigência da primeira hora como o exclusivismo apaixonado dos fundadores do systema. Mas logo espontaneamente a democracia republicana, assim inaugurada, se corrigiu a si mesma, esmerando-se em formar, para a propria Igreja, dentro da nova ordem de cousas estabelecida no paiz, um ambiente de facto melhor do que a atmosfera regalista estreita, que não permittira, até então, no Brasil, livre surto da utilissima autoridade espiritual do clero.[15]
Em consonância com o espírito dessa afirmação, comentou F. Taborda (1975, p. 145) ao tratar da posição de D. Leopoldo apresentando publicamente os clérigos como zelosos patriotas: “Essa figura do padre político desperta, pelo visto, as simpatias dos homens públicos da década de 20”. Acrescenta o teólogo: “De fato, nos períodos do império e colonial a atividade política de clérigos fora significativa, embora de modos bastante diferentes. Não raro eram recrutados pela maçonaria para a militância política”.
No contexto dos anos vinte do século XX, no entanto, a exaltação da importância do clero na sociedade civil brasileira expressa nas conferências do primeiro arcebispo da Arquidiocese de São Paulo aponta para a nova posição da Igreja frente ao poder político. Por outro lado, há ponderações que tentam amenizar o tom enfático da apologia do patriotismo dos eclesiásticos. Considerados esses aspectos, as conferências em questão fazem parte do esforço do catolicismo, ou melhor, a instituição Igreja, para reconquistar sua importância e influência junto ao Estado, assegurando sua parcela de poder temporal na sociedade.
Continuando a leitura das conferências, na sequência de seu discurso, o primeiro arcebispo de São Paulo, aprofunda a noção de patriotismo. Resguardando a dimensão transcendente do papel do catolicismo através de seus agentes hierárquicos, o prelado afirma que tal sentimento encerra também um significado sobrenatural. Ele entende (1923, p. 11) que o patriotismo abrange não só a dimensão histórica, mas diz respeito também ao além da temporalidade. Deste modo, “elle [o patriotismo] tem o seu tanto de sobrenatural que o eleva, como virtude, muito acima das qualidades cívicas ou virtudes simplesmente humanas”. O arcebispo avança na exposição de seu pensamento e afirma que, na pessoa do clérigo, a ideia de Deus e o patriotismo enquanto virtude espontânea são inseparáveis, de modo que ambos os sentimentos implicam abnegação e sacrífico.
Clareza maior sobre tal unidade de sentimentos, observa-se ao colocar (1923, p. 12) o exercício do patriotismo em conformidade com o ministério sacerdotal. Interroga: “Que é, de facto, o ministério sacerdotal sinão um contínuo exercício do patriotismo em busca da pátria celestial, pela paz e pela ordem na pátria em que vivemos?”. Para enfatizar essa ideia acentua o imperativo de se reconhecer a dimensão patriótica dos trabalhos dos clérigos, mesmo que não se aceite seu valor religioso: “Pode-se não aceitar o ideal religioso do sacerdote fugindo á sua doutrina; mas ninguém lhe ha de lhe negar esforço patriótico, tanto mais nobre e eficaz, quanto mais alta é a mira a que tendem os seus trabalhos”. Para Leopoldo e Silva (1923, p. 12-13). O clero está na vanguarda da luta pela liberdade ao longo de toda a sua história política até aquele momento, figurando “na primeira linha dos patriotas, cada um com as suas qualidades e os seus defeitos”. Não nega, no entanto, que, nesse afã de luta política libertária, houve “até lastimáveis excessos”.
Comentando sobre esse escrito do arcebispo, Taborda (1975, p. 143) destaca que com tal ressalva, ele visa à preservação da ortodoxia dos clérigos no exercício de seu ministério sem omitir seu compromisso patriótico. Escreve o teólogo: “D. Leopoldo precisava acentuar que o sacerdote de seu tempo continuava a ser patriota, mesmo que ‘recolhido – e ainda bem – ao piedoso remanso da sacristia’, já não participasse ativamente da luta política”.
A dimensão social e temporal da ação eclesial sempre esteve presente na história do cristianismo e na atuação da comunidade católica no Brasil com diferentes matizes. No presente caso, trata-se de conseguir a afirmação da presença pública e política da instituição na sociedade nacional. De fato, havia um descontentamento e sentimento de perda no seio da hierarquia católica, pois o advento da República e do Estado afastava, em tese, afastava a influência no direcionamento da vida política e do governo do país.[16] Era imperioso recuperar o lugar perdido na relação com os poderes que dominavam sobre a sociedade. Tal posição se apoia naquela divisão de poderes que vigorara na cristandade através do alinhamento entre catolicismo e Estado, com o poder dividido entre o temporal e o religioso. A Igreja se sente autorizada a tentar novamente incidir nas definições de políticas do Estado, que, agora, se autoproclama laico.
Uma vez vistos esses aspectos em torno do conceito de patriotismo, no espírito da Restauração Católica, e reconhecendo esse a importância desse momento histórico das relações entre o catolicismo e o Estado, cabe considerar a importância do patriotismo na vida cristã para os dias atuais.
Obviamente que a manifestação de D. Leopoldo se circunscreve ao âmbito interesse político institucional e não ao papel do cristão católico enquanto cidadão na sociedade. Aqui impõe-se reconhecer que ainda não havia lastro teológico e doutrinal para tanto, como seria proposto a partir do pontificado de São João XXIII (1958-1963). No entanto, isso não justifica completamento a confusão entre missão evangelizadora e comprometimento com os poderes os políticos.
Mas, com o advento do Vaticano II estabeleceu-se uma visão sobre a relação Igreja e mundo, cristãos e sociedade. Elaborou-se uma doutrinal social consistente capaz de fundamentar e orientar a presença e atuação públicas da instituição e dos cristãos(ãs) no mundo; os critérios para o posicionamento dos membros da Igreja na sociedade são aprofundados e ampliados.
Apenas a título de referência para se passar a uma nova visão sobre o lugar do clero no processo de construção da sociedade, resguardando-se, no entanto, de todo e qualquer anacronismo, recordem-se as palavras D. Paulo E. Arns. Elas proferidas quando da publicização da reimpressão do livro de D. Leopolgo, conforme recolheu Taborda (1972, p. 143), dizia o quinto arcebispo de São Paulo (1970-1998) com lucidez e em sintonia com o momento histórico tanto eclesial como sociopolítico:
Para lembrar a todos os fiéis que a ação da Igreja se realiza em favor do homem brasileiro em sua realidade, e não se reduz à exposição teórica de princípios evangélicos. [...] Para fazer justiça aos Padres, que, como cidadãos brasileiros, têm o direito e o dever de empenhar-se a fundo pelo desenvolvimento global de todos os Homens desta Terra.
As palavras de D. Paulo Evaristo, refletem o espírito do evangelho que deve ser assumido permanentemente pelos católicos sejam membros do clero ou integrando a imensa maioria do contingente de leigas e leigos. O que dizer agora sobre o catolicismo e o patriotismo entendendo-o em conformidade com a tradição cristã atualizada pelo Vaticano II o assume?[17]
O olhar sobre a relação do catolicismo e do clero, em sua relação com sociedade civil e o poder político evidenciou a exaltação do papel do Igreja na sociedade brasileira e de seu esforço para manter seu lugar privilegiado na relação com o Estado, apesar de sua definição constitucional como estado laico. Trata-se do catolicismo por um grupo de cristãos intelectuais influentes na sociedade brasileira que atuavam na esteira da posição do movimento Restauracionista e que se até a década de 1930. A apropriação desses elementos da história do catolicismo no Brasil, nesse período, serve não como mero conhecimento da história recente da Igreja católica e seus legítimos representantes hierárquicos, mas como dado que remete a considerações que situam no plano mais teológico. Neste sentido toma-se a história do catolicismo como fator constitutivo do lugar teológico do se propõe nesta parte final do artigo.
Não é demais, ressalvar mais uma vez, a distância temporal, bem como as diferenças no que se refere às relações entre a organização eclesiástica católica de então, no Brasil, em sua ligação com a história do catolicismo do final do século XIX e a primeira metade do século XX. Impõe-se ainda reconhecer as mudanças socioculturais e políticas ao longo desse período, incluindo o tempo presente. Tais observações valem como referências para não tomarmos uma posição anacrônica nem fazer juízo equivocado. Haveria que se considerar as três últimas décadas, inclusive a atual, que se apresenta como realidade muito complexa. Mas este não é o espaço apropriado para tal discussão.
Neste artigo não se abordou a relação do catolicismo com a Doutrina Social da Igreja existente no período da restauração e no memento da defesa do patriotismo do clero.[18] O interesse era a examinar como a Igreja se autocompreendia e, consequentemente, como se colocava diante das forças temporais da sociedade brasileira, fazendo emergir quais eram suas preocupações, que eram sobretudo autorreferenciadas, até certo ponto compreensíveis naquele contexto histórico. Nas considerações que se seguem, no entanto, enfatiza-se o que o catolicismo propõe, entendendo-se como orientação do magistério da Igreja para todos os membros, em nossos dias, ante uma diversidade de comportamentos e atitudes inclusive opostas a essas propostas e direcionamentos.
Confronta-se, no entanto, a posição da Igreja do período da restauração e da manifestação do patriotismo católico com a visão do Vaticano II sobre o patriotismo, para enfatizar o risco permanente que corre a instituição eclesiástica de ir em busca do poder temporal ou de apegar-se a ele, com o consequente afastamento de seu fim fundamental que é evangelizar.
O compromisso dos(as) cristãos(ãs), inclusive os membros do clero, como cidadãos(ãs) implica o exercício da cidadania, contribuindo para o desenvolvimento da própria pátria. Tomás de Aquino (STh II-II, q. 101) tratando da virtude da piedade, relaciona o dever do compromisso religioso do cidadão cristão com o dever para com a pátria. Com efeito, afirma o aquinate (II-II, q. 101, a. 1) que, “assim como cabe à religião prestar culto a Deus, assim também, em grau inferior, pertence à piedade render culto aos pais e à pátria”.[19] É precisamente em continuidade com essa tradição teológica, como visto, que o Concílio se expressa sobre o patriotismo. No a. 3, dessa secção da Suma Teológica, o doutor angélico esclarece que o alcance da piedade, como virtude que reverencia aos pais e à pátria, enquanto a religião presta culto a Deus que é “princípio do existir e do governo de maneira primordial”. Por outro lado, “a piedade se estende à pátria enquanto a pátria constitui um certo princípio de nosso existir”. Nessa questão está em jogo a relevância da dimensão religiosa do ser humano e o significado de sua relação legal com as pessoas de consanguinidade, especialmente os pais, mas também com seu país, aos quais, em certo grau, deve respeitar e dedicar-se. Daí salta a distinção entre sentido do patriotismo na perspectiva do catolicismo, como se expôs neste texto, e aquela perspectiva da relação do cristão com o sentimento patriótico proposto pelo Vaticano II.
A noção de patriotismo assumida pela tradição cristã atualizada pelo Concílio (GS 75), como visto na primeira seção deste texto, constitui a posição do catolicismo que assume a orientação da Igreja, em nossos dias, ressaltando a necessidade do engajamento dos(as) cristãos(ãs) nas esferas de decisão e ação sociopolítica e cultural.[20] Ao mesmo tempo em que acentua a importância do patriotismo, o Concílio o apresenta estreitamente vinculado ao bem comum de um país com uma outro autocompreensão da presença pública da instituição e de seus membros. Esse modo de presença implica que o empenho do(a) cidadão(ã) cristão(ã) pelo bem comum do país não pode deixar de lado o interesse pelo bem-estar de outros povos. Como aceno para a relevância e atualidade do significado concreto e ao mesmo tempo universal do patriotismo e sua relação a perspectiva ética cristã, veja-se a pertinência com que está contemplado na Carta encíclica Fratelli tutti (n. 149):
Para estimular uma sadia relação entre o amor à pátria e uma cordial inserção na humanidade inteira, convém lembrar que a sociedade mundial não é o resultado da soma dos vários países, mas sim a própria comunhão que existe entre eles, a mútua inclusão que precede o aparecimento de todo o grupo particular. É neste entrelaçamento da comunhão universal que se integra cada grupo humano, e aí encontra a sua beleza. Assim, cada pessoa nascida num determinado contexto sabe que pertence a uma família maior, sem a qual não é possível ter uma compreensão plena de si mesma.
Na esteira das propostas conciliares, portanto, o magistério social católico tem apresentado princípios basilares para enfrentamento de questões sociais atuais candentes, considerando seriamente sua com o patriotismo, em seu sentido original, visando à atuação dos(as) cristãs na sociedade. Tais ensinamentos têm sido assumido pelo catolicismo oficial no Brasil, ao menos por setores da hierarquia (vários bispos e presbíteros) e parcela significativa dos(as) leigos(as).
A Conferência Nacional do Bispos do Brasil (CNBB) tem se pronunciado sobre situações específicas graves da sociedade brasileira, como o pronunciamento emitido por ocasião da e sua 59ª Assembleia Geral, realizada em abril de 2022. Os bispos exprimem, na Mensagem ao Povo Brasileiro, a posição do catolicismo, de seus representantes hierárquicos, diante da situação do Brasil e conclamam a sociedade a exercerem o direito e o dever de cidadania:
Conclamamos toda a sociedade brasileira a participar das eleições e a votar com consciência e responsabilidade, escolhendo projetos representados por candidatos e candidatas comprometidos com a defesa integral da vida, defendendo-a em todas as suas etapas, desde a concepção até a morte natural. Que também não negligenciem os direitos humanos e sociais, e nossa casa comum onde a vida se desenvolve. Todos os cristãos somos chamados a preocuparmo-nos com a construção de um mundo melhor, por meio do diálogo e da cultura do encontro, na luta pela justiça e pela paz.
Se de um lado, há uma posição por crítica e de compromisso com a justiça social e o bem comum por parte da instituição enquanto tal, por outro lado, no entanto, existem posicionamentos claramente contrários a um comprometimento dos católicos com as questões sociais e políticas, inclusive por parte de não poucos membros do clero brasileiro.
Uma pesquisa coordenada por A. Brighenti, cujo resultado veio a público no livro intitulado O novo rosto do Clero: perfil dos padres novos do Brasil (2021), mostra uma diversidade de visões e posicionamentos de ministros ordenados sobre sua a relação de sua missão com as realidades do “século”. Convém lembrar, porém, que objetivo do referido estudo é apresentar a visão dos “padres novos” sobre este assunto e mostrar a diferença em relação ao clero dos anos 1970/1980 e não sua participação nos movimentos sociais e políticos do país. No entanto, a partir de suas opções “sociopastorais” identifica-se a forma de presença dos clérigos que poderá influenciar, de uma ou outra maneira, na construção da sociedade sob os aspectos não só religioso mas sociopolítico e cultural.
Dentre as várias leituras sobre os resultados da pesquisa cabe, para o propósito deste estudo, destacar como parte do clero jovem encara sua missão, no quesito “A visão de Igreja dos católicos no Brasil” e o perfil dos “padres novos”. A citação que segue dá uma ideia que reflete, ainda que de forma não absoluta, a visão dos “padres novos” do clero brasileiro. Conforme o autor (2021, p. 276), essa passagem resume as respostas apresentadas pelas diferentes perguntas da pesquisa em foco:
Para os católicos no Brasil, a maior contribuição da Igreja à sociedade é seu trabalho de educação para o compromisso social e formação da consciência cidadã, em prol da justiça e da promoção dos pobres. Nesta perspectiva, assinalam a valiosa contribuição dada na aprovação de projetos de anticorrupção eleitoral, assim como quando levantou sua voz diante de injustiças e o desrespeito aos direitos humanos e sociais.
Tal visão, não reflete, obviamente, nem a percepção da totalidade dos presbíteros do país, nem a visão do episcopado brasileiro sobre o papel do clero na sociedade como pretendia a obra de D. Duarte Leopoldo.[21] No entanto, como os presbíteros são aqueles que atuam diretamente, nas paróquias, comunidade e alguns movimentos eclesiais, junto aos católicos nessas distintas formas de organização de evangelização, as ideias e comportamento ministerial que assumem expressam o modo como parte do catolicismo está presente na sociedade brasileira atualmente. Essas formas de relação do clero, como representação do catolicismo brasileiro com a vida sociopolítica do país chamam a uma discussão sobre a implicação ética em vista do bem comum envolvendo o ministério do clero. No contexto atual, o patriotismo tal como a tradição cristã o assume reclama um compromisso pelo bem comum, voltando-se particularmente, para defesa da vida dos cidadãos e cidadãs mais vulnerários de nossa sociedade brasileira. Há que se recordar sempre que o cristianismo, através de suas concretizações institucionais, para se corresponder a seu sentido original, deve contribuir para a humanização, a fraternidade e amizade social. Para o prosseguimento da reflexão proposta é iluminadora a palavra de Francisco (Fratelli tutti 66) expressa à luz da parábola do bom samaritano, com a convicção de que é um apelo inscrito como lei fundamental no ser da pessoa humana: “que a sociedade se oriente para a prossecução do bem comum e, a partir deste objetivo, reconstrua incessantemente a sua ordem política e social, o tecido das suas relações, o seu projeto humano [...] o bom samaritano fez ver que ‘a existência de cada um de nós está ligada à dos outros: a vida não é tempo que passa, mas tempo de encontro’”.
Referências
AZZI, Riolando. O Estado leigo e o projeto ultramontano. São Paulo: Paulus, 1994.
AZZI, Riolando. A Igreja Católica na formação da sociedade brasileira. Aparecida: Santuário, 2008.
BRIGHENTI, Agenor (org.). O novo rosto do clero: perfil dos padres novos do Brasil. Petrópolis: Vozes, 2021.
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Mensagem ao povo brasileiro. Belo Horizonte, PUC Minas, 2022.
CONCILIO ECUMÊNICO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et spes. Petrópolis: Vozes, 1968.
DIAS, Carlos Malheiro. Pensadores brasileiros: pequena antologia. Lisboa: Bertrand, sd.
EL MAGISTERIO pontifício contemporâneo: colección de encíclicas y documentos desde León XIII a Juan Pablo II: evangelización, família, educación, orden sociopolítico. Madrid: Biblioteca de Autores Cristãos, 1992).
FRANCISCO, Papa Carta encíclica Fratelli tutti: sobre a fraternidade e amizade social. São Paulo: Paulinas, 2020.
LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. A Igreja Católica no Brasil-República: cem anos de compromisso (1889-1989). São Paulo: Paulinas. 1991.
LUSTOSA, Oscar de Figueiredo (org.). A Igreja Católica no Brasil e o Regime Republicano. São Paulo: Loyola, 1990.
MORAES, E. Vilhena de. O patriotismo e o clero no Brasil. Rio de Janeiro: imprensa Nacional, 1929.
SANTOS, Wanderlei dos. Dom Duarte Leopoldo e Silva. In: Boletim do CEPEHIB, a. VI, n. 2 (21), abril, 1984, p. 21-24. [Centro de Pesquisas e Estudos de História da Igreja no Brasil].
SILVA, Duarte Leopoldo e. O Clero e a Independência: conferências patrióticas. Rio de Janeiro: Centro Dom Vital, 1923.
TABORDA, Francisco de Assis Costa. Recensão: LEOPOLDO E SILVA, Dom Duarte. O clero e a Independência: conferências patrióticas. Paulinas: São Paulo, 1972. Perspectiva Teológica, n. 12, a. VII, p. 143, jan./jun. 1975.
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[1] Essa delimitação cronológica corresponde ao ano da criação da Província Eclesiástica de São Paulo, elevando-a a arquidiocese com sede em São Paulo e tendo como primeiro arcebispo Duarte Leopoldo e Silva, e ao ano da publicação das conferências exploradas neste artigo.
[2] D. Sebastião Leme da Silveira Cintra, foi primeiramente arcebispo de Olinda e Recife. “Uma vez no Rio, estimulou grupos de estudo e associações de leigos católicos. [...] D. Leme promoveu vigorosamente o que ele considerava serem os interesses da Igreja Católica na cena política nacional, mas depois opôs-se firmemente ao desejo de Jackson de funda um Partido Político Católico” (KADT, Emanuel, 2003, p. 81).
[3] As citações seguem rigorosamente a forma ortográfica então empregada, que diferente da ortografia atual.
[4] Gramsci analisa a relação entre Religião e Estado no contexto italiano. Casali (1995, em Elite intelectual e restauração da Igreja como referencial teórico o “universo conceitual de Gramsci” por entender (p. 11) que sua intenção no referido estudo “é permitir o aparecimento das contradições e dos conflitos que estão na origem dos movimentos institucionais da Igreja no Brasil nas décadas de 20 e 30, e demonstrar sua versatilidade em adaptar-se às mudanças em seu interior e do seu entorno em se revitalizar, restaurando destroços de seu passado, e em projetar desenvolvimentos reformistas subsequentes, especialmente, no caso, através da criação de uma Universidade Católica”.
[5] Constituição Pastoral Gaudium et spes 75: “Cives pietatem erga patriam magnanimiter et fideliter excolant, sine tamen mentis angustia, ita scilicet ut ad bonum totius familiae humanae, quae variis nexibus inter stirpes, gentes ac nationes coniungitur, semper simul animum intendant”.
[6] Reflexão sobre várias formas de nacionalismo encontra-se no artigo: BAUM, Gregory. Que tipo de nacionalismo? Distinções éticas. Concilium, n. 262, m. 6, p. 1 10-120, 1995.
[7] R. Azzi (1994, p. 83-84) fala da influência do catolicismo na formação social e política do Brasil considerando-o elemento “plasmador da nacionalidade”.
[8] Deve-se evitar o pensamento de que havia apenas uma posição política totalizante. O mesmo O. Lustosa (1990, p. 20) lembra que existiam diferentes ideologias políticas. “Entre eles logo se formaram grupos: católicos monarquistas e católicos republicanos, uns chamados adesistas e morados, outros liberais e radicais”.
[9] O historiador (1991, p. 43) analisa documento “Reclamação do Episcopado brasileiro, dirigia ao Exmo. Sr. Chefe do Governo Provisório, apud Francisco de Macedo Costa, Lutas e Vitórias, Bahia, Estabelecimento de Dois Mundos, 1916, p. 218.
[11] O prelado, como escritor, dedicou-se à História Pátria, sempre com brilho próprio das pessoas possuidoras de talentos especiais. A respeito da obra em questão, Santos (1984, p. 23) afirma: “O volume O CLERO E A INDEPENDÊNCIA foi a obra com que o ilustre prelado quis comemorar o centenário da nossa emancipação política”. O autor exalta as qualidades de Dom Leopoldo, que como historiador interessou-se logo ao iniciar seu pastoreio em São Paulo, empenhou-se em restaurar o arquivo da Arquidiocese. Foi Membro Titular do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, 1904, passando em 1905 a Sócio Honorário.
[12] Observe-se que a grafia segue as normas do português padrão vigente na época.
[13] Essa afirmação será confirmada pelos dados apresentados por S. B. de Holanda: na Universidade do México no período entre 1775 e a independência se formaram7.850 bacharéis e 473 doutores e licenciados. Em contrapartida, no Brasil, naturais do país graduados “durante o mesmo período (1775-1821) em Coimbra, que foi dez vezes menor, ou exatamente 720” (HOLANDA, 2000, p. 119).
[14] O Padre Julio Maria teria sido personagem exemplar a ser seguido no cumprimento do dever pátrio por parte dos sacerdotes: “Esse dever, diz o dr. Jonathas Serrano, ninguem melhor do que o próprio Julio Maria o procurou cumprir, levando a todas as capitaes do paiz o som do seu verbo eloquente e patriotico, numa pregação unica em nossa história, pela sua feição e pela sua amplitude” (Apud MORAES, p. 82).
[15] Bem a propósito da reação do catolicismo ante a declaração de laicização do Estado brasileiro (1889), observa P. Sanchis : “A historiografia religiosa do período republicano efetivamente registra este dado: a concorrência franca possibilitada pelo disestablishment mais cedo ou mais tarde acabou resultando – a começar do catolicismo ‘romanizado’, mas a tendência logo generalizou-se – em agentes religiosos menos acomodados, mais dinâmicos e dispostos, bem como em organizações religiosas pouco a pouco mais racionalizadas e eficientes na mobilização do laicato” (PIERUCHI, p. 54).
[16] Tristão de Ataíde, que se converteu ao catolicismo em 1928, distingue os dois poderes espiritual e temporal. Assim se expressou o escritor político e crítico literário: “Foi o cristianismo que marcou a distinção dos dois domínios, temporal e espiritual, limitando o Estado à esfera dos interesses temporais e deixando os espirituais à Igreja. Foi essa a primeira grande consequência social da revolução que o novo sentido da vida vinha trazer à sociedade em ruínas das grandes civilizações antigas e ao cáos das novas civilizações que se formavam” (Apud DIAS, Carlos Malheiro. Pensadores brasileiros: pequena antologia. Lisboa: Bertrand, sd, p. 131-132).
[17] Como é sabido, o catolicismo oficial estava ainda longe do que já se esboçava apenas no âmbito teológico acadêmico, que eram as mudanças em curso em centros teológicos europeus que procuravam respostas para as questões humanas e socioculturais contemporâneas.
[18] No período de 1891 (Proclamação da República) a 1922 (centenário da Independência) o magistério social da Igreja produziu vários documentos que deviam ser conhecidos pela Igreja, do período aqui delimitado para o estudo do catolicismo no Brasil, e que poderiam fundamentar o posicionamento da instituição tanto do ponto de vista interno, mas principalmente na relação com a sociedade. Entre esses documentos, entre outros, lembramos. Leão XIII Diuturnum illud (9.06.1881), sobre a autoridade política (a origem divina do poder na sociedade política), Immortale Dei (01.11.1885), refuta as teses errôneas do liberalismo então triunfante, Rerum novarum (15.05.1891), sobre a situação dos operários e marca o início da uma nova etapa da atuação da Igreja e dos católicos no campo social. O papa Pio X, por sua vez, escreveu a encíclica Pascendi Domini gregis (08.09.1907), sobre as doutrinas modernistas, especialmente às ideias modernistas na teologia. O papa Bento XV ofereceu a carta apostólica Maximum illud (30.11.1919), sobre a propagação da fé católica, o documento inicia o século das missões (cf. EL MAGISTERIO pontifício contemporâneo: colección de encíclicas y documentos desde León XIII a Juan Pablo II: evangelización, família, educación, orden sociopolítico. Madrid: Biblioteca de Autores Cristãos, 1992).
[19] Contestando a tese segundo a qual a piedade se estenderia somente a um determinado tipo de pessoa, o doutor angélico (II-II, q. 101, a. 1) evoca M. Túlio: “A piedade é a virtude pela qual se presta um obsequioso respeito aos consanguíneos e aos amigos da pátria”. Piedade e religião são duas virtudes distintas, ambas boas. Por isso, elas não se opõem mutuamente. No entanto, a maneira e intensidade como se pratica uma e outra devem se diferentes.
[20] Os cristãos devem assumir, a partir de sua fé, seu dever de cidadão, portanto, como alguém que é mesmo de uma pátria e que a preza e se empenha pelo bem dela e pela paz no mundo. A Constituição Pastoral Gaudium et spes (n. 79) estabelece: “Aqueles que se dedicam ao serviço da pátria no exército, considerem-se servidores da segurança e da liberdade dos povos; na medida em que se desempenham como convém desta tarefa, contribuem verdadeiramente para o estabelecimento da paz”.
[21] A pesquisa não inclui o segmento episcopal em suas amostras (agentes eclesiais) que foram sete: padres, leigos, leigas, jovens-homens, jovens-mulheres, seminaristas e religiosas.