O problema de uma teoria geral do julgamento em Paul Ricœur

The problem of a general theory of judgment in Paul Ricœur

Roberto Roque Lauxen
Doutor em Filosofia pela Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS). Professor no Curso de Licenciatura em Filosofia da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Contato: rrlauxen@gmail.com

Cristina Henrique da Costa
Doctorat d Université, em Estudos Românicos pelaUniversidade Paul Valéry Montpellier. Professora no Departamento de Teoria literária, IEL/UNICAMP. Contato: cristinahenriquedacosta@hotmail.fr

Voltar ao Sumário

Resumo: O presente trabalho de pesquisa explora o significado de uma teoria geral do julgamento em Paul Ricœur, procurando situá-la a partir de uma rara referência de O Justo 1, o estudo intitulado “Juízo estético e juízo político em Hannah Arendt”. A pesquisa destaca a importância e o alcance de semelhante teoria do julgamento em Ricœur em correlação com a perspectiva original de Kant em sua terceira Crítica e a perspectiva de Hannah Arendt, que aplicou-a ao campo político. Reflete sobre o modo próprio da abordagem ricœuriana em relação às diferentes formas de julgamento no âmbito de uma sabedoria prática: o julgamento médico, do juiz, do historiado, etc., sem perder de vista a dimensão epistemológica que congrega estes diferentes atos numa teoria geral do julgamento. 

Palavras-chave: Arendt. Kant. Ricœur. Sabedoria prática. Teoria do juízo.   

Abstract: This research paper explores the meaning of a general theory of judgment in Paul Ricœur, seeking to situate it based on a rare reference in The Just 1, the study entitled “Aesthetic judgment and political judgment in Hannah Arendt”. The research highlights the importance and extent of such a theory of judgment in Ricœur in correlation with Kant’s original perspective in his third Critique and the perspective of Hannah Arendt, who applied it to the political field. It reflects on Ricœur’s own approach to the different forms of judgment in the context of practical wisdom: the judgment of a doctor, a judge, a historian, etc., without losing sight of the epistemological dimension that brings together these different acts in a general theory of judgment.

Keywords: Arendt. Kant. Ricœur. Practical wisdom. Theory of judgment.


Os resultados que apresento neste artigo[1] ainda podem estar na conta de uma pesquisa exploratória na qual lanço algumas conjecturas e hipóteses a serem averiguadas com maior acuidade. Portanto, considero como maior virtude deste esboço, seu ineditismo, isso porque, até onde pude constatar, há poucos trabalhos que se ocupam com a hipótese de uma hermenêutica jurídica em Paul Ricœur (1913-2005)[2] e menos ainda sobre o tema de uma teoria geral do julgamento, que também possui relação com a problemática ética, como veremos a seguir.

Nesse sentido, minha proposta está orientada mais para a escuta e a interlocução e até mesmo sugestões para futuros aprofundamentos. Esta pesquisa visa também oferecer uma demonstração de como trabalhamos os textos em nosso Grupo de Leituras Ricœuriana, de onde surgiu o projeto de construção de nossa Rede Brasil-Ricœur que hoje realiza seu primeiro Congresso Internacional.

1. A organização do conjunto de estudos de O Justo 1

Ao observar a organização do conjunto de estudos de O Justo 1, um dos estudos chamou nossa atenção em função de seu conteúdo e em função de sua posição estratégica, a partir de certa intencionalidade de organização que Ricœur expõe no Prefácio desta obra. Trata-se do estudo “Juízo estético e juízo político em Hannah Arendt”, que nos inquietou particularmente ao menos por duas razões, uma primeira relacionada à posição que ele ocupa no conjunto de estudos desta obra, e, uma segunda – de posse desta certa intencionalidade de organização manifestada pelo autor –, em relação a seu caráter e posição epistemológica nesta coletânea. 

Para falarmos desta dupla inquietação é preciso compreender a espécie de unidade de ritmo e de estruturação que preside este conjunto de estudos transformado em obra, uma vez que ela segue, em alguma medida, o tripé da “pequena ética” de O si-mesmo como outro: momento teleológico, deontológico e da sabedoria prática, como enuncia Ricœur (2008a, p. 19): 

O senso de justiça, que se mantém enraizado no querer a vida boa e encontra a formulação racional mais ascética no formalismo procedimental, só chega à plenitude concreta no estágio da aplicação da norma no exercício do julgamento em situação.

Portanto, em O Justo 1 há o momento horizontal da relação do si com o outro, dos dois primeiros estudos[3] no qual Ricœur trata do sujeito do direito, das capacidades deste sujeito e da vulnerabilidade que implica também a imputabilidade, a responsabilidade, e a possibilidade (capacidade) de sofrer as penas da lei. Depois, o momento vertical e deontológico onde a figura de Rawls domina a cena com sua teoria ou princípios da justiça, [4] uma teoria do dever-ser, de como podemos ordenar de forma justa as instituições sociais, sob certos princípios contratados sob o véu da ignorância, que implica, “livrar o justo da tutela do bem” (RICŒUR, 2008a, p. 65). Mas os princípios da justiça de Rawls não satisfazem a Ricœur e ele mostrará, em dois outros estudos, [5] seus distanciamentos em relação a Rawls, primeiro o que Rawls coloca para baixo do tapete, a base histórica e cultural destes princípios; em seguida, o confronto dos princípios com o pluralismo das esferas da justiça através Walzer e Boltanski. Por fim, os quatro últimos artigos de O Justo 1 que, ao nosso modo de ver, relacionam-se com a sabedoria prática, vale dizer, os artigos “Juízo estético e juízo político segundo Hannah Arendt”, “Interpretação e/ou argumentação”, “o ato de julgar”, “condenação reabilitação, perdão”, ficando de fora “consciência e lei” que é um acréscimo ao conjunto. 

Refletimos aqui sobre a intencionalidade organizativa de O Justo 1, mas cada um dos estudos desta coletânea foi concebido para atender intervenções e circunstâncias muito específicas, evidentemente sem a pretensão de concebê-los em um conjunto homogêneo. No entanto, no intercurso de reuni-los em um único conjunto, Ricœur procurou ordená-los em torno de certa unidade temática e de acordo com o tripé de sua “pequena ética”, mas sem um compromisso sistemático. Mesmo assim, de posse desta unidade de ritmo, é justo que possamos entender o significado desta reunião para compreender também o significado daquilo que, ao nosso modo de ver, destoa dessa organização.   

2. Sobre o significado do estudo “Juízo estético e juízo político segundo Hannah Arendt”

Nossa atenção principal é com o significado do estudo “Juízo estético e juízo político segundo Hannah Arendt” no conjunto dos estudos de O Justo 1. Talvez um enunciado do Prefácio desta obra prepare a função deste artigo mencionado, porque Ricœur nos diz que a ordem seguida dos quatro estudos finais, aqueles que nomeamos acima, e que constituem o terceiro grupo de textos do tripé desta obra, “atende a duas preocupações: a de marcar a especificidade epistemológica do ato de julgar e de seguir o desenrolar desse ato até sua conclusão no tempo” (RICŒUR, 2008a, p. 19). Portanto entendemos que, com base nessa citação de Ricœur, a ideia de “marcar a especificidade epistemológica do ato de julgar” se refere ao próprio artigo “Juízo estético e juízo político segundo Hannah Arendt”, vale dizer, sobre o julgar em sentido geral, como estamos nomeando aqui, ou como diz Ricœur “o ato de julgar que não está encerrado nas dependências do tribunal” (RICŒUR, 2008a, p. 16), que é distinto do julgar no sentido de “estatuir na qualidade de juiz” (Ibid., p. 175), ou seja, “o sentido judiciário do ato de julgar” (Ibid., p. 176).

Então, o objetivo deste artigo é fornecer as bases epistemológicas para todo julgamento, uma teoria geral do juízo ao modo da Crítica do juízo, que incluiria todas as ocorrências do juízo: o juízo médico, do historiador, do juiz no tribunal, etc. Além disso, o artigo elucida o caráter epistêmico que preside o juízo em situação, a sabedoria prática, que remete a este sentido geral do juízo ao modo kantiano, do juízo reflexivo: 

Toda problemática, que me arrisco a qualificar com o adjetivo fronética, consiste em explorar a zona média na qual se forma o juízo, a meio caminho entre a prova, submetida à injunção lógica, e o sofisma, motivado pelo gosto de seduzir ou pela tentação de intimidar. Essa zona média pode ser designada sob vários nomes [...] retórica, [...] hermenêutica, [...] poética. E a cada uma dessas disciplinas, continua Ricœur (2008a, p. 18), correspondem três traços, probabilidade, aplicação e inovação que se acumulam na terceira Crítica kantiana.

Portanto, observa-se que o que está em jogo aqui é certo estatuto epistemológico capaz de fazer frente a todo juízo que implica uma sabedora prática ao modo da phronesis, do julgamento em situação e que esta zona média opera numa lógica da probabilidade, aplicação, inovação. 

O artigo “Juízo estético e juízo político em Hannah Arendt” expõe a estrutura do juízo reflexivo e parece estar vinculado ao artigo que o segue, vale dizer, “Interpretação e/ou argumentação”, porque na argumentação predomina a lógica do provável enquanto que na interpretação prevalece o poder inovador da imaginação (RICŒUR, 2008a, p. 19).

Não é nossa intenção aqui desenvolver todos os desdobramentos do artigo de Ricœur, este artigo por si só já é um verdadeiro roteiro de pesquisa e de estudos que vai desde a Crítica da faculdade de julgar de Kant passando pelo esboço do Epilogo da trilogia de Arendt A vida do espírito, muito embora Ricœur não aborde outros aspectos e textos nos quais Arendt expõe sua teoria do juízo[6] e tampouco explora a apropriação que Gadamer realiza da Crítica do juízo de Kant na primeira parte de Verdade e método.  

Apenas uma consideração nos interessa, Ricœur tem necessidade de fundamentar o julgamento em situação, que ele especifica em três âmbitos principais no qual se ocupou, seja do ato médico, do juiz ou do historiador, ou seja, procura fundamentar a juízo em situação numa teoria geral do julgamento. Isso aparece nitidamente em O Justo 2, onde Ricœur procura exercitar sua teoria e passa de uma ética fundamental, proposta em O Justo 1, para as éticas no plural, conforme enuncia deste o início o primeiro estudo deste conjunto “Da moral à ética e às éticas”. Ainda no contexto de O Justo 2 a correlação do julgamento em situação se coaduna com a teoria geral do julgamento.

[...] Julgar, na maioria das vezes, é submeter um caso particular a uma regra: é aquilo que Kant chama de juízo determinante, quando se conhece melhor a regra que sua aplicação. Mas é também procurar uma regra para o caso, quando se conhece melhor o caso do que a regra: é o que Kant chama de juízo reflexivo. 

Ora, essa operação está longe de ser mecânica, linear e automática. Ao trabalho da imaginação que lida com as variações de sentido da regra ou do caso mesclam-se silogismos práticos. Temos um misto de argumentação e interpretação: o primeiro vocábulo designa o lado lógico do processo (dedução ou indução), e o segundo enfatiza a inventividade, a originalidade, a criatividade. Esse misto merece ser chamado de aplicação: aplicar uma regra a um caso ou encontrar uma regra para um caso é produzir sentido (RICŒUR, 2008b, p. 245). 

O que chama a atenção é que Ricœur, quando fala do ato médico, do ato do juiz no tribunal e do juízo do historiador, sempre faz referência ao juízo reflexivo de Kant. Este juízo é destrinchado por Ricœur através das análises de Hannah Arendt, que o aplica ao juízo político, como diz a autora “As ligações entre as duas partes [da Crítica da Faculdade de Julgar] [...] estão mais intimamente ligadas com o político do que qualquer outra coisa nas duas outras Críticas” (ARENDT, 2000, p. 254), que não é a mesma aplicação que Ricœur confere à teoria geral do julgamento. 

Nesse sentido, podemos dizer que o julgamento do político parece não estar no horizonte da teoria geral do julgamento de Ricœur e que a aplicação desta teoria é direcionada para aspectos mais específicos do campo prático, circunscrita, de algum modo, ao campo da ética, e não da estética como em Kant, portanto, segue a orientação epistemológica do julgamento prudencial, do phronimos, do homem de julgamento sábio na situação concreta. 

Talvez não seja bem esta a posição de Hannah Arendt, a de fazer do homem político uma sábio da ação na esfera pública, e talvez Ricœur com sua elucidação de “O paradoxo do político”[7] – que possivelmente Arendt concordaria –, poderia também ter conduzido seu debate na linha arendtiana, mas o que está em questão é que para ambos, e esta é a maior contribuição deste empreendimento, é terem tocado no nó semântico do julgamento, do “trabalho da imaginação que lida com as variações de sentido da regra ou do caso” (RICŒUR, 2008b, p. 245) num discurso misto de argumentação e interpretação que conjuga uma lógica que enfatiza a inventividade e a criatividade e que vai de encontro com a teoria geral do julgamento enunciada por Kant, sobretudo em relação ao juízo reflexivo, que preside um campo específico do saber, o dos assuntos humanos, não redutível ao saber objetivo. 

Esta teoria do juízo, para além da circunscrição kantiana ao juízo estético e ao juízo teleológico da natureza (que corresponde às duas partes de sua Crítica do juízo), segundo a percepção de Arendt e Ricœur, talvez possa ser estendida para os mais diversos campos das ciências humanas, como o juízo do psicanalista, do economista, e até mesmo do sociólogo, o que Gadamer já havia percebido em relação às ciências do espírito – que tem sua base no juízo do gosto, objeto da terceira Crítica de Kant – com as devidas críticas que Gadamer faz a Kant quanto à espécie de subjetivação do juízo do gosto, que não vamos explorar aqui.

Ao que parece esta teoria geral do julgamento de Ricœur, que estamos a comentar, só é desenvolvida de maneira explicita e de modo mais sistemático neste estudo de O Justo 1, e já com a parceria teórica de Hannah Arendt, embora o tema apareça de modo pulverizado em diferentes momentos da sua obra. Há uma abundante referência indireta em Ricœur a esta teoria geral do juízo de Kant. Neste estudo de O Justo 1, o tema aparece de maneira despretensiosa, mas que, segundo nossa avaliação, possui raízes significativas em todo o corpo teórico ricœuriano e deveria ser levado mais a sério no conjunto de sua obra.

3. A especificidade da teoria geral do julgamento de Ricoeur

Mas se Arendt levou a cabo este empreendimento kantiano para o campo da política, podemos verificar que Ricœur o direciona para o campo da ética, do juízo moral em situação e, uma vez que Ricœur propõe também o deslocamento de sua ética fundamental para as éticas no plural, este campo se encontra fraturado pelo ato (juízo) do médico, do juiz, do historiador, etc., para não falar de novos desdobramentos que poderiam ser incluídos neste modelo epistemológico presidido por uma teoria geral do julgamento. Portanto, a perspectiva de uma teoria geral do julgamento, ao modo ricœuriano, é construída por um método muito diferente da perspectiva transcendental kantiana (ocupada com o modo a priori de como conhecemos os objetos), e que Arendt também percebera. Em Ricœur ela é vinculada ao momento da aplicação, do julgamento em situação, no contexto das éticas no plural, conforme O Justo 2.

Então podemos dizer que Ricœur procura pensar esta teoria geral por um método diferente daquele de Kant, uma vez que Ricœur parte do uso da linguagem, vale dizer dos diferentes jogos de linguagem nos quais o juízo opera, o ato do juiz no tribunal, o ato médico, o ato do historiador, etc., em cada um destes campos a sabedoria prática entra em cena. 

É assim que podemos perceber em Ricœur um movimento que parte do uso das estratégias teóricas de julgamento concretas do ato médico, do juiz e do historiador para encontrar as possibilidades de similitude, uma vez que nem sempre elas são manifestas e estão claras. Tudo nos leva a crer que, na perspectiva das éticas no plural, Ricœur passa a quilômetros de distância do método transcendental, e parece utilizar o método construtivista, porque parte do uso efetivo dos jogos de linguagem, onde julgar nem sempre encontra um sentido unívoco, em alguns casos sim, mas em outros não. Observemos então as possibilidades de similitude entre o ato (juízo) médico e o ato do juiz no tribunal, como desenvolvido no estudo “A tomada de decisão no ato médico e no ato judiciário” (O Justo 2, p. 239-249). Sempre de posse do sentido geral do juízo reflexivo nos apresenta as semelhanças entre um e outro e conclui:

Assim, a tomada de decisão no plano médico se situa no entrecruzamento de um trabalho de argumentação e de um trabalho de interpretação perfeitamente compatíveis aos procedimentos aplicados na tomada de decisão na ordem judiciária (RICŒUR, 2008b, p. 246).

No entanto, tal similitude não pode ser verificada em outras instâncias de conhecimento como é o caso das possibilidades ensaiadas em A memória, a história, o esquecimento no que tange à correlação entre o “O historiador e o juiz” (p. 330-347). Após destacar a função do “terceiro” que a figura do juiz e do historiador incorporam, Ricœur identifica o desejo de “imparcialidade” que eles reivindicam, na linha de Thomas Nagel, e as alternativas abertas por Carlo Ginzburg em seu pequeno ensaio “Controlando as evidências: o juiz e o historiador”, no qual este autor verifica as similitudes da prova e da testemunha no campo judiciário e historiográfico, logo é confrontado com seus limites por Ricœur, que aponta para a inviabilidade de tal similitude, uma vez que:

O juiz deve julgar – é sua função. Ele deve concluir. Ele deve decidir. Ele deve reinstaurar uma justa distância entre o culpado e a vítima [...]. Tudo isso, o historiado não o faz, não pode, não quer fazer; se tenta, com o risco de erigir-se sozinho em tribunal da história, é ao preço da confissão de precariedade de um julgamento cuja parcialidade e até mesmo militância ele reconhece (RICŒUR, 2007, p. 335)                                        

Ricœur realiza um movimento construtivista que parte dos jogos de linguagem e sua possibilidade de articulação, não se rende à incomensurabilidade desses jogos de linguagem, pois procura articulá-los, compará-los, encontrando um nível epistêmico que segue a via pragmática ao invés do discurso transcendental, ou quem sabe uma pragmática transcendental, [8] para recolocar o tema de uma teoria geral do julgamento em pauta.

Considerações finais

Sem mais delongas vamos enfim à citação na qual Ricœur expressa os motivos que o levaram a introduzir esta problemática, conforme enuncia no Prefácio de O Justo 1

[...] o que me inclinou a incluir esse estudo nesse volume e nesse lugar é a referência importante do “ato de julgar”, título escolhido pela própria Arendt para o terceiro tomo de sua grande trilogia [...] inacabada. Exigia a ambição deste volume lembrar que o ato de julgar não está encerrado nas dependências dos tribunais, conforme poderia erroneamente sugerir nossa própria insistência em fazer do judiciário o foco privilegiado do jurídico. Foi bom que um retorno ao Kant da terceira Crítica levasse de volta ao foco de nosso exame a problemática do juízo reflexivo que, no próprio Kant, engloba, além do juízo do gosto, o juízo teleológico e, através dele, toda a filosofia da história. Sugere-se assim que a teoria da justiça poderia ser retomada, num novo esforço, dentro da própria problemática amplamente kantiana, caso deslocássemos o ângulo de ataque da Crítica da razão prática para a Crítica da faculdade de julgar.

Muitas coisas podem ser pensadas a partir desta sugestão de Ricœur de pensar a teoria da justiça no escopo de uma teoria do juízo, ou melhor, numa lógica da sabedoria prática. Parece que o passo decisivo aqui é que o juízo reflexivo possui um caldo de imaginação capaz de inundar o campo da ética e isso pode produzir certa ruptura com uma moral deontológica e imperativa, ao modo de um saber sobre prática, como Ricoeur denuncia no artigo “A razão prática”[9], ou como acabamos de ler, “caso deslocássemos o ângulo de ataque da Crítica da razão prática para a Crítica da faculdade de julgar”.

É verdade que a ideia de phronesis de Aristóteles parece conflitar com o Kant da Crítica da razão prática, que ao fim e ao cabo pretendia exercer um saber sobre a prática, mas não com o Kant da Crítica do juízo. Talvez estas questões nos ajudem a refletir e nos obriguem a uma releitura da “pequena ética” de O si-mesmo como outro, prevendo estes novos desdobramentos inusitados de O Justo 1, ao mesmo tempo que nos permitem também explorar o papel da imaginação na configuração da perspectiva teleológica da ética ricœuriana que deságua na sabedoria prática do julgamento em situação, que procura estabelecer ou criar uma regra nova para o caso, com o auxílio da imaginação. Talvez estaríamos aqui no plano de um entrecruzamento mais produtivo entre ética e estética, que dá muita margem para a relação produtiva entre narrativa e ética que Ricoeur explora em sua obra.

Referências 

APEL, Karl-Otto. Transformação de Filosofia II. O a priori da comunidade de comunicação. Tradução Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2000.

ARENDT, Hannah. Apêndice - Julgar: Extratos de lições sobre a filosofia política de Kant. In: A vida do espírito, Volume II: Querer. Tradução João C. S. Duarte, Lisboa: Piaget, 2000.

ASSY, Bethania. Julgar. In CORREIA, Adriano (Org.) Dicionário Hannah Arendt. São Paulo: Edições 70, 2022.

GADAMER, Hans G. Verdade e método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.

GINZBURG, Carlo. Controlando as evidências: o juiz e o historiador. In: NOVAIS, Fernando A.; SILVA da, Rogério F. Nova história em perspectiva. São Paulo: Cosacnaify, p. 342-358, 

KANT, Immanuel. A crítica da faculdade de julgar. Tradução Fernando Costa Mattos. Petrópolis: Vozes, 2016.

RICŒUR, Paul. História e verdade. Tradução F. A. Ribeiro, Rio de Janeiro: Forense Editora, 1968.

RICŒUR. Paul. Do texto à ação. Ensaio de hermenêutica II. Tradução José Sarabando e Alcino Cartaxo. Porto: Rés, 1989.

RICŒUR. Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução Alain François [et. al]. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. 

RICŒUR. Paul. O Justo 1: A justiça como regra moral e como instituição. Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008a.

RICŒUR. Paul. O Justo 2: Justiça e verdade e outros estudos. São Paulo: Martins Fontes, 2008b.

RICŒUR, Paul. O si-mesmo como outro. Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

------------

Notas

[1] Trabalho apresentado no I Congresso Internacional da Rede Brasil-Ricœur: Identidade e hermenêutica crítica, realizado na UNICAMP - Campinas-SP, posteriormente revisado, constituindo parte dos resultados da pesquisa de Pós-Doutorado intitulada “A problemática ética da narrativa em Paul Ricoeur”, desenvolvido na Unicamp sob supervisão da Professora Dra. Cristina Henrique da Costa.

[2] Desenvolvemos na UESB o projeto de pesquisa Institucional sobre “A hipótese de uma hermenêutica Jurídica em Paul Ricœur”.

[3] Respectivamente “Quem é o sujeito do direito?” (p. 21-31) e “Conceito de responsabilidade. Ensaio de análise semântica” (p. 33-61).

[4] “É possível uma teoria puramente procedimental da justiça? A propósito de Uma teoria da justiça de John Rawls” (p. 63-88). 

[5] “Depois de Uma teoria da justiça de John Rawls” (p. 89-110). “A pluralidade das instâncias de justiça” (p. 111-132).

[6] Ver a respeito ASSY, Bethania. Julgar. In CORREIA, Adriano (Org.) Dicionário Hannah Arendt. São Paulo: Edições 70, 2022.

[7] Fazemos referência aqui ao famoso artigo de Ricœur “O paradoxo político” artigo que teve uma grande repercussão em meio aos eventos de Budapeste e que fora publicado na Revista Esprit de maio de 1957 e depois agregada à segunda edição de História e verdade de 1964.  

[8] “Pragmática transcendental” é a denominação que Karl Otto Apel confere à própria fundamentação última da filosofia em substituição a uma metafísica essencialista clássica ou puramente transcendental com a de Kant. Baseia-se em Kant (transcendental), mas o a priori deriva do uso da linguagem na comunidade de comunicação (pragmática).

[9] RICŒUR. Paul. A razão prática. Do texto à ação. Ensaio de hermenêutica II. Tradução José Sarabando e Alcino Cartaxo. Porto: Rés, 1989, p. 237-258.