Antropologia e cosmovisão católica em Papa Francisco à luz das reflexões de Romano Guardini e Gaudium et spes

Anthropology and Catholic worldview in Pope Francis in light of the reflections of Romano Guardini and Gaudium et spes

Talis Pagot
Doutor em Teologia Moral pela Pontificia Università Gregoriana (PUG), Roma, Itália. Professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), RS, Brasil. Contato: talis.pagot@pucrs.br

Rafael Martins Fernandes
Doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Lateranense (PUL), Roma, Itália. Professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), RS, Brasil. Email: rafael.martins@pucrs.br


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Resumo: O presente artigo busca mostrar a profunda sintonia entre o modo de pensar a realidade a partir do proposto como método em Romano Guardini, a reflexão presente em Gaudium et spes e o magistério de Francisco, que se nutre de elementos de reflexão dessas duas fontes. Por outro lado, o texto pretende demonstrar que os elementos antropológicos e a cosmovisão de Papa Francisco são um instrumento metodológico e conceitual de trabalho fundamentais para um diálogo aberto e construtivo com o mundo. Após apresentar os três modos de olhar o mundo, com seus elementos de reflexão antropológica, bem como a maneira que Francisco acolhe as contribuições de Guardini e da Gaudium et spes, percebe-se a grande capacidade de diálogo e discernimento do Papa em questões de grande impacto mundial como a ecologia e a paz, fruto de um olhar aprofundado e complexo sobre a realidade. 

Palavras-chave: Cosmovisão católica; Antropologia; Igreja e diálogo com o mundo; 

Abstract: This article seeks to demonstrate the profound harmony between the way of thinking about reality proposed as a method by Romano Guardini, the reflection present in Gaudium et spes, and the Magisterium of Francis, which is nourished by elements of reflection from these two sources. On the other hand, the text aims to demonstrate that the anthropological elements and the worldview of Pope Francis are a fundamental methodological and conceptual tool for an open and constructive dialogue with the world. After presenting the three ways of looking at the world, with their elements of anthropological reflection, as well as the way in which Francis welcomes the contributions of Guardini and Gaudium et spes, one can see the Pope's great capacity for dialogue and discernment on issues of great global impact such as ecology and peace, the fruit of a deep and complex view of reality.

Keywords: Catholic worldview; Anthropology; Church and dialogue with the world

Introdução

Um dos grandes desafios da teologia contemporânea é encontrar pontos de diálogo com o mundo e as novas realidades que surgem a cada momento. Na atualidade, as mudanças em diversos âmbitos – científico, tecnológico, antropológico, cultural e outros – são cada vez mais constantes, numa velocidade que, por vezes, assusta. E difícil estabelecer conceitos "definitivos", menos ainda no que se refere à identidade da pessoa humana. Poucos arriscam a falar em identidade, dada a fluidez e as desconstruções que sofre a ideia de uma natureza humana.

O Concílio Vaticano II, na Constituição Gaudium et spes (GS), na década de 1960 do século passado, evitou dar uma definição fechada daquilo que é o ser humano, ao modo do que fez Boécio no século VI, visto as grandes mudanças e descobertas, sobretudo no campo da psicologia do profundo daquele período. O concílio não renunciou ao conceito de pessoa, buscando uma visão mais aberta e capaz de se enriquecer no tempo, e estabeleceu pressupostos irrenunciáveis, como a dimensão transcendental do ser humano e a dignidade da pessoa, como podemos ver nos trabalhos de Chiavacci (1986) e Burgos (2013).

A capacidade de dialogar com o mundo e as suas mudanças exige não pouco esforço intelectual, mas exige ainda mais uma atitude aberta a entrar em contato com o diferente, sem preconceitos, mas com clareza da própria identidade de fé. Romano Guardini demonstrou essa capacidade e esforço já no início do seu percurso acadêmico, ao buscar um modo de pensar que compreendesse a totalidade e a complexidade do real, sem anular as realidades que parecem contrapostas, buscando pontos de unidade. Esse modo de pensar e ver o mundo é formulado em boa parte na lição inaugural do seu curso de Filosofia da Religião, em 1923, com a teoria da cosmovisão católica, e na obra Der Gegensatz, de 1925, com a teoria do contraste[1] (GUARDINI, 1925). 

O modo de enxergar a realidade e o mundo em que se está inserido é determinante para a ideia contemporânea de ser humano. É evidente que partir de uma visão utilitarista de mundo é muito diferente de uma visão cristã. Isso influencia o modo de conceber o ser humano e aquele conceito tão caro ao cristianismo e ao Ocidente como um todo, que é a pessoa. Romano Guardini, sensível aos apelos do seu tempo, busca um modo de ver o mundo que se distancie de um olhar fragmentado e de estilo manipulador, que visa dominar o objeto sem aprofundar a sua complexidade e conexão com o todo.

Francisco, por sua vez, tem uma grande capacidade de dialogar com o mundo atual (sendo, muitas vezes, malcompreendido) sem perder a essência do Evangelho. No documento que funda o governo do Pontífice – Evangelii gaudium (EG) –, ele deixa claro que o início de tudo é o Querigma e a comunidade de fé, que nasce do encontro com Cristo. Falar de ecologia, de fraternidade universal, de pacto global pela educação etc., não significa renunciar a fé cristã católica, pelo contrário, é necessário partir de uma cosmovisão católica para dialogar com o mundo atual, trazendo à tona os valores do evangelho.

O objetivo do presente artigo é, em um primeiro momento, mostrar que o modo de pensar a realidade, como método proposto por Romano Guardini, em sua cosmovisão católica e na teoria do contraste, está em profunda sintonia com o Concílio Vaticano II em Gaudium et spes e é assumido pelo magistério de Francisco. Em um segundo momento, pretende-se demonstrar que os elementos antropológicos e a cosmovisão de Papa Francisco são um instrumento metodológico e conceitual de trabalho fundamentais para um diálogo aberto e construtivo com o mundo. Essa modalidade oferece elementos importantes para propor uma pastoral em saída e em diálogo com a realidade de cada tempo, com o intuito de formar aquilo que é mais precioso dentro da perspectiva do chamado de Deus para a humanidade, que é a comunhão, passo fundamental para a formação de uma verdadeira comunidade humana, unida para enfrentar os grandes desafios do tempo, como é o da ecologia e o da paz, criando, assim, sinais de esperança.

No primeiro ponto, será apresentada a cosmovisão católica e alguns aspectos antropológicos em Romano Guardini, buscando expor os principais elementos fornecidos pelo autor, que favorecem uma visão profunda e complexa da realidade e da gama de relações no mundo, oferecendo uma visão antropológica em relação com o todo. Num segundo momento, será analisada a cosmovisão na Gaudium et spes e o modo como a Igreja deve buscar se relacionar com o mundo, tendo em conta o princípio da encarnação, capaz de unir o olhar sobre a realidade humana e a complexidade do mundo com o agir divino nessa realidade. Por fim, o olhar será lançado sobre a cosmovisão e a realidade do ser humano no magistério de Francisco, que recebe influências do pensamento de Guardini e das reflexões de Gaudium et spes, manifestando uma grande capacidade de colocar os princípios recebidos por essas influências a serviço dos problemas de ordem global.

1. Antropologia e cosmovisão católica em Romano Guardini             

A antropologia de Romano Guardini parte da profunda relação entre o mundo, o homem e Deus. No que se refere ao ser humano, está contemplada a relação com o outro e com a comunidade, que fazem parte do mundo vivente. Esta última tem grande relevância para ele. Todavia, não é somente o espectro relacional, analisado na simples relação sujeito-objeto, que orienta a sua ideia sobre o homem. É fundamental o modo de ver o mundo e as relações que nele se encontram. Para tal, é importante o que Guardini entende por visão de mundo, expressa pela teoria da cosmovisão e, de modo especial, a cosmovisão católica. É preciso considerar, também, a teoria do contraste, obra de sua juventude, que influencia o modo de pensar de toda a sua obra seguinte (QUINTÁS, 1966). É bem verdade que o próprio autor apresenta algumas ressalvas no prólogo da segunda edição, que gostaria de fazer alterações, mas diz que as ideias essenciais não perderam a validade e foram inclusive comprovadas com o passar do tempo (GUARDINI, 1996, p. 65).

Na teoria do contraste, o modo de olhar a realidade, sobretudo a realidade do ser humano, se dá percebendo a interconexão, o conjunto, a totalidade. Por isso, em sua reflexão, se empenha em:

Captar os aspectos do real que parecem opor-se, mas que, em realidade, se contrastam e complementam, [...] porque a vida espiritual está cheia de tensões internas, que vem expressas por diferentes esquemas: liberdade-norma, conteúdo-forma, imanência-transcendência, palavra-silêncio (QUINTÁS, 1966, p. 36, tradução nossa). 

Para Guardini, a captação do vivente-concreto, não pode acontecer apenas por meio do pensamento conceitual, que é instrumento do pensamento científico, mas deve acontecer também através da intuição, que é capaz de captar a totalidade da vida a partir do interior (Cf. GUARDINI, 1996, cap. 1). Existe uma unidade interna no homem, bem como nos outros seres vivos, que se dá a partir do interior. A teoria do contraste vai além da metodologia conceitual e da intuição pura; ela visa captar o todo a partir da unidade interior, sem fragmentação do ser, de modo especial na realidade humana (QUINTÁS, 1966, p. 14-16). 

O contraste, que não é oposição, é, na verdade, um limite na vida do homem que o ajuda a buscar a perfeição. A superação do contraste só acontece quando o aceitamos, sabendo que não podemos excluí-lo, pois essa é uma tensão necessária que ajuda a pensar no complexo, visto que os contrastes exigem olhar o todo e perceber que existe ali uma dimensão de contraposição e, ao mesmo tempo, de unidade, bem como a finitude que é própria da realidade humana. A sua total superação seria a morte (QUINTÁS, 1966, p. 54-55).

Por cosmovisão, se entende "um modo de conhecimento dirigido à realidade em conjunto, em concreto, de modo axiológico, com caráter de compromisso e com a distância perspectiva" (QUINTÁS, 1966, p. 223). Essa realidade em conjunto significa a totalidade, na qual cada coisa é percebida como se fosse um "órgão" do mundo, "que compreende em si o todo, enquanto está ordenada a ele" (GUADIRNI, 1957, p. 27, tradução nossa). Quintás (1966, p. 324-330) diz que a cosmovisão guardiniana busca: 1) apreender a totalidade do objeto, visando a "pluridimensionalidade do ser e do conhecer", apontando para "realidades complexas e ao complexo das realidades singulares"; 2) estudar as essências das realidades concretas, como o mundo em sua "peculiaridade e história", "em uma relação real de encontro"; 3) ver o mundo, fazendo um exercício de piedade, ou seja, um olhar profundo que contempla a realidade com inteligência, vontade e sentimento; 4) olhar o mundo com distância perspectiva ou de reverência, que conjuga amor e liberdade, proporcionando o encontro.

O mundo e as coisas que aí estão, e que o ser humano entra em contato, devem suscitar modos de relação que vão além da superficialidade e que necessitam de intimidade, ultrapassando a simples relação sujeito-objeto e a realidade interior-exterior, suscitando o chamado fenômeno do encontro. Esse fenômeno, segundo a síntese de Quintás (1966) sobre as considerações de Romano Guardini e Otto Friederich Bollnow (1965), na obra Begegnung und Bildung, necessita da chamada distância perspectiva, ou reverência frente ao ente que se contempla. A reverência impede a fusão, na qual ocorre a sobreposição de uma realidade sobre a outra, gerando domínio ao invés de respeito e estima. Ela permite, ainda, a entrega mútua, que gera encontro. O encontro cria comunidade, exigindo a renúncia do afã dominador, que só é possível na liberdade. Todavia, para o exercício das experiências de encontro, é necessária "uma verdadeira metanoia espiritual" (Quintás, 1966, p. 226, tradução nossa).

Em suas lições de ética na Universidade de Munich, Romano Guardini (2010a) aponta o encontro como uma das condições antropológicas que tornam possível o fenômeno ético. Ele diz que o encontro pode acontecer com objetos, desde que o "eu" frente àquele objeto consiga transcendê-lo ao invés de manipulá-lo. Porém, quando se trata de duas pessoas, surge a possibilidade da atenção ao sujeito, e o encontro se dá com o centramento de ambos no centro vital de cada um, que é o próprio sujeito, onde se entra na profundidade do ser, com a entrega e acolhida de ambos os lados. Isso exige também uma busca, que orienta um verdadeiro encontro. Exige um sair de si que revela a verdade da pessoa. O encontro revela a intimidade espiritual de cada pessoa, que requer abertura e despojamento para evidenciar aquilo que é a verdade do ser de cada um que se envolve nesse modo de relação (GUARDINI, 2010a, p. 186-197).

Além do encontro, o diálogo é fundamental na antropologia guardiniana, pois é gerador de encontros. É diante do outro, no estar face a face, nessa relação eu-tu que acontece verdadeiramente a realização da pessoa. Nesse encontro entre sujeitos, o homem se manifesta com o seu rosto interior e se compromete com o outro. Na relação eu-tu, a linguagem favorece a compreensão de si e é reveladora do eu interior, que sai em direção ao outro. É o que Guardini chama de dimensão transcendental da linguagem (GUARDINI, 2010b, p. 464).

A palavra, entre falar e calar, deve encontrar energia e direção. A energia deve vir do corpo, pois é dele que ela nasce e é nele que ela habita, e, quando é pronunciada, deve sair da totalidade do ser. Só assim ela se torna condição de encontro: 

Uma palavra que vai e vem das solidões dos dois através de um jogo de abertura do próprio mundo e da acolhida daquele outro. Trata-se de uma dança que entre palavra e silêncio permite às duas almas de ir e vir da solidão constitutiva ao encontro gerador (GUARDINI, 2009a, p. 123, tradução nossa).

Nesse caminho de aprofundamento das relações e na formação de encontros, que gera comunidade, o ser humano vai se realizando, mas só encontrará plenitude em Deus. O modo no qual o homem é em si mesmo e se realiza como tal, o seu ser-homem, acontece "somente na orientação constante àquele que é muito mais que si mesmo" (GUARDINI, 2010b, p. 451, tradução nossa), ou seja, somente em Deus o ser humano se realiza plenamente. Pois, "a pessoa do homem é, em seu mais profundo sentido, a resposta à chamada que Deus faz como a um tu" (GUARDINi, 2009b, p. 291, tradução nossa). Essa é a meta, a plenitude, mas é verdade que ela vai se realizando no encontro com o outro e com o mundo, onde esse ser humano atua, sobretudo na comunidade de pessoas. 

Uma questão muito importante para Romano Guardini é a relação entre as coisas do mundo, de forma especial a cultura, e a comunidade cristã, como expressão da teoria do contraste e da cosmovisão católica, sendo espaço de encontro e enriquecimento mútuo. Segundo Krieg (1997, p. 113), o pensamento do autor ítalo-tedesco sobre o modo de relacionar fé e mundo, ou fé e cultura, ainda não havia ecoado com maior impacto na Igreja, ao menos no que se refere ao magistério. Porém, no final de sua vida, ele viu isso acontecer na constituição pastoral do Concílio Vaticano II. Em Gaudium et spes, aparecem as polaridades entre fé e cultura, sob o impulso da iusta rerum terrenarum autonomia (GS 36), e o concílio se pergunta: "de que maneira [...] reconhecer como legítima a autonomia que a cultura reclama para si, sem cair num humanismo meramente terreno ou até mesmo hostil à religião?" (GS 56).

2. Antropologia e cosmovisão católica em Gaudium et spes 

A Gaudium et spes é a constituição magna sobre a pastoral no Concílio Vaticano II. Por meio dessa constituição, os padres conciliares, além de investigar e interpretar os novos "sinais dos tempos" (GS 4), ofereceram conceitos, princípios e critérios ético-teológicos para a ação eclesial no mundo contemporâneo. No centro da argumentação está o ser humano e a sua salvação (GS 3). O objetivo último dessa reflexão – que repercute a finalidade de todo o concílio – foi o de tornar a Igreja um sinal mais claro e eficaz do Cristo, o Bom Pastor, para os povos. 

A caracterização do modo como a Igreja age no mundo – a sua pastoralidade – exigiu dos padres, mais do que em outros documentos conciliares, a revisão e o aprofundamento da cosmovisão católica. A palavra "católico" tem sua raiz do grego kat-olos e significa "conforme a totalidade" – e indica uma visão integral sobre o todo (KASPER, 2012, p. 231). O concílio, imbuído dessa compreensão, buscou desfazer-se de visões parciais sobre o mundo presentes na história do cristianismo, de modo geral influenciadas pela filosofia neoplatônica, que possui um entendimento demasiado negativo do ser humano. Essas visões parciais foram reforçadas pelos conflitos da Igreja com a modernidade, como o acontecido na Reforma Protestante e na Revolução Francesa. O resultado foi a consolidação nos séculos XVIII e XIX de uma atitude eclesial de distanciamento das realidades terrestres, senão de fuga mundi (FERNANDES; COELHO NETO, 2023, p. 109-111, 117). 

A necessária atitude de (re)aproximação da Igreja com o mundo foi realizada no Vaticano II, a partir da clarificação da própria identidade eclesial e de uma compreensão mais positiva de mundo e de ser humano. Se a identidade da Igreja foi apresentada na Constituição Lumen gentium (cap. I e II), o oferecimento das linhas básicas para uma visão unitária do mundo e do ser humano foi dada somente na Gaudium et spes, ao fechamento das portas do concílio. 

Tendo em vista a unidade dos documentos conciliares, é necessário dizer que a Gaudium et spes completa a Lumen gentium, explicitando melhor a natureza da Igreja a partir da apresentação do locus onde ela está radicada – o mundo. Fica claro, na Constituição pastoral, que a Igreja não está separada dos povos e de suas culturas, mas está no mundo. A fim de superar dualismos espiritualistas, presentes em escritos de espiritualidade da época da Contrarreforma e que impunham uma cosmovisão bastante negativa sobre a realidade, o concílio trabalhou arduamente para aprofundar a concepção de mundo e de ser humano, segundo a genuína tradição católica. 

O aprofundamento da cosmovisão católica ocorreu, em primeiro lugar, por meio da utilização de uma nova metodologia. O método indutivo, aplicado na Constituição pastoral, partia da condição humana atual (GS 4-10) para, em um segundo momento, dialogar com a teologia dogmática (GS 11-45) e a pastoral (GS 46-93). Tal procedimento reproduziu a abordagem indutiva da Encíclica Pacis in Terris de Papa João XXIII e permitiu o estabelecimento de um círculo hermenêutico entre a experiência de fé e os dogmas, a pastoral e a teologia, evitando abstrações que faziam pouco sentido para a sociedade moderna. Conforme Nicola Ciola (2013, p. 53-54, 58-65), esta unidade entre pastoral e teologia, realizada pelo método indutivo, era garantida teologicamente pelo princípio da encarnação do Verbo, no qual Deus assumiu a nossa carne de um modo radical e de uma vez para sempre. Logo, se o modo dialógico de fazer teologia corresponde ao modo de Deus intervir no mundo, este é conatural à cosmovisão católica. 

Vale dizer que o princípio da encarnação se tornou o fio condutor de toda a reflexão da Gaudium et spes, unindo e articulando temas que até bem pouco tempo atrás não eram considerados a pleno título capítulos de teologia (cultura, família, sexualidade, economia, política, paz, cooperação internacional). Nesse sentido, é relevante a teologia dos sinais dos tempos. Em sintonia com a cosmovisão guardiniana, o concílio buscou aproximar-se das realidades terrestres com um olhar de reverência, respeito e estima, reconhecendo a complexidade do "mundo dos homens" (GS 3). Isso possibilitou discernir e encontrar os sinais do Espírito de Deus nas diferentes culturas. Como resultados inovadores, tem-se o reconhecimento da justa autonomia das realidades terrestres (GS 36) e a aceitação de que a Igreja, como comunidade visível, também aprende com as culturas para melhor transmitir a Boa-Nova (GS 44). 

O princípio da encarnação, articulado aos conteúdos bíblicos e dogmáticos da Gaudium et spes, também permitiu a sistematização de elementos de antropologia teológica. Segundo Henri De Lubac (apud BRAMBILLA, 2003, p. 178), "a Gaudium et spes é a constituição que explicitamente quis propor os 'primeiros traços de uma antropologia cristã'". Deixando em segundo plano as divergências posteriores de interpretação sobre a antropologia conciliar[2], tomamos como referência dois movimentos que o Vaticano II realiza de um modo geral e que podem ser aplicados ao estudo do ser humano no documento em questão. O primeiro movimento é vertical, de centramento da antropologia no mistério de Cristo. O segundo é horizontal, voltado para a compreensão do ser humano como um ser de relações: em comunidade, em sociedade e com o universo. 

No que diz respeito ao movimento de centramento da antropologia no Cristo, este é desenvolvido no primeiro capítulo da parte doutrinal, intitulado A dignidade da pessoa humana. A partir de uma fundamentação trinitária e histórico-salvífica, Cristo é apresentado como o revelador do ser humano e a resposta para os dramas insolúveis da humanidade (GS 22). O eixo dessa reflexão é a dignidade humana desvelada na encarnação do Verbo de Deus. Essa dignidade é mostrada, em um primeiro momento, na criação do homem e da mulher como imago Dei (Gn 1,26-27). Criados à imagem e semelhança de Deus, eles são capazes de conhecer e amar a Deus, colocando-se como administradores de todos os bens criados (GS 12). Em seguida, afirma-se a unidade do ser humano, formado de corpo e alma, e dotado de consciência e liberdade excelentes (GS 14-17). Paralela a essa exposição, apresenta-se o drama do pecado e a realidade de morte (GS 13 e 18), que desfiguram a imagem divina do ser humano. Por fim, o capítulo é encerrado com a resposta última do ser humano para a questão do sentido de sua existência em meio à condição pecadora e mortal, apontando para o Cristo, verdadeiro Deus e ser humano perfeito, que restituiu aos filhos de Adão a semelhança divina (GS 22). Como se vê, o capítulo é querigmático e oferece uma resposta sobre a natureza humana que só pode ser encontrada na Revelação de Jesus de Nazaré como o Filho de Deus. O princípio da encarnação redentora permite tais desdobramentos. 

Quanto ao movimento horizontal de investigação do mistério do ser humano, este é desenvolvido sobretudo nos capítulos dois e três da primeira parte da Constituição, denominados respectivamente como A comunidade humana e A atividade humana no mundo (GS 24). 

O capítulo A comunidade humana colhe as melhores reflexões do mistério da encarnação redentora ao afirmar o chamado fundamental de todo o ser humano a viver a caridade de Cristo. Pois é no seguimento ao crucificado-ressuscitado, que fez de sua vida uma doação total de amor, que o homem pode se encontrar plenamente e ser feliz (GS 24). No mesmo parágrafo, o mistério da comunhão trinitária completa essa afirmação: 

Quando o Senhor Jesus pede ao Pai 'que todos sejam um..., como nós somos um' (Jo 17,21-22), sugere, abrindo perspectivas inacessíveis à razão humana, que há certa analogia entre a união das pessoas divinas entre si e a união dos filhos de Deus na verdade e na caridade (GS 24). 

Os desdobramentos dessa antropologia trinitária e cristocêntrica se fizeram sentir no apelo à superação de uma ética individualista (GS 30) e à consolidação dos princípios do bem comum, do respeito e da solidariedade universais, da igualdade e da justiça (GS 26-29). 

No que diz respeito à relação do ser humano com o mundo, o capítulo A atividade humana no mundo abre perspectivas inovadoras ao considerar o ser humano como colaborador na obra da criação e redenção divinas. Segundo Gaudium et spes 34, a atividade humana, quando voltada para a melhoria das condições de vida, considerada em si mesma, corresponde à vontade de Deus e, portanto, engrandece ao Criador. O número 36 da Constituição aprofunda essa reflexão ao afirmar o valor do trabalho profano. Quando esse é fruto da obediência a Deus, adquire um significado religioso, pois "as realidades profanas e as da fé têm origem no mesmo Deus". Conforme Libanio e Pin (2015, p. 648), tais afirmações conciliares estão pautadas na tese teológica da criação continuada, na qual Deus pode se revelar pela ação de suas criaturas. No seu conjunto, a reflexão sobre a atividade humana supõe uma visão do mundo que é complexa e que aceita as tensões e os contrastes, integrando-os na única realidade criada e redimida por Deus. Essa percepção histórica e mistérica da realidade permite afirmar, conforme Carmody Grey (2020), a posição do ser humano em Cristo como o ponto de ligação entre todas as coisas. Ou, de um modo mais ousado, dizer que o ser humano é de certo modo um microcosmos, que resume a complexidade do universo. Ambos – homem e cosmos – não se excluem, mas se completam e se explicam. 

Por fim, mesmo que o concílio não queira ter afirmado uma cosmologia na Gaudium et spes, esses breves traços da relação do ser humano com o universo são significativos para a consolidação de uma cosmovisão católica integral e arraigada nas Sagradas Escrituras. Permitirão novos desdobramentos no magistério posterior, sobretudo com o advento de novos sinais dos tempos, como a da crise ecológica que presenciamos.

3. Antropologia e cosmovisão católica no magistério de Francisco

O Papa Francisco, no início do seu magistério, apresenta, em Evangelii gaudium, aquilo que seria a linha condutora do seu pontificado, convidando para "uma nova etapa evangelizadora" na Igreja, marcada pela alegria do encontro com Jesus (EG 1). Para o pontífice, no centro da ação evangelizadora deve estar o Querigma, sendo que tudo parte da experiência do encontro com o Senhor (Cf. EG 1-8; 11). É importante recordar o cerne do seu plano evangelizador, pois deve servir como chave de leitura para os demais documentos, de modo especial aqueles que dialogam diretamente com o cenário global, como as Encíclicas Laudato Si' (LS) e Fratelli tutti (FT).

Três questões são de bastante relevância antes de abordar os aspectos de diálogo com o mundo dentro da cosmovisão católica de Francisco: 1) o método indutivo adotado por ele, baseado no ver-julgar-agir, no qual o ver não deve significar um olhar apenas técnico sobre a realidade, mas um olhar de discípulo, na dinâmica do discernimento dos "sinais dos tempos"; 2) a cultura do encontro, visto que o encontro é aquele lugar de acolhimento e enriquecimento mútuo, como indicado por Guardini; e 3) os quatro princípios relacionados com tensões bipolares próprias da realidade social e que instigam o discípulo a ter um olhar esperançoso (construtivo): o tempo é superior ao espaço; a unidade prevalece sobre o conflito; a realidade é mais importante que a ideia; o todo é superior à parte.

No que diz respeito ao método, foi visto na seção anterior que o método indutivo utilizado por João XXIII em Pacem in terris, havia sido adotado pela Gaudium et spes, no concílio. Esse mesmo método é retomado por Francisco, dentro da dinâmica do discernimento. Como ele mesmo observa, o diagnóstico (o olhar sobre a realidade) deve ser fruto de um discernimento à luz do Evangelho e não um diagnóstico realizado apenas pelas ciências sociais. "É o olhar do discípulo missionário que 'se nutre da luz e da força do Espírito Santo'" (EG 50).

A cultura do encontro, por sua vez, é o eixo do diálogo com o mundo e, ao mesmo tempo, ponto fundamental para uma antropologia de base cristã católica adequada, visando à criação de verdadeiras comunidades humanas. Por cultura do encontro, se compreende um modo próprio de estar no mundo, de olhar, se aproximar e dialogar com as pessoas. Exige um esforço de renunciar à superficialidade das relações e perceber o que está no profundo da realidade: "não só vendo mas olhando, não apenas ouvindo mas escutando, não só cruzando-se com as pessoas mas detendo-se com elas, não só dizendo 'que pena, pobrezinhos!' mas deixando-se arrebatar pela compaixão". A cultura do encontro deve se transformar em estilo de vida – exigência para o cristão –, pois revela o modo próprio de ser e de agir de Jesus, orientando a missão pela via da caridade, opondo-se à cultura do descarte (Cf. CHRISTUS VIVIT 169; 183; 222).

Os quatro princípios, relacionados às tensões bipolares, são recorrentes nos ensinamentos do Papa Francisco. Foram formulados por ele no período de seus estudos doutorais sobre Romano Guardini, quando se debruçou sobre a estrutura do real e a teoria do contraste (BORGHESI, 2018, p. 111-112). Os princípios visam ajudar as pessoas e as instituições na arte de conduzir os mais variados processos humanos, em perspectiva sinodal e de esperança. Está fortemente conectado ao método indutivo. Quanto ao primeiro princípio, o tempo é superior ao espaço, Bergoglio conjuga a polaridade tempo-espaço dando prioridade aos processos de longo prazo, colocando em segundo plano os espaços de poder que tendem a ser centralizados (EG 222). Com o segundo princípio, a unidade prevalece sobre o conflito, o papa incentiva a aceitar, suportar, resolver os problemas e transformá-los em elos de um novo processo. Ele afirma: "Quando paramos na conjuntura conflitual, perdemos o sentido da unidade profunda da realidade" (EG 226). No terceiro, a realidade é mais importante que a ideia, Francisco não despreza o valor da ideia, mas chama a atenção para o valor decisivo do concreto e do existencial no momento de se tomar decisões. Enfim, o quarto princípio, denominado o todo é superior à parte, é um convite a "não [...] viver demasiado obcecado por questões limitadas e particulares" (EG 235), mas a alargar o olhar para perceber o bem maior para todos. O modelo da figura do poliedro, "que reflete a confluência de todas as partes que nele mantêm a sua originalidade" (EG 236), inspira a busca por alternativas que levem em consideração todas as partes envolvidas no processo, especialmente os mais pobres.

Os princípios de Bergoglio indicam a profundidade de olhar sobre a realidade sob o sinal da esperança e apontam para os quatro objetivos da Cosmovisão guardiniana relatados na primeira seção: apreender a totalidade, olhar a essência, fazer um exercício de piedade (olhar profundo) e se aproximar com reverência ou distância perspectiva, para melhor penetrar na complexidade.

A partir dessas premissas, se estabelece o modo que Francisco propõe que a Igreja olhe para o mundo e se relacione com ele. Em síntese, ele pede um olhar de discípulo atento à realidade; um olhar acolhedor; e um olhar construtivo, cheio de esperança (RIBEIRO, 2022, p. 95). Essa forma de ver o mundo perpassa as ações, mensagens e documentos de seu pontificado. Citamos entre as ações a promoção dos movimentos populares, o desenvolvimento de um modelo econômico inclusivo, denominado "a economia de Francisco e Clara", o Pacto Educativo Global, a realização do Sínodo da Amazônia e o cuidado pela "casa comum", a promoção do ecumenismo e do diálogo inter-religioso (SOUZA, 2022, p. 35-72). No que tange aos documentos, em vista da delimitação do nosso tema, optamos em aprofundar apenas as encíclicas sociais Laudato Si' e Fratelli tutti, que tratam diretamente da antropologia e cosmovisão católica. Nessas encíclicas, apresentam-se duas crises – a ambiental e a social – diretamente ligadas a uma crise mais profunda, que é a antropológica.

Ao propor uma encíclica sobre as diversas preocupações ecológicas que afetam o globo, Francisco utiliza algumas expressões importantes no tocante da antropologia: "casa comum", "ecologia integral" e "tudo está interligado". O termo "ecologia integral", central para a compreensão da encíclica, quer unir duas preocupações interligadas, a dimensão humana e a dimensão social (LS 137). O papa diz que, "quando falamos de 'meio ambiente', fazemos referência a uma particular relação: a relação entre a natureza e a sociedade que a habita" e que as soluções devem considerar "as interações dos sistemas naturais entre si e os sistemas sociais" (LS 139). Não há, portanto, duas realidades desconexas – a natureza e a sociedade –, nem mesmo duas crises separadas que derivam dessas realidades. Há um único sistema socioambiental em crise. Nesse sentido, a solução para os problemas do meio ambiente "requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e simultaneamente, cuidar da natureza" (LS 139). 

Laudato Si', como observa Benanti (2017), busca acolher uma visão holística do problema ecológico, considerando a complexidade dos fenômenos, bem como uma visão chamada reducionista, que divide a análise em diversos ecossistemas, observando os detalhes de cada componente; contudo, buscando integrar e superar as duas visões, por meio daquilo que o papa chama de ecologia integral. Três características são importantes a considerar na ideia de ecologia integral: 1) a interação dos sistemas naturais e dos sistemas sociais; 2) a visão integral e integradora, indo além da simples soma dos saberes; 3) a consideração da dimensão espiritual, que ultrapassa a simples análise racional da realidade, colocando em jogo a conversão do estilo de vida e do modo como se entende a criação, bem como do tipo de cuidado que se emprega (BENANTI, 2017, p. 84-87).

O cuidado com a casa comum é uma tarefa que exige abertura à cultura ecológica atual, ajudando a superar o ecologismo reducionista, sabendo integrar os sistemas naturais e sociais, a partir de uma visão integral e integradora, enraizada em uma dimensão espiritual, ou seja, uma visão de mundo preocupada com o bem comum e com o alcance de uma plenitude humana, que contemple relações de respeito mútuo e cuidado, ou seja, relações de encontro. Surge, aqui, uma visão antropológica integral, preocupada com o bem humano, sobretudo com os que mais sofrem, bem como com o meio ambiente que acolhe uma vida humana e a permite viver com dignidade.

A Encíclica Fratelli tutti, destinada ao tema da fraternidade e da amizade social, retoma a metodologia indutiva, como também repercute vários elementos antropológicos da Gaudium et spes, sobretudo aqueles contidos no capítulo intitulado A comunidade humana

No que diz respeito à recuperação da antropologia conciliar, é válido notar o cristocentrismo subjacente na exposição do documento em questão. Mesmo que a encíclica tenha sido dirigida a pessoas de diferentes credos e culturas (FT 56), o papa apresenta o ensinamento de Cristo sobre a fraternidade universal, descrevendo e analisando de modo pormenorizado a parábola do bom bamaritano (Lc 10,25-37; FT, cap. II). Na narração da caridade "sem fronteiras" do samaritano, manifesta-se o amor incondicional de Cristo por toda a humanidade. Brotam deste ensinamento evangélico dois elementos antropológicos que são centrais também na Gaudium et spes: o grandioso valor da dignidade de todos os seres humanos (GS 12-22; FT 57-68, 106) e a excelência da virtude da caridade para a realização humana (GS 23-32; FT 1, 57-62, 81-87). 

No uso do método indutivo, o papa confronta-se com o avanço do individualismo e com um novo surto de políticas antimigratórias, acarretando no fechamento de fronteiras entre os povos; detecta o crescimento das guerras em várias partes do mundo; critica o uso desrespeitoso das mídias, que tantas vezes levam os usuários à relações humanas superficiais, dissimuladas ou até mesmo violentas; denuncia o colonialismo cultural de países desenvolvidos sobre os mais pobres (FT, cap. I). Os povos e as culturas, quando fechados em si mesmos e detidos em valores puramente imanentes, tornam-se narcisistas e empobrecem a si aos outros.

Diante de tal situação, o pontífice chama a atenção dos seus interlocutores para o fato de que a crise socioambiental vivenciada, em âmbito planetário, só poderá ser revertida se: a) todos tomarem consciência, especialmente os cristãos, da vocação da humanidade para a edificação da unidade. Tal vocação para a fraternidade tem o seu fundamento último na fé em Deus como Pai de todos (FT 46, 95, 272-276); b) fomentar a cultura do encontro como algo fundamental para o desenvolvimento dos povos e o progresso da evangelização (FT, cap. 3, 6 e 7); c) estabelecer processos humanizadores de diálogo, de abertura e de hospitalidade, sobretudo com os mais pobres e os que se encontram longe de sua pátria (FT cap. IV, V e VIII). Nesse quesito, Francisco utiliza os princípios relacionados às tensões bipolares. Como exemplo, no princípio, "o todo é superior à parte"; ele afirma que a política não deve se submeter aos setores econômicos e tecnocratas se quisermos, de fato, realizar o bem para todos (FT, cap. V).

Enfim, a cosmovisão e a antropologia de Francisco, de teor querigmático, indutivo, integral e esperançoso, fundamenta o agir da Igreja para os novos tempos, aplicando de maneira criativa os instrumentos metodológicos e conceituais de Guardini, em uma profunda consonância com a Gaudium et spes

Considerações finais

Nosso trabalho consistiu basicamente em fundamentar as bases teológicas da cosmovisão e da antropologia do Papa Francisco em Romano Guardini, mostrando também as conexões desses elementos teológicos com a Gaudium et spes. Esta fundamentação mostrou-se válida e pertinente para entender o pensamento de Francisco num âmbito legitimamente católico, mesmo que ele tenha sido interpretado por correntes ultraconservadoras como um papa que possui uma doutrina pouco sólida.

Mostramos, sob o ponto de vista teológico da Gaudium et spes, que a cosmovisão católica, ao possuir um olhar de fé centralizado em Jesus Cristo, como o Senhor da história, exige dos fiéis o mesmo movimento de encarnação que Ele realizou nas diversas realidades terrestres. Nesse sentido, o princípio da encarnação permite conectar a realidade humana e o mundo a Deus e a pô-lo em um movimento de reconciliação e de salvação em Cristo. Por sua vez, Romano Guardini, ao fundamentar essa visão teológica de comunhão em uma perspectiva antropológica e filosófica, explicita o modo como funciona o princípio da encarnação em meio à complexidade do mundo criado: por meio do diálogo feito de contrastes e tensões no qual a verdade vai aparecendo, de modo humilde naqueles que buscam e se deixam encontrar pelo(s) outro(s). Nessa visão profunda da realidade, encontra-se a Deus. Tem-se, então, uma autêntica compreensão cristã de ser humano e de cosmovisão católica.

Francisco, ao assumir esse modo de compreender a realidade – profundamente conectado à Revelação cristã –, propõe uma pastoral em saída e em diálogo com a realidade de seu tempo, inculcando nos fiéis aquilo que é mais precioso dentro da perspectiva do chamado de Deus para a humanidade, que é a comunhão. De fato, a comunhão é passo fundamental para a formação de uma verdadeira comunidade humana, unida para enfrentar os grandes desafios do tempo, como é o da ecologia e o da paz, criando, assim, sinais de esperança.

Referências

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[1]     Alguns optam por traduzir Der Gegensatz como "Oposição Polar", contudo, utiliza-se aqui a tradução de Alfonso López Quintás (1966), que traduz literalmente por "O Contraste".

[2]     Para o estudo da recepção pós-conciliar da Gaudium et spes, ver especialmente em Brambilla (2003, p. 180-230).