A educação como experiência recíproca de reconhecimento: contribuições da antropologia filosófica ricoeuriana para a filosofia da educação

Education as a reciprocal experience of recognition: contributions of Ricoeurian philosophical anthropology to the philosophy of education

Geison Amadeu Loschi
Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: loschige@usp.br

José Sérgio Fonseca de Carvalho
Doutor em Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo USP. Professor Titular de Filosofia da Educação na Universidade de São Paulo. Contato: jsfcusp@usp.br


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Resumo: Paul Ricoeur escreveu pouco sobre a educação, mas sua filosofia, ao que nos parece, tem muito a dizer sobre seus principais problemas. A escrita aberta, preocupada com as questões de seu tempo; o debruçar-se sobre antinomias e paradoxos para mover o pensamento; e sua condição de professor, que sempre o impeliu a uma escrita que conduz, são algumas das características que tornam a obra de Ricoeur importante como caminho para pensar a educação. O problema do reconhecimento, descrito na obra Percurso do reconhecimento nos ajuda a pensar uma demanda pungente que nasce da profissão docente nos dias de hoje: o que significa ser professor? Como seu trabalho pode ser devidamente reconhecido? Acreditamos que a proposta derradeira de Ricoeur de pensar formas de reconhecimento mútuo, que nascem como clareiras e brechas no mundo da luta por reconhecimento, contribui para um pensamento sobre essas perguntas. A língua da escola, como uma forma de mediação simbólica, que nasce da palavra do professor é o índice de reconhecimento mútuo que se dá entre professor e aluno. A palavra do professor, assim como Ricoeur a descreve em seu ensaio La parole est mon royaume, é uma forma de linguagem que se constitui com um outro fundamental em relação ao aluno, para a atualização das capacidades de falar, agir, narrar a própria história e responsabilizar-se por ela, que se constituem como universais nas condições de possibilidade e como individuais em sua contingência e vulnerabilidade. A palavra do professor, como uma forma de gratuidade, é o índice de reconhecimento mútuo que constituem professor e alunos como sujeitos da educação. 

Palavras-chave: Reconhecimento, educação, língua da escola 

Abstract: Paul Ricoeur didn't devote much of his writing to education, but his philosophy offers significant insights into its main issues. The open writing, concerned with his time issues; focusing on antinomies and paradoxes to move thinking; and his status as a teacher, which always pushed him to write in a way that leads, are some of the characteristics that make Ricoeur's work important as a way to think about education. The problem of recognition, described in The Course of Recognition, helps us think about a poignant demand that emerges from the teaching profession: what does it mean to be a teacher? How can your work be properly recognized? Ricoeur's ultimate proposal to think about forms of mutual recognition, which arise as clearings and gaps in the world of the struggle for recognition, contributes to thinking about these questions. The school language, as a form of symbolic mediation that comes from the teacher's words, is the index of mutual recognition between teacher and student. The teacher's word, as Ricoeur describes it in his essay La parole est mon royaume, is a form of language that constitutes a fundamental other about the student, for the updating of the abilities to speak, act, narrate one's own story and take responsibility for it, which are constituted as universal in the conditions of possibility and as individual in their contingency and vulnerability. The teacher's word, as a form of gratuitousness, is the index of mutual recognition that constitutes teachers and students as subjects of education. 

Keywords: Recognition, education, school language.

Introdução

Este trabalho nasce de uma dupla inquietação. Por um lado, o anseio de desenvolver uma pesquisa sobre a obra de um filósofo instigante como Paul Ricoeur, que soube, ao que nos parece, oferecer importantes ferramentas para pensar o mundo contemporâneo. Por outro, pensar a educação a partir de um pensamento livre, que encontre a abertura necessária para os novos caminhos e alternativas aos problemas que a acometem. A surpresa mais gratificante foi a da convergência dessa dupla inquietação nos últimos anos dessa pesquisa. 

Ricoeur escreveu pouco sobre a educação em sua trajetória. No entanto, nos textos sobre o tema, é possível encontrar uma riqueza de pensamento que nos interpela ainda hoje. A obra de Ricoeur é vasta, eclética e se desdobra por quase um século de vida, o que torna o desafio de sua interpretação ainda maior. No entanto, ao que nos parece, há um fio condutor que perpassa toda sua trajetória, qual seja, o de pensar uma hermenêutica do si através do desvio necessário pelas obras da cultura[1]Sua preocupação em compreender a constituição da subjetividade humana a partir dos elementos simbólicos que a constituem, destacadamente pela linguagem, nos parece de fundamental importância para compreender os percursos da educação, em seu sentido amplo de formação e em seu sentido específico de escolarização. Por ser um espaço prioritariamente constituído pela linguagem, a escola se constitui como um tempo e lugar próprios, distinto dos demais âmbitos da vida humana como o trabalho e a política. A escola, uma forma própria de educação, é uma vida completa que nasce ao redor da transmissão dos frutos e do movimento da cultura, onde o homem floresce em sua totalidade[2].    

O esforço de pensar a educação escolar a partir do pensamento desse autor, parece corresponder ao próprio esforço intelectual por ele iniciado de mobilizar a filosofia e seus conceitos para refletir sobre os problemas do homem contemporâneo diante de uma certa independência de pensamento, ainda que com um rigor teórico sem par. Ricoeur não se limitou, de certa forma, a uma construção hermética de um projeto filosófico, mas se mostrou profundamente aberto ao diálogo com o pensamento de sua época, esquivando-se de tendências dominantes no campo da filosofia e das ciências humanas em geral, para voltar-se sempre a determinados problemas a partir do diálogo entre diferentes perspectivas. 

O estilo da obra ricoeuriana é outro elemento de destaque que parece contribuir com uma filosofia da educação no mundo de hoje. Embora, mais uma vez, seus escritos sejam permeados por uma erudição pouco comparável, é possível observar em sua obra uma escrita aberta, descompromissada com a autorreferencialidade e voltada ao esforço de pensar a vida humana e sua jornada no mundo. É assim, que uma filosofia hermenêutica de estilo ricoeuriano parece permitir a construção de um olhar atento para as questões centrais da vida e uma coragem de pensá-las a partir da reflexão sobre as obras desta vida, suas palavras e suas ações. 

Finalmente, há ainda um elemento importante que vincula Ricoeur à educação, que é sua própria condição de professor[3]. Ainda que Ricoeur possa ser considerado um intelectual francês de altíssima envergadura no cenário filosófico contemporâneo, ele sempre atuou como um professor, com um estilo que conduz, uma palavra que produz um mundo a ser compartilhado, e suas obras, também, nos parecem um desdobramento do caminho metódico que ele propõe a seus alunos[4]

A obra de Ricoeur parece ser, continuamente, para ela mesma e para seus leitores, um convite. Antes de tudo, ela se assenta em questões que podem ser consideradas paradoxais, sem demonstrar pressa em resolvê-las, mas desfrutando da possibilidade de explorar o pensamento a partir delas. Da mesma forma, elas parecem sempre abertas a problemas não resolvidos que são, por vezes, objetos de sua ulterior atenção. No texto Paradoxos da Identidade Narrativa, Ricoeur declara: 

Pode ser interessante para o psiquiatra acompanhar o filósofo em seu trabalho de pensamento diante de uma noção carregada de dificuldades e rica em aporias. A exploração de alguns paradoxos me pareceu dotada de valor didático apropriado para uma pesquisa em que o que talvez tenhamos de melhor para trocar sejam aporias. A forma do paradoxo convém à abordagem de noções em que afirmações aparentemente opostas em seu sentido se impõem com força equivalente e propõem à pesquisa vias novas que seriam ‘saídas’ da aporia. (RICOEUR, 2006, p. 281).

É este o caminho que consideramos fecundo para pensar a educação, a partir dos escritos de Ricoeur. Uma compreensão que parece possibilitar uma construção corajosa de sentidos que perpassam as ações dispersas da vida, uma contemplação da beleza de composição de um mosaico que reúne a “dilaceração” do humano no mundo contemporâneo, levando assim, mais que a uma chegada grandiosa, ao traçado de um caminho, que pode ser trilhado, sobretudo, com outros. 

Reconhecimento e educação

Em nosso caminho, partiremos de uma noção central para pensar nossa constituição enquanto sujeito, a partir de um outro. Trata-se do problema do reconhecimento, que implica uma forma de constituição da subjetividade que nasce da relação com a alteridade, desde a mais elementar que é a alteridade de si no acesso opaco a uma identidade mediada pela linguagem, chegando às formas que a alteridade ganha a partir da construção histórica dos elementos culturais em diferentes tempos e espaços. Em outras palavras, o problema do reconhecimento se torna aquele de responder à pergunta quem sou a partir de um olhar alheio. 

Esse nos parece ser um problema central, uma pergunta crucial para a educação escolar em nosso tempo. A resposta à pergunta quem sou para os sujeitos implicados na relação pedagógica que se opera na escola é crucial por reverberar, ao que nos parece, no núcleo dos sentidos que a própria subjetividade ganha em um mundo marcado pelos interesses econômicos e pela reprodução técnica. 

O problema que nos interpela no campo da educação é o do reconhecimento do trabalho do professor e, por meio dele, da constituição de uma subjetividade do aluno em sua relação pedagógica. Trata-se do reconhecimento recíproco entre professor e aluno que se dá na relação pedagógica operada na escola. 

Há uma demanda pungente por reconhecimento na profissão docente, que se configura efetivamente como uma luta por respeito, melhores condições de trabalho e, sobretudo, busca por um sentido para o trabalho que se realiza ao ensinar. Essa demanda por reconhecimento nasce, efetivamente, do polo negativo do reconhecimento como uma forma de desprezo experimentada socialmente pelos professores, assim como nos ajuda a pensar Honneth (2003) sobre o problema do reconhecimento no mundo contemporâneo. 

No entanto, aquilo que nos instiga no problema do reconhecimento nasce a partir do pensamento proposto por Ricoeur, na última parte de sua obra tardia, O percurso do reconhecimento. Partindo da noção de luta por reconhecimento e destacando a relevância central que uma gramática dos conflitos sociais têm para a compreensão desse problema, Ricoeur vai se questionar sobre a existência de tréguas ou clareiras para um horizonte de luta onde seja possível experimentar, a partir da gratuidade das mediações simbólicas, a exemplo das festas e dos ritos, uma experiência de reconhecimento mútuo pacífica. 

Não se trata de uma perspectiva institucional para o reconhecimento que por ele é visto, nas dimensões jurídicas e políticas, como luta. Argumentação, debate e equivalências são as semânticas que se constituem no âmbito institucional da luta. Trata-se, ao contrário, das mediações simbólicas que se constituem a exemplo da troca de dons e que podem ser vistas como uma forma de experimentar o reconhecimento intersubjetivo entre indivíduos. Trata-se de um momento, um sentido, que irradia e irriga as relações, permitindo viver uma experiência que nos desloca ainda mais fortes para a luta, assim como, nos dão um horizonte para a mesma. 

Nosso pensamento, na esteira do de Ricoeur, é o de pensar as relações entre professores e alunos, que se confiram na escola a partir de uma língua própria que é a língua escolar e de uma palavra enunciada pelo professor, como uma forma pacífica de reconhecimento que se estabelece pelas trocas de dons características dessa linguagem. Assim, professor e aluno se configuram ao compartilharem uma forma própria de inserir-se em um ordenamento simbólico que constitui o mundo dos homens, mediado pela linguagem. Não se trata de compreender as relações de gratuidade configuradas na palavra do professor a partir de uma perspectiva institucional da escola, mas sim, de compreender as clareiras e as tréguas que se constituem na língua da escola enquanto uma mediação simbólica central.

Em sua obra, Percurso do reconhecimento, Ricoeur vai pensar a polissemia que a palavra reconhecimento comporta nas línguas latinas e buscar, não uma teoria do reconhecimento, mas uma polissemia regrada dos sentidos filosóficos que o termo carrega, dividindo-a em três partes. É da última parte de seu livro, o terceiro estudo que trata do reconhecimento mútuo que buscaremos os insumos para a empreitada a que nos propomos. 

A obra de Ricoeur a que nos referimos parece ser, ainda mais que suas outras obras, um convite à filosofia. Um convite que abre inúmeras possibilidades de desenvolvimento, incluindo o campo da filosofia da educação. 

Mas é toda a história da filosofia que se convoca neste percurso [do reconhecimento], desde as suas origens gregas até a fenomenologia contemporânea; e ao mesmo tempo, nestes três estudos abre-se um novo caminho para as filosofias do futuro, deixando — gosto de pensar: deixando sobretudo aos jovens filósofos do novo século — um verdadeiro “convite a filosofar”, na dimensão dos grandes convites (perdidos) de que nos conta a história da filosofia antiga: o Protreptikon de Aristóteles, o Hortensius de Cícero (cuja leitura inspira ao jovem Agostinho seu amor à sabedoria). (JERVOLINO, 2006, p. 211, tradução nossa).

Parece demasiada ousadia imaginar a possibilidade de desvendar os múltiplos caminhos que essa obra de Ricoeur comporta. Na realidade, gostaríamos de nos deixar interpelar por alguns de seus conceitos, sentidos e paradoxos que nos parecem frutíferos para pensar a educação, sem a pretensão de exauri-la. 

Antes de tudo, e seguindo os pressupostos da obra de Axel Honneth, Ricoeur vai encontrar, a partir do pensamento político de Hobbes e Hegel, os fundamentos de uma noção de reconhecimento que constitui as bases da política e da justiça modernas. O trabalho de Axel Honneth demonstra a preocupação do filósofo crítico de pensar uma teoria dos conflitos sociais a partir de uma gramática moral, isto é, em suas dimensões linguística e cultural. Axel Honneth atualiza os argumentos de Hegel e pensa o sentido da luta por reconhecimento como constitutiva das subjetividades e intersubjetividades culturais de nosso tempo e o motor mesmo da justiça que amplia e efetiva os direitos e o lugar social dos indivíduos em sua identidade. 

Seguindo sua polissemia regrada da noção de reconhecimento, Ricoeur avança ao desdobrar o sentido de gratidão que ela comporta nas línguas latinas, destacadamente, a partir da descrição das trocas simbólicas que fundamentaram um campo da antropologia social que versa sobre as alianças. A partir da obra de Marcel Mauss, Ensaio sobre a dádiva, Ricoeur vai discutir o caráter não mercantil da troca de dons que pode configurar uma forma de relação desinteressada, a qual constitui o cerne do reconhecimento mútuo de uma humanidade compartilhada.  É aí que buscamos traçar nosso problema central. É possível observar formas de reconhecimento mútuo, a partir da experiência de gratuidade, no campo da educação? 

A palavra do professor pode ser compreendida como um dom gratuito que engendra a mutualidade no reconhecimento da humanidade compartilhada. Aquilo que chamamos de palavra-dom se constitui no âmbito de uma relação pedagógica que escapa aos interesses de retorno e fomenta uma forma de reconhecimento que atualiza as capacidades individuais, constituída por suas fragilidades e contingências. 

Domenico Jervolino apresenta, brilhantemente, a linguagem como o aspecto não-mágico do dom na obra de Ricoeur. Fundamento da socialização e condição mesma de possibilidade dessa. 

Respondendo, de minha parte, a Ricoeur, direi que o dom das línguas é o dom não-mágico que se torna um momento fundamental e básico do vínculo social, pois nos permite fazer parte da humanidade graças, ao mesmo tempo, ao dom da língua materna e ao dom recíproco das línguas que se realizam na tradução, por meio da prática da hospitalidade linguística. (JERVOLINO, 2006, p. 213, tradução nossa).

É desta linguagem na qual o dom encontra-se ancorado que podemos pensar uma palavra gratuita, de reconhecimento mútuo, por vezes esporádica e longínqua, mas latente nos caminhos da educação. 

Gostaríamos de destacar o caráter antropológico da noção de reconhecimento, no sentido de que o reconhecimento, entendido a partir de Honneth e Ricoeur, se refere às dinâmicas próprias da constituição das subjetividades a partir do olhar do outro. Em outras palavras, é a partir do reconhecimento que se dá a constituição de uma identidade de forma intersubjetiva. É por isso que na obra de Honneth, por exemplo, a luta por reconhecimento é analisada a partir do nascimento, seguindo os pressupostos da psicanálise de Winnicott, chegando aos seus desdobramentos no campo social e nos campos político e jurídico. 

É importante destacar esse aspecto do reconhecimento pois ele incide em uma característica que consideramos fundamental da educação que é a do processo mesmo de constituição das subjetividades. A educação é a metáfora de um caminho de formação que leva o indivíduo de um lugar a outro. Nesse sentido, compreender as demandas por reconhecimento da profissão docente não é buscar compreender apenas os recursos necessários para a manutenção de um determinado trabalho, mas sim, ao que nos parece, compreender o modo como a relação entre professor e aluno, na educação escolar, incide na constituição de uma subjetividade a partir da linguagem. O trabalho do professor comporta em seu bojo uma demanda por reconhecimento pois se constitui, nos moldes de um ofício, em um trabalho integral que tem como cerne de seu fazer a constituição mútua de subjetividades operadas pela linguagem, sua principal ferramenta. 

Observar essa relação constitutiva entre professor e aluno que se opera na linguagem é um modo de interver aquilo que constitui o cerne de seu reconhecimento, o horizonte de sua luta, qual seja, o de uma palavra que tem a potência de incentivar, acompanhar e amparar as potências dos alunos de falar, agir, narrar sua própria história e responsabilizar-se por ela. Capacidades eminentemente humanas que se constituem no intercâmbio de uma língua escolar, ainda que distante de uma dinâmica institucional da escola, por meio de experiências intermitentes, descontínuas, mas que agem como clareiras no horizonte da luta que enfrentamos todos os dias na educação. 

Antes de tudo, propomos pensar a escola a partir de um tempo e espaço próprios e constituída por uma língua própria, a língua da escola. Essa linguagem se constitui como mediação de uma relação de gratuidade onde o dom por excelência é a própria língua. 

A escola está inserido no mundo do mercado, o mundo onde as relações se constituem essencialmente pela equivalência[5]. Há uma linguagem marcada pela satisfação do interesse próprio e pela necessidade da equivalência. A instituição escolar se vê envolvida nessa lógica que perpassa todos os caminhos da vida humana, do nascimento à morte. Por isso, a experiência da gratuidade que uma língua escolar comporta permite a experiência de uma forma de constituição da subjetividade que se desvincula daquela hegemônica. 

Ao se perguntar sobre o enigma do contradom nas relações de troca entre os povos da Polinésia descritas na obra de Marcel Mauss, Ricoeur defende que a gratuidade nasce da generosidade do primeiro dom que encontra na mutualidade, não a resposta equivalente do primeiro dom, mas um impulso da humanidade que parte de um e do outro retorna, tornando-se compartilhada. A certeza da humanidade que comporta a troca simbólica encontra na mutualidade sua efetivação, como relação de gratuidade. 

A língua da escola é a mediação que pode ser entendida nos termos do enigma do contradom proposto por Ricoeur. Ao inserir o outro em uma linguagem se parte da confiança da humanidade compartilhada e da certeza de que uma nova geração pode ser inserida no mundo dos seres humanos. 

Ao nos referirmos à língua da escola, em sua oralidade e escrita, a compreendemos como uma língua que se difere daquela vernácula da família e daquela institucional representada pelo Estado. Na língua da escola, o mundo se torna um assunto escolar e é possível experimentar uma linguagem que permite conhecê-lo ao suspendê-lo em sua língua. 

Todas as coisas só podem ser ditas e conhecidas por meio de uma linguagem. E essa é a tarefa da escola ao apresentar o mundo por meio de uma língua própria que permite ao outro se constituir individualmente e como uma nova geração, assim como, permite que o mundo seja por ele renovado por meio do dom que a linguagem representa. Por isso, nos parece central a figura do professor como aquele que encarna, no sentido próprio de corpo, a língua da escola em sua palavra. 

Em seu ensaio A palavra é meu reino, publicado em 1955 pela Revista Esprit, Paul Ricoeur desenha as principais características do trabalho de um professor. Ao buscar discutir os problemas inerentes às transformações que uma Reforma da Educação em vigor na França comportava, dá bases importantes para se pensar a relação constitutiva entre professor e aluno por meio da linguagem. De fato, Ricoeur inicia seu ensaio com uma pergunta inquietante: o que eu faço quando eu ensino? Certamente essa é uma pergunta que perpassa os debates sobre a educação escolar, sobre o trabalho do professor e, sobretudo, é a pergunta que muitos professores se fazem em sua prática cotidiana. Ao que Ricoeur responde um simples e desconcertante “eu falo”. Na palavra do professor está o cerne de seu trabalho e do próprio reconhecimento que a pergunta o que eu faço quando eu ensino comporta. 

O que eu faço quando eu ensino? Eu falo. Eu não tenho outro sustento e não tenho outra dignidade; eu não tenho outra forma de transformar o mundo e não tenho outra influência sobre os homens. A palavra é o meu trabalho; a palavra é o meu reino (RICOEUR, 1955, p. 199, tradução nossa).  

Ao caracterizar o trabalho do professor como essencialmente aquele que se constitui pela enunciação de uma palavra, Ricoeur não estaria criando uma diferenciação que elitiza o trabalho intelectual em relação ao trabalho manual. Sua perspectiva nasce da concepção de que o trabalho com a palavra é aquele que se insere na linguagem como um campo epistemologicamente constituído e ontologicamente constitutivo. Isto é, o trabalho com a palavra (do qual o professor é parte, assim como o historiador, o poeta e o ator) tem um modo próprio de se constituir, mas, sobretudo, é um caminho de constituição intersubjetiva que permite a construção de si, do outro e da relação entre ambos. 

A palavra do professor é a linguagem que uma geração fala à outra para lhe transmitir os frutos e o movimento de sua cultura. (RICOEUR, 1955, p. 199-200, tradução nossa). Nesse sentido, por meio da palavra o professor insere uma nova geração no mundo, oferecendo-lhe a mediação simbólica necessária para se aproximar de um mundo herdado e, ao mesmo tempo, as ferramentas para construí-lo e transformá-lo como um sujeito e como uma geração. 

Um conto repleto de sensibilidade, escrito por Manuel Rivas e intitulado La lengua de las mariposas nos permite interver essa relação entre professor e aluno mediada pela palavra. Enquanto a palavra do professor permite ver o mundo como uma fábula, viajando para diferentes lugares sem sair da sala de aula e permitindo que animais e plantas falem, sua ausência é sentida como um enorme silêncio sem o qual o mundo desaparece. Essa palavra do professor é representada pela metáfora da língua das mariposas que se desdobram em direção ao mundo para dele se nutrir, como se pudesse apresentar seus frutos e seus movimento.  

O professor esperava há muito tempo a chegada de um microscópio vindo do Departamento de Instrução Pública. Ele nos falava tanto sobre como as coisas pequenas e invisíveis eram ampliadas por aquele aparelho que nós, crianças, realmente conseguimos vê-las, como se suas palavras entusiasmadas tivessem o efeito de lentes poderosas. (RIVAS, 2012, p. 01, tradução nossa)

Ao transmitir o mundo pela palavra, o professor permite interver um horizonte constituído pela linguagem, um mundo que se configura na palavra e que, pela sua transmissão, pode ser habitado pelo aluno. Em outras palavras, na escola é possível habitar, pelo acesso à palavra do professor, diferentes mundos, seguindo uma noção cara a Ricoeur. 

Conclusão

Dessa forma, pelo acesso à língua da escola é possível compreender o reconhecimento como mutualidade, no sentido de constituir o professor pela palavra e o aluno pelo conjunto de capacidades individuais que essa palavra atualiza, notadamente as de falar, agir, narrar sua própria história e responsabilizar-se por ela.  

A noção de capacidade é desenvolvida por Ricoeur e relaciona a potência do agir (entendida no sentido amplo de uma incidência no mundo) com sua atualização nas capacidades descritas acima. Na configuração do verbo modal eu posso se constitui um modo de ser do indivíduo que se atualiza nas capacidades. A concepção sobre essas capacidades não nasce de uma certeza teórica ou de uma mera opinião, mas de uma crença fronética, uma certeza prática e uma confiança que parte da atualização das capacidades. Eu posso falar, na medida em que falo; eu posso agir, na medida em que minha ação incide no mundo; eu posso narrar, na medida em que configuro as ações dispersas da existência em uma tessitura temporal. Da mesma forma, essa certeza e essa confiança encontram no olhar alheio uma forma crucial de reconhecimento. E a partir de um outro ao qual dirijo minha palavra, minha ação, minha história e me responsabilizo por elas, que as capacidades constitutivas de minha subjetividade são reconhecidas. 

Nesse sentido, o professor, inserido na mediação simbólica da linguagem da escola, é um outro primordial para a constituição das capacidades humanas de seus alunos. Ao transmitir o mundo dos homens para uma nova geração, seu ordenamento simbólico, ele permite que essa geração habite o mundo constituído pela linguagem e se constitua por esse acesso em suas capacidades de falar, agir e narrar. 

A atualização das capacidades dos alunos que tem na escola e na palavra do professor um olhar constitutivo expõe uma tensão importante, e porque não um paradoxo, entre a universalidade da noção e a individualidade de sua atualização. 

De fato, no pensamento de Ricoeur é possível encontrar esses dois sentidos, que podem ser entendidos de forma oposta, como convergentes. As capacidades de falar, agir e narrar são constitutivas do humano, da potência inerente a cada uma, ancoradas na linguagem. No entanto, a condição própria de atualização se encontra permeada pela fragilidade e vulnerabilidade características do humano, isto é, sua condição temporal e histórica atravessada pelas inúmeras intempéries que representam as peripécias de nossas histórias. 

Eu posso falar na medida em que me dirijo a um outro e falo, sendo dessa forma reconhecido como um outro que fala e me constituindo nessa relação; ao mesmo tempo, na contingência de minha existência e pela condição de fragilidade a ela atrelada, por vezes sou calado pelo outro, emudecido da capacidade de falar, impossibilitado de expressar uma fala que enuncie e se constitua um discurso a um outro. As condições de fragilidade são, sobretudo, o produto das construções sociais e culturais que dinamizam de forma diferente a atualização das capacidades inerentes ao humano e colocam cada indivíduo em um certo lugar em relação a elas.  

Daí nasce, na tensão entre a universalidade constitutiva das capacidades humanas e a contingências das fragilidades de sua atualização, a palavra do professor como o arrimo fundamental, ancorado na mediação simbólica da linguagem, para a passagem da impossibilidade própria à condição histórica da vulnerabilidade para a confiança constitutiva das capacidades. A palavra do professor não é dirigida apenas a um outro impessoal, com capacidades a priori a serem desenvolvidas num vértice ascendente. A palavra do professor, como língua escolar, constitui um outro marcado pela vicissitudes e condicionamentos históricos e constitui, como um dom que se dirige a um outro, como a pedra de confiança necessária para erigir a resposta de humanidade que o falar, agir e narrar a própria existência comportam. 

Referências

DOSSE, F. Paul Ricoeur: os sentidos de uma vida (1913-2005). São Paulo: Liberars, 2017.

GAGNEBIN, J. M. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006. 

HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003. 

JERVOLINO, D. El último parcours de Ricoeur. Revista Ágora, Santiago de Compostela, vol. 25, n. 2, p. 207-215, 2006. 

MASSCHELEIN, J. SIMONS, M. A língua da escola: alienante ou emancipadora? In: LARROSA, J (org.). Elogio da Escola. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017. 

MASSCHELEIN, J. SIMONS, M. Fazer escola: a voz e a via do professor. In: LARROSA, J (org.). Elogio do Professor. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. 

RICOEUR, P. La parole est mon royaume. Revista Esprit, Paris, vol. 223, n. 2, p. 192-205, 1955. 

RICOEUR, P. Autonomia e vulnerabilidade. In: Leituras 1 – Em torno ao político. São Paulo: Edições Loyola, 1995. 

RICOEUR, P. Os paradoxos da Identidade Narrativa. In: Escritos e conferências 3: Antropologia filosóficaSão Paulo: Edições Loyola, 2016. 

RICOEUR, P. Percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006.

RICOEUR, P. Da psicanálise à questão do si mesmo. In: A crítica e a convicção. Lisboa: Edições 70, 2009.

RIVAS, M. La lengua de las mariposas. In: ¿Qué Me Quieres, Amor? Madrid: Debolsillho, 2012.

SIMARD, D; KERLAIN, A. Paul Ricoeur et la question éducative. Laval: Université Laval, 2012.

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[1] GAGNEBIN, 2006, p. 163. 

[2] RICOEUR, 1955, p. 200, tradução nossa.

[3] Esta é uma ideia importante na biografia extensiva de Fraçois Dosse, pois Ricoeur construiu suas obras a partir de seus cursos e com um cuidado descritivo e comparativo que remete ao estilo cuidadoso de um professor com seus alunos. Cf. DOSSE, F. Paul Ricoeur: os sentidos de uma vida (1913-2005). Liberars: São Paulo, 2017.

[4] Na entrevista de Ricoeur publicada em A crítica e a convicção (2009) ele explicita que foi seu trabalho como professor que fez erigir grande parte de suas obras: “Tentava impor o que se pratica além-Atlântico: na primeira sessão, propunha a leitura de uma dezena de obras e de uma vintena de artigos, e que precisava que me esforçaria por circular entre esses textos, que seriam como o campo de experiência comum dos instrutores e dos membros do seminário. Essa prática do seminário faz com que, nos meus livros, tenha sempre tido em mira muito mais os meus estudantes do que um público exterior.” (RICOEUR, 2009, p. 125). 

[5] Termo desenvolvido por Ricoeur na terceira parte do Percurso do Reconhecimento para exemplificar as relações constitutivas do interesse de mercado.