Ousadias Teológicas no Cuidado da Espiritualidade do Estudante de Medicina
Theological Daring in the Care of Spirituality of Medicine Students
Waldir Souza
Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Pós-doutorado em Bioética pelo Centro Universitário São Camilo. Professor no Bacharelado em Teologia da PUCPR. Professor no PPG em Teologia da PUCPR. Membro do Grupo de Pesquisa Teologia e Bioética. Professor no PPG em Bioética da PUCPR. Membro do Comitê de Ética e Pesquisa no Uso de Animais (CEUAs) da PUCPR. Contato: waldir.souza@pucpr.br
Simoni Maria Teixeira Ricetti
Doutoranda em Teologia (PUCPR). Mestre em Bioética (PUCPR, 2015). Especialista em Pedagogia (IBPEX, 2007). Graduada em Pedagogia (UTPPR, 2001). Bolsista CAPES. Contato: simoniricetti@gmail.com
Resumo
O cenário acadêmico vivenciado pelo estudante de medicina é permeado por crises de sentido. A falta de tempo para o cuidado de si marca a graduação de medicina diante de um curso com carga horária em tempo integral, alto nível de competitividade, ênfase na formação cognitiva em detrimento da formação humana. Transtornos alimentares, distúrbios do sono e depressão são apontados pelas pesquisas como um estresse decorrente na formação médica. Outros fatores são desencadeadores desse estresse: participar de procedimentos invasivos ou dolorosos, contato com a morte, morar longe da família, ter amizades somente dentro do círculo acadêmico e a não aplicação do conceito de qualidade de vida na própria vida. Diante desse quadro, o estudante de medicina passa a apresentar dores psíquicas. Dentro deste horizonte, o convite ao resgate do sentido da espiritualidade do estudante de medicina apresenta- -se para além de um imperativo ético. Nessa perspectiva, o diálogo entre a Teologia e a Bioética revelam-se como uma possibilidade de propor novas formas de cuidado perante a fragilidade do estudante, pois ambas trabalham em defesa da vida. A espiritualidade na Bioética vai numa direção de responsabilidade, de proteção e de cuidado diante da vida. Com sua visão sistêmica que lhe é peculiar, a Teologia tem um modo de perceber o ser humano à luz da revelação, considerando todo o seu dinamismo histórico, estando aberta a assumir tematicamente os problemas que o momento suscita. O objetivo deste artigo é verificar a influência da teologia no cuidado da espiritualidade do estudante de medicina na perspectiva da bioética. A metodologia utilizada foi a de pesquisa qualitativa bibliográfica. Analisou-se o contexto do graduando do curso de medicina junto à ética do cuidado e à Teologia, como importante fonte de base moral a salvaguardar o valor da vida. Espera-se que o contexto da educação médica se abra ao diálogo com a Teologia na busca do cuidado da espiritualidade do estudante de medicina, uma vez que ousadias teológicas são sempre um exercício do espírito humano.
Palavras-chave: Ousadias. Teologia. Espiritualidade. Medicina.
Abstract
The academic scenario experienced by the medical student is permeated by crises of meaning. The lack of time for self-care marks the medicine graduation in the face of a full-time course, a high level of competitiveness, emphasis on cognitive training to the detriment of human training. Eating disorders, sleep disorders and depression are identified by research as a common stress from medical training. Other factors are triggers of this stress: participating in invasive or painful procedures, contact with death, living away from the family, having friendships only within the academic circle and not applying the concept of quality of life in one’s own life. Faced with this situation, the medical student starts to present psychological pain. Within this horizon, the invitation to rescue the medical student’s sense of spirituality presents itself beyond an ethical imperative. In this perspective, the dialogue between Theology and Bioethics is revealed as a possibility to propose new forms of care in view of the student’s fragility, as both work in defense of life. Spirituality in Bioethics goes in a direction of responsibility, protection and care for life. With the systemic view that is peculiar to it, Theology has a way of perceiving the human being in the light of revelation considering all its historical dynamism, being open to take thematically on the problems that the moment raises. The objective of this article is to verify the influence of theology in the care of the medical student’s spirituality from the perspective of bioethics. The methodology used was that of qualitative bibliographic research. The context of the undergraduate medical student was analyzed along with the ethics of care and theology, as an important source of moral basis to safeguard the value of life. It is hoped that the context of medical education will start a dialogue with theology in the search for the care of the medical student’s spirituality, since theological daring is always a human spirit exercise.
Keywords: Darings. Theology. Spirituality. Medicine.
Introdução
A preocupação com a saúde mental do estudante de medicina tem sido discutida de forma significativa por pesquisadores na atualidade, e os mesmos apontam que as evidências de transtornos psiquiátricos e mentais dão seus primeiros sinais desde a escolha profissional, e ao longo da formação médica estes sinais acentuam-se de forma evidente. Situações como participar de procedimentos invasivos e dolorosos, de certa forma agressivos, o contato com a morte e a incapacidade de comunicar más notícias marca a graduação do curso de medicina. A predominância de transtornos alimentares, distúrbios do sono e a depressão são apontados pelas pesquisas como um estresse decorrente na formação médica (LIMA, DOMINGUES e CERQUEIRA, 2006).
Não obstante aos eventos comuns citados acima na profissão escolhida, a graduação de medicina é marcada por uma cultura de excelência gerando uma competividade desnecessária entre os colegas de curso, com o “eu preciso ser o melhor”, o que acaba por gerar certo descaso com o colega de classe, dando espaço para a formação de um ser egocêntrico, sem compromisso com o próximo e, por conseguinte, sem compromisso com a construção de uma sociedade solidária.
Diante de tantos eventos reais que ocorrem no curso de medicina observa-se que, além de problemas mentais, o estudante passa por problemas com relação à falta de sentido, desencadeando muitos conflitos de ordem espiritual, deixando- -o incapacitado de perceber seu lugar no mundo e até mesmo, de compreender o seu valor.
Frankl, 2017, p. 131, pontua que, “o vazio existencial manifesta-se principalmente num estado de tédio”. A falta de sentido expressa-se pela experiência de um vazio interior oriundo de questionamentos se a sua vida vale a pena ser vivida. Neste contexto, vale ressaltar que questionamentos existenciais não podem ser respondidos de forma geral porque o sentido da vida é divergente: as pessoas são diferentes, vivem momentos diferentes e tem experiências familiares diferentes.
A inicial depressão, bem costumeira no meio acadêmico, se não percebida pode levar a um enorme vazio existencial. O baixo rendimento nas aprendizagens do dia a dia, baixa autoestima e a insegurança influenciam nas atitudes e desempenho nas decisões práticas durante o período da formação médica, levando o estudante a querer desistir do curso e até mesmo pensar que o suicídio é a solução dos problemas (VASCONCELOS et al., 2015). Neste contexto, LIMA et al., 2006, p. 1, previnem: “Sugere-se que instituições formadoras estejam atentas a esse fato, estabelecendo intervenções voltadas ao acolhimento e ao cuidado com o sofrimento dos estudantes”.
1. Um olhar de cuidado ao sofrimento do estudante de medicina
Ademais a tudo o que foi referido ao contexto do curso de medicina, outros fatores são geradores de sofrimento nos estudantes. São muitos os casos de estudantes de medicina que não moram com a família e tem dificuldade de adaptar-se à nova cidade. Às vezes, o morar sozinho, a falta de tempo para o lazer e atividades físicas, a dificuldade de se fazer amigos fora do círculo acadêmico e a inabilidade de encontrar um método para estudar, gera um sentimento de impotência diante do curso escolhido e é muito comum a vontade de abandonar o curso, gerando não somente conflitos psicológicos, mas também conflitos espirituais.
Segundo Tempski:
O desencontro entre a realidade experimentada e a idealizada aparece também no resultado das avaliações, em que as notas podem não corresponder às expectativas do estudante que costumava ser um dos melhores. A perda desse status pode provocar desejo de abandonar o curso ou uma crise de identidade. Permanece ainda a angústia frente ao conteúdo a ser estudado, além da sensação de não retê-lo. Essa fase de adaptação ao novo método de ensino não paternalista exige do estudante mudança de postura e muita dedicação, obrigando-o a abdicar do lazer, exercícios e convívio social. Tais perdas provocam dor psíquica, vivência depressiva, tristeza, frustação e desânimo (2008, p. 22-23).
As angustiantes dores vivenciadas por tal contexto exigem dos professores, coordenação do curso e da própria faculdade/universidade um olhar de ternura para com o sofrimento do estudante. Ao acolher a angústia do estudante de medicina, espera-se que todos os envolvidos na formação desse futuro médico tomem consciência do quão urgente é entender o seu pedido de socorro. Para clarificar o entendimento das sensações ou sintomas da angústia, o Dicionário de Espiritualidade a define como:
O termo angústia tem a raiz greco-latina no verbo ango (apertar materialmente, em particular a garganta), comum aos termos sinônimos angusto (lat. angustia: propriamente estreitamento de lugar), ansiedade ou ânsia (lat. anxietas: propriamente opressão de espírito). Esses termos, sinônimos no uso comum, tiveram alguma conotação própria na linguagem científica. A palavra angústia (analogamente: ansiedade, ânsia etc.) possui múltiplos sentidos transportados para a linguagem dos literatos: dolorosa sensação de sufocamento, estado penoso de espírito, dor pungente. Na ciência médica a angústia significa o grau extremo de uma emoção dolorosa e persistente de constrição epigástrica, acompanhada de mal-estar geral, aceleração do batimento cardíaco e da respiração, tremor nos membros inferiores etc. (2012, p. 162).
De acordo com a interpretação psicanalítica freudiana, no Dicionário de Espiritualidade (2012, p.162-163) há três tipos de angústias estruturais originadas a partir de distintos mecanismos doentios:
a) Objectual: Surge a partir da percepção de um perigo efetivo no mundo externo. Traumas passados trazidos pelas lembranças podem dar mais legitimidade às situações perigosas. “A reação ansiosa, pois possui o escopo de antecipar a situação de perigo, permitindo ao indivíduo dominá-lo e enfrenta-lo adequadamente, ou fugir dele” (p.162).
b) Neurótica: É um medo, uma reação afetiva que surge em decorrência da percepção de uma situação de perigo, oriundos do mundo interior. Há três aspectos distintos da angústia neurótica: livre, fóbica e somatizada
Livre: é um tipo de angústia que não se sabe a causa, mas tem-se a sensação de que algo grave e perigoso está prestes a acontecer.
Fóbica: É um medo angustiante relacionado a lugares, pessoas e objetos que por nenhuma razão podem ser considerados perigosos, mas que trazem ao indivíduo temíveis sensações internas. “O perigo é projetado pelo indivíduo fora de si”. Ex: agorafobia, claustrofobia, sitiofobia etc.
Somatizada: Semelhantemente às fobias, também é uma angústia projetada, porém essa situação ocorre no soma do indivíduo e não em algum ponto privativo advindo do mundo externo. Esse tipo de angústia desencadeia uma série de enfermidades psicossomáticas.
c) Moral: Com relação à ansiedade, a moral que a psicanálise se refere não tem a mesma definição trazida pela filosofia. Para a psicanálise, “a moral que causa essas situações ansiosas é o “moralismo” rígido e impiedoso que oprime a consciência”. É um moralismo que se manifesta em termos negativos e não possibilita um amadurecimento. Apresenta-se na forma doentia de culpa e sensação de fracasso, caso a estrutura da personalidade tenha auferido o sofrimento ao acúmulo das exigências normativas. “É uma reação emotiva proveniente da percepção de um perigo causado pelo sistema de normas introjetadas pelo indivíduo (superego), que se manifesta com o sentimento de vergonha e culpa”.
Na Tese de Doutorado (2008) “Avaliação da qualidade de vida do estudante de medicina e da influência exercida pela formação acadêmica” da Professora Dra. Patrícia Tempski, a autora relata que para entender o conceito de qualidade de vida, deve-se ter a compreensão de que esta não se resume a apenas a saúde física, o conceito engloba também a saúde mental e social.
O estudante de medicina desconhece, não aprende e não aplica o conceito de qualidade de vida em sua formação acadêmica, e tem sua formação baseada nos modelos dos seus professores e preceptores. Estes, por sua vez, não são modelos ideais para se inspirar, pois a maioria não aplica o conceito de qualidade de vida em sua vida profissional, uma vez que trabalham horas a fio sem descanso, sem tirar até mesmo um tempo para realizar uma alimentação adequada. Os aspectos técnicos, as atitudes, os valores e padrões de comportamento levam a um processo de identificação na relação professor-aluno, não resumindo a função do professor a somente ensinar, mas servindo de modelo para a prática futura. Vale ressaltar que esse modelo serve tanto para bons hábitos quanto maus hábitos, com relação à futura atuação profissional e o cuidado da qualidade de vida (TEMPSKI, 2008).
Todos esses fatores, veladamente, são transmitidos aos alunos e, somados a um extenso currículo do curso de medicina, ocasionam ao estudante dor, sofrimento e angústia. É importante pontuar que toda essa situação de estresse tem seu início bem antes do estudante de medicina adentrar à universidade.
Por ser um curso altamente concorrido, a opção pela medicina vem carregada de abdicações, tais como: lazer, convívio com a família e amigos. A seleção inicial é marcada pela competitividade e a faculdade é sinônimo de um ideal muito desejado: o de ser médico. Passado o clima festivo e de comemorações com a família e amigos por sua conquista garantida através do seu desempenho, a realidade vem à tona. “O existir dentro da faculdade” exige que o aluno esconda as suas emoções, não demonstre sua fragilidade e sensibilidade, pois carregar o rótulo de frágil é tudo o que ele não precisa nesse contexto. Finalizado o período do ciclo básico, o ciclo profissionalizante possibilita que o aluno tenha contato com o paciente, com a doença e com a morte e, diante disso, nova crise se instala, e o mesmo tenta conduzir a situação mantendo uma distância da pessoa do paciente. Concluído o ciclo profissionalizante, “o internato é o momento de transição entre o modelo acadêmico e o vir a ser profissional” (p.23). É um período de mudança de papel, de autoavaliação e de verificação se realmente aprendeu. A complexidade da ação terapêutica envolve o dinamismo de ouvir, cuidar, servir, ter apreço e compaixão por quem sofre. A escassez de tempo para o cuidado de si é uma realidade no internato, pois este exige dedicação em tempo integral, e o último ano é de um estresse intenso, fazendo com que haja um declínio na saúde física e mental do estudante (TEMPSKI, 2008).
Toda essa realidade, que já se inicia desde a opção pelo curso de medicina, somadas a uma eterna cobrança de si, medo de decepcionar as pessoas que ama, querer retribuir o investimento feito pelos pais ou responsáveis legais, as mudanças no conceito de verdade e, até mesmo, assumir sua “orientação sexual”, causam no estudante um profundo sofrimento que, se não observado e cuidado, pode levar o estudante a fazer uso de álcool e drogas, tornando-se um dependente químico. Suicídios e pensamentos suicidas é algo, nesse contexto, que tem chamado a atenção dos pesquisadores. Numa revisão de literatura sob o título: Suicídio entre médicos e estudantes de medicina de Santa e Cantilino (2016), publicado pela Revista Brasileira de Educação Médica, os autores apontam que os resultados de taxas de suicídio nessa população são maiores do que as da população geral de outros grupos acadêmicos.
Pelo breve itinerário da vida de um estudante de medicina relatado acima, é possível perceber o grau de angústia vivenciado pela maioria deles. O cuidado com o sofrimento diante de uma população que busca por sentido para viver apresenta-se como um convite à construção de novos paradigmas educacionais, entre eles, resgatar o sentido da espiritualidade.
2. Um exalar da espiritualidade: na universidade e na relação professor-aluno
Para além da educação formativa, a universidade exerce papel central no espaço público, uma vez que ela deve estar compromissada com a participação atuante, responsável e solidária dos seus formandos e, para tanto, Bavaresco, 2004, p. 32, aponta o início deste caminho: “Considerar o ser humano em suas dimensões política, social, econômica e espiritual é o desafio que deve estar presente no horizonte das universidades”.
Segundo Souza:
No mundo globalizado, debilitado por valores éticos e morais, torna-se necessário que a universidade, além de valorizar a habilidade do aprender para o exercício da profissão escolhida, assuma compromisso de uma prática diuturna da atividade acadêmica em todas as suas dimensões: “Onde o compromisso com o ser e a convivência com a alteridade cultive a tolerância e o respeito ao próximo”. Uma universidade comprometida com a ciência, mas também com a cultura humanista alicerçada em valores éticos e espirituais (2008, p. 247).
Boff (2001) entende a espiritualidade como algo que produz mudança interior, capacidade de transformação, com possibilidade de se obter um novo sentido à vida através das vivências e de novos campos de experiência. Koenig (2012) corrobora com Boff (2001), ao pontuar que a espiritualidade em seus aspectos cognitivos busca por significado, procurando conferir um novo sentido à existência. Nesse sentido, Buber, 2011, p. 46, ensina que “nenhum encontro com um ser ou uma coisa no decorrer da nossa vida prescinde de um significado oculto”. Continuando, ele diz que em tudo há uma substância espiritual que foi colocada no nosso caminho e, se não a considerarmos, iremos nos restringir apenas ao seu uso, sem despertar uma relação genuína com o ser, dissipando assim uma existência pura e verdadeira.
Corrobora sobre o pensamento de Buber, o sentido do encontro, que para Lévinas:
O outro que está diante de mim não está incluído na totalidade do ser expresso. Ele ressurge por detrás de toda reunião do ser, como aquele para quem eu exprimo isto que exprimo. Eu me reencontro diante do Outro. Ele não é nem uma significação cultural, nem um simples dado. Ele é primordialmente sentido, pois ele o confere à própria expressão, e é por ele somente que um fenômeno como o da significação se introduz, de per si, no ser (2012, p. 50).
A ética da alteridade de Lévinas está intrinsicamente ligada ao cuidado do outro, é um mandamento de cuidado para com o próximo e com a promoção de ações que o beneficie dentro de suas necessidades. Nessa mesma direção, Anjos (2008) clareia a compreensão da espiritualidade na bioética a partir do sentido que ela se responsabiliza: Ela pode estar relacionada com um exercício do intelecto, porém não se reduz a isso. A espiritualidade na bioética é como um marco inspirador que dá sentido, uma direção nas atividades humanas.
A Bioética como toda atividade humana consciente, carrega em si um sopro ou inspiração, ou espiritualidade que impulsiona suas atividades reflexivas e propositivas. Segundo, que não serve qualquer espiritualidade para que a bioética se realize. De fato, quando falamos de espiritualidade na bioética, estamos supondo um conjunto seletivo de aspirações (respirações) e inspirações que levem na direção da responsabilidade, da proteção e do cuidado diante da vida (ANJOS, 2008, p. 25).
Em tempos regidos por uma virtualidade, em que o mundo concomitantemente passa por uma crise de valores, configura-se como um grande desafio para a universidade proporcionar ao estudante de medicina um tempo para o cuidado da sua espiritualidade.
Oliveira evidencia a questão do modelo ético do ser humano, que vem se concebendo numa sociedade de interações irreais e da necessidade de aproximação com os mesmos: “É preciso abrir sinceros espaços de interlocução com os jovens, adentrar em seus ambientes, dialogar com suas representações, compreender e se aproximar de suas expectativas, orientar seus projetos” (2013, p. 272).
Diante deste contexto, o processo educativo deve exalar alteridade. Cunha, interpreta o porquê da ação do professor ser moral, axiológica e ontológica.
É moral – porque o projecto educativo tenta cumprir a integração social e política dos indivíduos, constituindo para tal, normas, regras, costumes que dão suporte a esta dimensão moral e cívica. É axiológica – porque o sentido dos valores – o bem, o belo, a justiça, a solidariedade – dão (são) o suporte deste sentido moral. É ontológica – porque se preocupa com o ser em si – o eu ontológico. Parte de pressuposto que o indivíduo tem determinadas características (propriedades) e se desenvolvem em fases etapas bem diferenciadas (CUNHA, 2012, p. 109).
É imperioso que o professor exale alteridade em seu relacionamento com o aluno, que acolha-o em suas vulnerabilidades, e procure ser presença frente aos alunos que passam por conflitos.
Bons professores têm um desejo de ajudar seus educandos a aprender que transcende os desafios que o ensino cria. O ensino pode afetar as relações privadas que um médico estabelece com cada pessoa. Os faz ir devagar. Expõe suas fraquezas e áreas de ignorância. Dessa forma exige uma atitude positiva, bem como uma empatia, em relação aos educandos, mesmo quando seu comportamento frustra ou desagrada o professor. É essencial que os preceptores façam o que pregam: deve haver congruência entre o método clínico centrado na pessoa e o processo de ensiná-lo. Por exemplo, da mesma forma que o cuidado centrado na pessoa deve sempre ser feito como parte de uma relação curativa, o ensino também deve ocorrer em um contexto de atenção e cuidado com o educando como médico em desenvolvimento, e não apenas com a base de conhecimento (STEWART et al., 2017, p. 193).
Longe de se exigir que os professores assumam o papel de terapeutas, mas um olhar mais intenso e cuidadoso pode detectar que o educando esteja passando por conflitos. Auxiliá-lo no reconhecimento do seu problema e encaminhá-lo para um cuidado profissional oportuno é reconhecer o educando em sua integralidade. Siqueira, na edição nº 283 de setembro de 2018 no Jornal do Conselho Regional de Medicina, relata: “A universidade trabalha o positivismo tanto na área médica como jurídica, mas forma profissionais sem habilidades de ser e de conviver. Temos que olhar o ser que sofre e nos curvar”.
Sendo uma atividade humana, a espiritualidade possibilita que as competências intrapessoais e interpessoais sejam desenvolvidas, ao se estabelecer vínculo consigo mesmo e com os outros indivíduos, sendo, portanto, uma condição para o existir humano.
O termo espiritualidade pode incluir a todos, mesmo os não religiosos, pois a sua definição é baseada na busca inerente de cada pessoa pelo significado e pelos propósitos definitivos da vida. Esse significado pode ser encontrado na religião, mas muitas vezes pode ser mais extenso do que isso, incluindo a relação com uma figura divina ou com uma transcendência, relação com os outros, com a natureza, com a arte e com o pensamento racional (KOENIG, 2012).
Sendo assim Koenig, discorre sobre os seus aspectos:
A espiritualidade é uma parte complexa e multidimensional da experiência humana. Ela tem aspectos cognitivos, experienciais e comportamentais. Os aspectos cognitivos ou filosóficos incluem a busca do significado, do propósito e da verdade na vida, bem como as crenças e os valores de acordo com os quais a pessoa vive. Os aspectos experienciais e emocionais envolvem sentimentos de esperança, amor, conexão, paz interior, conforto e suporte. [...] Os aspectos comportamentais da espiritualidade envolvem o modo como uma pessoa manifesta externamente as crenças espirituais e o estado espiritual interno (2012, p.13).
Partindo da premissa de Souza, 2008, em que o autor coloca que a universidade em sua tarefa educacional deve estar vinculada às ciências, mas também comprometida com valores humanistas fundamentados em valores éticos e espirituais, ressalta-se a importância de um trabalhar teológico e bioético no cuidado da espiritualidade do estudante de medicina.
3. Teologia e Bioética em defesa do cuidado da espiritualidade do estudante de medicina
A reflexão teológica já ocorria antes mesmo do nascimento da Bioética, “sendo os teólogos os primeiros a escreverem e lecionarem ética médica”. A Teologia e a Bioética tornam efetivo o compromisso ético por meio da experiência da fé, não a restringindo a apenas uma vivência espiritual, mas transformando o dia a dia no agir dos indivíduos. Quando a fé e as obras trilham o caminho em conjunto, ocorre a possibilidade de transformação e, de fato, a responsabilidade ética abre espaço para que ocorra um compromisso moral com todo o ser humano (MELO, 2017, p. 48).
Segundo Melo:
Há que se ressaltar, ainda, que com o passar dos anos e dos séculos, esse comprometimento ético vai se tornando, para além de uma experiência prática, uma reflexão moral, fazendo com que a Teologia tenha um papel importante de tornar essa mesma vivência, uma experiência que tenha sentido e que seja iluminada pela razão, e não fique à mercê do desenvolvimento doutrinário e dogmático (2017, p. 49).
Se a fé deve iluminar a razão, concluiu-se que diante dessa relação o compromisso ético também é um compromisso moral humano. A Teologia, como “importante fonte de base moral”, sempre buscará salvaguardar o valor da vida. A Bioética, por sua vez, também trabalha em defesa da vida, e tem “a peculiaridade de dar soluções racionais e pacíficas aos conflitos morais que se encontram presentes numa sociedade que tem, por principal característica, estabelecer-se numa cultura plural e secular” (MELO, 2017, p. 50).
Os artigos científicos tem trazido que cada vez mais cresce o índice de depressão em estudantes de medicina, assim como tem aumentado o número de suicídios, e aí despontam as interrogações: As escolas médicas tem se preocupado em criar espaços onde o estudante possa deixar transparecer as suas vulnerabilidades durante a formação médica? Como compartilhar os momentos de dissabor num estado de constante ranqueamento? Quais elementos pedagógicos a universidade deve buscar para atender aos apelos de sentido do estudante de medicina?
Devido ao amplo campo de atuação da bioética e sua relação com a ciência e com os valores humanos, esta provoca uma nova sensibilidade, trazendo à essência do respeito ao corpo e espírito da pessoa, num contexto de responsabilidade à vida humana. “Relaciona o valor primário da pessoa em respeito à sociedade” (URBAN, 2003, p. 8).
Boff, 2012, p. 152, aponta a tarefa do cuidado como uma arte pertencente e de acessibilidade à essência do humano e que precisa de dedicação. “Como tudo o que vive tem que ser sustentado, ele também precisa ser alimentado”. Boff (2012) ainda se refere ao cuidado, utilizando o termo “vigilante preocupação”, um cuidado que se desdobra em zelo, prudência, atenção e responsabilização por si e pelo outro. A espiritualidade inspira um movimento de transcendência de uma forma construtiva, podendo estar relacionada a melhoras no bem-estar e na saúde mental do estudante de medicina frente à sua vulnerabilidade.
Siqueira, no jornal do Conselho Regional de Medicina de setembro de 2018, cita os dados robustos que mencionam a insatisfatória formação dos médicos frente a determinadas situações “O aparelho é, em algumas circunstâncias, deformador. Mas como exigir de um egresso se ele não a aprendeu? A formação dos profissionais da saúde tem como base o modelo cartesiano, que particulariza o conhecimento fragmentado, não considerando a inseparabilidade do ser humano.
“O modelo cartesiano de educação acolhe o objeto, e não o sujeito, o corpo, e não o espírito, a quantidade, e não a qualidade, o periférico e não o nuclear, a razão, e não o sentimento, o determinismo e não a liberdade, o transitório e não o essencial. Como apreender o global, o multidimensional, o complexo e organizar o conhecimento para melhor compreender o ser humano, necessário protagonista de qualquer reflexão acadêmica?” (SIQUEIRA, 2008, p. 17).
Em sua obra “Pedagogia da Autonomia”, Freire (2018) salienta que ensinar exige disponibilidade de diálogo. Na relação dialógica inaugurada pelo gesto, a inquietação faz repensar a tarefa formadora, p. 134: “Como ensinar, como formar sem estar aberto ao contorno geográfico, social dos educandos?” E ele vai além, p. 138: “A afetividade não se acha excluída da cognoscibilidade”. Freire ainda afirma que a afetividade não pode interferir no dever ético do professor, condicionando a avaliação de um aluno com a benquerença que tenha por ele, mas declara como falsa a separação de seriedade docente e afetividade. Sendo assim, seriedade docente não significa que o melhor professor é o mais sério, severo e frio com os alunos.
Com suas inteligibilidades próprias, a Teologia e a Bioética podem muito contribuir diante de uma população universitária fragilizada que suplica por sentido. Pelo fato de ambas promoverem a manutenção de uma vida digna, elas sempre estarão abertas ao diálogo, oportunizando momentos de ressignificação e a busca do entendimento do humano.
Nesse sentido, o rosto do outro é um convite a olhar além do seu aspecto biológico, e provoca na Teologia a questão da alteridade como princípio da relação humana (JUNIOR, 2012).
Segundo Junior, p. 181:
A interface entre o pensamento da alteridade e a ética teológica permite repensar o plus da Revelação para com a compreensão da ação humana, não apenas demanda uma resposta ética diante da sua dor, mas seu Rosto se apresenta como “vestígio” do infinito, isto é, como lugar da passagem de Deus que se revela no padecimento do Rosto humano.
Debruçar-se pelo cuidado da dimensão espiritual dos educandos, especialmente daqueles que passam por conflitos de ordem espiritual e que perderam o sentido pela vida, é uma tarefa urgente, fascinante e humanizadora. Ser presença, acolhê-los em suas dores e possibilitar-lhes que se abram ao diálogo são requisitos básicos para que a relação se estabeleça. Sendo assim, “o diálogo é algo fundamental, não como estratégia, mas como princípio básico” (CNBB, 2016, p. 35).
Fretto e Souza (2019), no artigo “A Ternura: o grande projeto revolucionário”, enfatizam que a ternura é um elemento primordial “ao resgate da dignidade do outro atingido pela fragilidade humana” e que, no aspecto antropológico, a ternura pode ser entendida como uma unidade básica que “atinge todas as dimensões humanas, principalmente aquelas que contribuem para a construção da pessoa, tanto na esfera individual, como na social” (p. 73).
A ternura, passando da compreensão antropológica para teológica, é vista como compaixão. A partir do acolhimento ao Outro, vai se formando um movimento de transcendência. De forma integrada, a ternura tem a possibilidade de superar eficientemente o paradigma cartesiano. Esse sentimento torna-se revolucionário à medida que pode ser um instrumento de transformação. Na medida em que o ser humano toma consciência que pode ser ternura, encoraja-se a enfrentar as barreiras em defesa da sua própria dignidade (FRETTO e SOUZA, 2019).
4. A contribuição da Teologia para uma educação de emergência
Mesmo com todo o rico conhecimento e copiosos saberes antropológicos sobre o ser humano, as ciências humanas ainda não conseguiram responder tudo sobre o ser humano. Mesmo assim, Rubio (2001) não dispensa a mediação das ciências, em especial, das ciências humanas, para a compreensão do ser humano, considerando-as indispensáveis para a reflexão teológica. Ele acredita que cabe à teologia cristã aprofundar-se no entendimento sobre a pessoa humana, “tornando- -se comunicável e significativa para homens e mulheres do nosso tempo” (p. 84).
Segundo Rubio (2001): “A palavra sobre o homem, própria da fé cristã, possui uma inteligibilidade peculiar” (p. 83). Esta palavra situa-se fora do campo de verificação da metodologia científica e da razão filosófica. Afirma ainda: “Existem outras dimensões da realidade humana que possuem também a sua própria inteligibilidade, diferente daquela meramente científica” (p.83). Reafirma a mesma opinião com relação à razão filosófica.
Rubio (2001), ao discorrer sobre “O específico da palavra teológica sobre o ser humano”, questiona-se:
Como poderá a teologia falar com sentido sobre o ser humano? Que tem a teologia de próprio e específico que não seja apresentado pelas ciências humanas ou pela filosofia e que justifique a sua existência? Que “palavra” ela pode e deve dizer sobre o ser humano, palavra que só ela é capaz de falar? (p. 83).
Com seu método e discurso próprio de perceber a realidade, a Teologia não tem a intenção de tomar o lugar das ciências, mas se colocar como ciência. A antropologia teológica cristã estuda o ser humano à luz da revelação bíblica, considerando todo o seu dinamismo histórico. Sendo assim, ela torna-se pertinente e relevante. Pertinente porque leva com fidelidade seu rigor crítico e sistemático. Em decorrência disso, é perceptível a sua relevância à medida que “estiver aberta ao momento sócio-histórico e for capaz de assumir tematicamente os problemas que esse momento suscita” (RUBIO, 2001, p. 84).
As diretrizes nacionais da pastoral da educação chamam-nos a rever também a antropologia educacional. Diante disso, o ser humano precisa ser visto em sua integralidade, e a educação oferecida deve ser promotora de dignidade, considerando assim a dimensão filosófica, social, histórica, ecológica e teológica. A partir desse viés, a teologia apresenta-se como fundamental para o acolhimento do estudante de medicina, pois a teologia sempre estará a serviço da vida e aberta ao diálogo. Diante de uma pluralidade de profissões de fé, o espaço que se abre para a teologia nas escolas deverá ser um espaço inter-religioso, um espaço que dialogue com o mundo dos crentes e não-crentes e, dentro dessa realidade, “questionar comportamentos, valores e ser sinal de vida” (CNBB, 2016, p. 35).
No Congresso Mundial de Educação Católica, o Papa Francisco apontou para a necessidade de uma “educação de emergência”, modelo este que pode muito contribuir na formação médica, uma vez que a educação impulsiona para a liberdade e dignidade. Dessa forma, ele clarifica o que também deve-se levar em conta numa educação de emergência:
Educação informal: a educação formal se empobreceu por causa da herança do positivismo, que se orienta apenas num tecnicismo intelectualista e na linguagem da mente. É preciso abrir-se a novos horizontes, criar modelos a partir das três linguagens já citadas: da mente, do coração e das mãos, isto é, ensinar a pensar, sentir e fazer. Educação inclusiva: não apenas em relação às pessoas, mas também no que diz respeito aos conceitos, hábitos e valores. Educação do arriscar: arriscar de modo razoável significa ensinar a caminhar. O verdadeiro educador deve ser um mestre de risco, mas prudente (CNBB, 2016, p. 32).
Diante de uma sociedade secular e de um modelo de educação individualista e competitivo que privilegia a formação cognitiva em detrimento da formação humana, a “educação do arriscar” surge como um convite a ajudar os alunos a caminhar, cuidar das suas fragilidades e a reafirmar o seu valor diante da vida. A “educação de emergência”, através de novas estradas, proposta pelo Papa Francisco, é uma educação dialógica e exige de “quem atua no espaço escolar e universitário (professores, gestores, pessoal administrativo e da estrutura do governo) percursos educativos de encontro e de diálogo” (CNBB, 2016, p. 35).
A teóloga Bencke, ao posfaciar o livro “Teologia Pública num Estado Laico: ensaios e análises”, situa dois curiosos aspectos teológicos da teologia pública: O primeiro “é a busca por uma verdade que jamais possuirá e que não encontrará de forma absoluta” (p. 237). O segundo aspecto teológico é que “embora a teologia pública se apresente como uma reflexão metodologicamente responsável do falar de Deus, ela é sempre um exercício humano e nunca divino” (p. 237). Pelo fato de a teologia não apresentar uma verdade pronta e acabada, ela abre espaço, discussões e questionamentos aos argumentos que são apresentados, não caindo num “dogmatismo autorreprodutor” como a própria teóloga se refere. (SINNER, 2018).
Bencke ainda enfatiza que a academia brasileira nunca considerou a teologia como área de conhecimento, porém o seu desabrochar na esfera pública, ou melhor dizendo, na sociedade, tem despertado o interesse da academia em “entender a outra face das tradições de fé, aquela que contribui para fomentar a unidade na diversidade, que não teme a dúvida, abre-se para as mudanças, contribui para democracias participativas e dialógicas” (SINNER, 2018, p. 238).
Nesse sentido, as exigências do Ministério da Educação ajudam a libertar a teologia acadêmica da tutela eclesiástica, no sentido de poder (e, até dever!) pensar tudo que for pertinente diante da tradição cristã e dos desafios da contemporaneidade. Sentimos essa tutela com força no Brasil, e é uma luta constante de poder de situar a teologia enquanto teologia, não ciência da religião, mas em condições de dialogar com outras ciências, portanto sendo pública (SINNER, 2018, p. 117).
Essa outra possibilidade da teologia que vislumbra, não orientada por dogmas ou doutrinas das confissões religiosas, é que se abre para os debates emergentes na esfera pública, e é nisso que se apoia esse artigo, que ousa aprofundar o debate do cuidado espiritual e humano do médico em formação.
Unindo a educação do arriscar, proposta pelo Papa Francisco, e o diálogo em novos campos desconhecidos, colocados por Bencke, este artigo procura contribuir com novas formas de cuidar diante da triste realidade instalada no contexto da formação médica, provocando no educando uma possibilidade de encontro consigo mesmo. O sentir-se acolhido conduzirá o (a) aluno (a) a uma intensa reflexão sobre a essencialidade da interioridade humana. A partir disso, é possível ressignificar a vida humana, tornando-a menos angustiante nos momentos obscurecidos pela falta de sentido.
Buscar meios de enfrentamento para auxiliar os estudantes é um desafio para as instituições formadoras, uma vez que os centros de educação “são lugares de encontro, de diálogo e de crescimento mútuo num percurso de educação para a vida que se abre aos outros na perspectiva do bem comum” (CNBB, 2016, p. 09).
Por isso, a ética teológica não é um discurso balizado por uma razão míope, ou ideológica, ou clerical, ou paternalista. A própria razão ética, quando autêntica porque vista a esta luz, aproxima todos os seres humanos de boa vontade no discernimento de quais sejam as soluções mais humanas para os problemas com que se confronta a humanidade. Ora, a caridade é outro nome do “dom” ou da “imanência” da realidade com que todos os seres humanos estão confrontados, quando pensam responsavelmente o mundo, que existe pela imanência de Deus incarnado sua origem e seu futuro. Nesta luz, o ser humano descobre a sua essencial filiação divina, como sua definição antropológica e fenomenológica. Neste sentido, a ética teológica é uma “metafísica” da caridade e a caridade é a fonte mais radical dos deveres morais de todas as éticas (CUNHA, 2010, p. 102).
Sendo a caridade, a fonte moral do dever da ética, fica muito evidente que a tarefa formadora não acontece sem uma relação dialógica que ouse buscar novas formas de qualificar a sobrevivência do ser humano. Diante disso, é necessário que a teologia se atreva a trazer o debate da sociedade para a sua agenda. Sendo assim, Bencke reforça, de forma encorajadora, “porque o diálogo com ousadias teológicas precisa continuar!” (SINNER, 2018, p. 239).
5. Considerações Finais
Além de se trabalhar com o currículo oficial na graduação de medicina, existe um currículo paralelo que o estudante precisa cumprir de atividades além da sua jornada de turno integral obrigatória, o que deixa a graduação de medicina visivelmente marcada por uma sobrecarga de trabalho. Neste modelo educacional, valoriza-se muito a meritocracia, o individualismo, a competividade e a ênfase excessiva na formação da dimensão cognitiva, impedindo até de o (a) estudante se perceber como um ser relacional.
Diante de um contexto de estudo com carga horária em tempo integral, cobrança de alto desempenho no rendimento acadêmico e a falta de tempo para “o cuidar de si”, seja física, social e emocionalmente, o (a) acadêmico (a) de medicina torna-se vulnerável ao sofrimento, não somente psicológico, mas também a um sofrimento espiritual. Drogas, álcool, sintomas de ansiedade, depressão e estresse tão corriqueiros nesse meio e, quando não observados, podem levar ao suicídio.
Sendo a atividade existencial uma atividade humana, é, portanto, também uma atividade espiritual. O estudante de medicina, ao entender a sua dimensão espiritual – “do espírito” - procurará defender sua dignidade, reconhecerá o seu valor enquanto pessoa, assim como valorizará o outro em sua singularidade, aprendendo, assim, a lidar com suas vulnerabilidades.
Fretto e Souza (2019) salientam que não há uma cartilha para trabalhar com a vulnerabilidade humana, porém a práxis da ternura é uma porta que se abre para uma profunda reflexão, e que a mesma desperta na consciência um olhar de sentido ao mundo e à humanidade.
A Teologia, por sua vez, participa ativamente dos debates que giram em torno da vida e da manutenção da mesma. A libertação da Teologia da tutela eclesiástica vem possibilitando diálogos de sentido para os problemas que emergem na sociedade. Com sua visão sistêmica que lhe é peculiar e o seu viés dialogante com as outras ciências, a Teologia apresenta-se como uma possibilidade ao cuidado da espiritualidade do estudante de medicina. Diante disso, torna-se imprescindível pensar em uma prudente “educação do arriscar” e em formas ousadas de “educar pelo cuidado”; para tanto, aponta-se o início deste caminho que responde pelo nome de diálogo!
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