Anita Pompéia Soares
Mestrado em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Contato: anita.soares@alumni.usp.br
José Sérgio Fonseca de Carvalho
Doutorado em Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor Titular da Universidade de São Paulo (USP). Contato: jsfcusp@usp.br
Resumo: Embora Paul Ricoeur tenha escrito e se pronunciado sobre a educação, ela não figura entre os temas mais desenvolvidos na extensa obra do autor. No entanto, aqui partimos do pressuposto de que algumas de suas reflexões podem lançar luz sobre questões que perpassam o contexto educacional brasileiro, na contemporaneidade. No capítulo que encerra o livro Tempo e Narrativa, Ricoeur propõe a abertura do espaço de experiências pregressas de um povo a fim de encontrar experiências massacradas, inauditas, capazes de redimensionar o horizonte de expectativas futuras desse mesmo povo. No contexto brasileiro, bastante marcado por lógicas coloniais que fizeram inúmeras vítimas, as considerações do autor nos levam a pensar que tipo de relação com o passado pode-se criar numa instituição específica, a escola. Por sua posição intermediária entre o passado e o futuro, a escola parece ser um local privilegiado para fazer do presente algo vivo, como sugere Ricoeur nesse mesmo capítulo.
Palavras-chave: espaço de experiências, horizonte de expectativas, Paul Ricoeur, escola, filosofia da educação.
Abstract: Although Paul Ricoeur has written and spoken about education, it is not the most developed theme in his extensive work. However, here we start from the assumption that some of his reflections can shed light on issues from the Brazilian educational context in contemporary times. In the last chapter of the book Time and Narrative, Ricoeur proposes opening the space of human experience from the past to find experiences that have been silenced. This action could create a new horizon of expectations for the future. In the Brazilian context, marked by colonial logic that made numerous victims, the author's considerations lead us to consider what kind of relationship with the past can be created in a specific place, the school. Once the school is an institution intermediary between the past and the future, it seems to be a privileged place to make the present something alive, as Ricoeur suggests in the same chapter.
Key words: space of experience, horizon of expectations, Paul Ricoeur, school, philosophy of education.
O presente é todo ele crise quando a expectativa se refugia na utopia e quando a tradição se transforma em depósito morto.
Paul Ricoeur. Tempo e narrativa, 2019, p. 399.
A indagação que nos move, neste artigo, advém de uma aproximação de alguns escritos de Paul Ricoeur ao campo da educação. Em comparação com sua extensa obra, são poucos os escritos do autor sobre temas educacionais. No entanto, partimos da premissa de que algumas de suas considerações, em outros campos do saber, possibilitam exercícios de pensamentos frutíferos para a reflexão sobre a escola brasileira contemporânea.
Enquanto instituição, a escola encontra-se no meio de caminho entre o passado que herdamos e o futuro por vir. Tal como o tempo presente, ela está inserida numa cultura histórica, marcada por inúmeros aspectos que nos formam, enquanto povos e indivíduos. Na escola, criamos relações com o que nos chega do passado e temos o potencial de imaginar um futuro distinto do presente. Num país como o Brasil, marcado de forma irresoluta pela exploração colonial, a relação que mantemos com o passado dá a ver uma dívida com aqueles que foram, por diversas razões, silenciados. Nesse sentido, a pergunta a ser investigada neste artigo é: que atitude diante do passado podemos ter na escola, a fim de reparar dívidas que mantemos com as vítimas de nossa história? Essa indagação adveio da leitura de Paul Ricoeur e a reflexão sobre ela é feita em companhia do autor e de demais pensadores cujas obras estão em diálogo com as proposições do filósofo francês.
Em Por uma hermenêutica do tempo histórico (RICOEUR, 2019), que encerra o livro Tempo e Narrativa. Ricoeur argumenta que a relação que mantemos com o passado vincula-se, estritamente, com o que ansiamos para o porvir. Nos termos empregados pelo autor, o horizonte de expectativas para o futuro, de um indivíduo ou povo, é condicionado pelo espaço de experiências vivenciadas no passado (RICOEUR, 2019, p.355)[1]. Para defender essa afirmação, Ricoeur contraria a visão convencional de que o passado seria algo estanque, imutável. Ele apresenta a noção de um tempo pretérito ainda aberto a considerações destacando que é preciso
resistir ao encolhimento do espaço de experiência. Para tanto, é preciso lutar contra a tendência de só considerar o passado sob o ângulo do acabado, do imutável, do findo. É preciso reabrir o passado, reavivar nele potencialidades irrealizadas, impedidas, massacradas até. Em suma, contra o adágio que diz que o futuro é aberto e contingente e o passado univocamente fechado e necessário, temos de tornar nossas expectativas mais determinadas e nossa experiência mais indeterminada. Ora, essas são duas faces de uma mesma tarefa: pois somente expectativas determinadas podem ter sobre o passado o efeito retroativo de revelá-lo como tradição viva. É por isso que nossa meditação crítica sobre o futuro pede o complemento de uma meditação semelhante sobre o passado (RICOEUR, 2019, p.368).
Ao defender que devemos resistir ao “encolhimento do espaço de experiência”, Ricoeur nos leva a pensar que nossas projeções para o futuro se vinculam, de forma bastante próxima, às percepções sobre acontecimentos pretéritos. Nesse sentido, quanto mais restrito é nosso olhar sobre o ocorrido, mais limitados serão nossos planos para o que ainda pode ocorrer. Inversamente, quanto mais alargado for nosso olhar sobre experiências vividas, mais diverso será o horizonte ansiado para o porvir.
A seu modo, então, Ricoeur reinventa a proposta benjaminiana de “escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 2012, p. 245) defendendo “reabrir o passado, reavivar nele potencialidades irrealizadas, impedidas, massacradas até” (RICOEUR, 2019, p.368 ). Essa iniciativa seria, em alguma medida, condição de possibilidade para a imaginação de futuros outros. No limite, o pensamento de Ricoeur traz a possibilidade de revisitarmos o passado a fim de enxergar nele utopias capazes de alimentar projetos vindouros, não antevistos por quem veio antes de nós. Além disso, essa busca no passado de histórias massacradas poderia figurar como possibilidade de enxergar e, quiçá reparar, as dívidas que temos com nossos mortos.
Se transpusermos as reflexões de Ricoeur para o contexto brasileiro, pode-se supor, a título de exemplo, que saber sobre a história do Quilombo dos Palmares ou da Revolta dos Malês seja algo relevante para o horizonte de expectativas de todos os estudantes brasileiros e, talvez, ainda mais significativo para aqueles que se reconhecem como pardos ou negros. Seguindo a lógica proposta por Ricoeur, a busca de histórias outrora silenciadas possibilitaria uma “mediação crítica” em relação ao futuro, capaz de fazer dele um tempo de assunção de algo novo.
Nas escolas brasileiras, o silenciamento de parte significativa de certas tradições de nosso passado ocorre paralelamente ao fortalecimento de uma “história dos vencedores”[2], marcada pelos mais de três séculos de colonização europeia e de seus desdobramentos. Dessa maneira, o que se conta dos tempos pretéritos está marcado por um recorte bastante específico, essencialmente branco, europeu, masculino e cristão. Consequentemente, a abertura de nosso passado em busca de “potencialidades massacradas”, como imagina Ricoeur (2019, p.368), nos leva à procura de saberes dos povos que já estavam em nosso território antes da chegada europeia e, também, daqueles que foram forçosamente trazidos para cá. Essa busca coloca em evidência hábitos que seguem fundamentais para nossa constituição cultural e soam essenciais para que nosso futuro venha a ser um tempo povoado por soluções outras, não antevistas por aqueles que vieram antes de nós.
Em Lembrar, escrever, esquecer (2006), Jeanne Marie Gagnebin dialoga com autores que, em diferentes épocas, lidaram com diversas vítimas da história[3]. Um exemplo citado pela autora (GAGNEBIN, 2006, pp.98-103) refere-se à Segunda Guerra Mundial. Logo após o término do conflito, os sobreviventes da Shoah[4] não conseguiram esquecer os horrores por eles vivenciados. O esquecimento, nesse caso, era uma impossibilidade. Nos anos 1950 e 1960, quando a Alemanha passava por um processo de reconstrução, Theodor Adorno propôs a via contrária: o não esquecimento. Sua proposta atentava ao fato de que os alemães daquele tempo desejavam esquecer, pois o peso do passado impedia a vida no presente. Tal peso era constituído pelo sofrimento indizível das vítimas, mas era sobretudo feito “da culpa dos algozes” (GAGNEBIN, 2006, p.101).
Essas duas posturas diante do passado evidenciam como não é possível traçar uma solução única, útil a todo trato com grupos e populações vítimas da história. Gagnebin ressalta que em campos como o da história, educação, filosofia e psicologia o cuidado com a memória representa uma tarefa ética: “nosso dever consistiria em preservar a memória, em salvar o desaparecido, o passado, em resgatar, como se diz, tradições, vidas, falas e imagens” (GAGNEBIN, 2006, p.97). Apesar de recorrer a Nietzsche, Freud, Adorno e Ricoeur para refletir sobre a memória, Gagnebin destaca que cada um, em seu contexto, defende um lembrar ativo, caro a reflexão que levamos adiante aqui. Trata-se de
um trabalho de elaboração e de luto em relação ao passado, realizado por meio de um esforço de compreensão e de esclarecimento — do passado e, também, do presente. Um trabalho que, certamente, lembra dos mortos, por piedade e fidelidade, mas também por amor e atenção aos vivos (GAGNEBIN, 2006, p.105).
Ela conclui, então, que um trabalho ativo de elaboração e compreensão do passado anula a possibilidade de permanecermos nele, criando a chance de enfrentarmos o presente com coragem (GAGNEBIN, 2006, p.105). A perspectiva da autora se soma, portanto, ao ponto de vista de Ricoeur ao vincular o lembrar ativo do passado com um cuidado ético com os vivos no presente.
À luz dessas considerações, voltar ao contexto da educação brasileira contemporânea nos leva a iniciativas como as das leis 10.639 (BRASIL, 2003) e 11.645 (BRASIL, 2008). Desde de 2003, elas vêm trazendo para as políticas públicas a necessidade de inclusão curricular da história e cultura afro-brasileira e indígena. Essas são populações que foram vítimas de nosso processo colonial e que também figuram como vítimas das escolhas conteudistas escolares que, historicamente, excluíram hábitos e saberes nativos americanos e africanos. As leis esboçaram reformulações normativas e representaram uma solução institucional para a dívida que mantivemos, por séculos a fio, com nossas populações negras e indígenas. No entanto, a mera existência dos textos legais em nada garante a transformação das práticas adotadas nas escolas.
Refletir sobre elas requer, como propõe Gagnebin, ter força para “enfrentar o presente” (GAGNEBIN, 2006, p. 105). No capítulo Por uma hermenêutica do tempo histórico, Ricoeur também destaca essa necessidade (RICOEUR, 2019, 399-400) e, para isso, recorre a uma fonte compartilhada com Gagnebin: Nietzsche. No texto Da utilidade e desvantagem da história para a vida (NIETZSCHE, 1983), o filósofo alemão desenvolve uma longa discussão acerca da relação entre a história e o presente[5].
Em seu tempo, Nietzsche enxergava o predomínio de uma cultura histórica moderna que não era viva (NIETZSCHE, 2011, p.22; NIETZSCHE, 1983, p.62). Ele apresenta algumas justificativas para esse diagnóstico: a modernidade transformou a aptidão para lembrar num fardo (RICOEUR, 2019, p. 401). Isso se vincula ao fato de que, no ponto de vista de Nietzsche, a modernidade se via como o tempo culminante de um processo, um sentido histórico que comandava o curso dos acontecimentos. Portanto, se aquela época se enxergava como o fim de um encadeamento de eventos não conduzidos pela humanidade, os sujeitos tornavam-se “passivos” e “retrospectivos” (NIETZSCHE, 1983, p.67). Portanto, na cultura histórica moderna, lembrar do passado representava uma atitude estanque; o ocorrido podia ser rememorado e até admirado, mas jamais representaria uma instância potente para a transformação do presente ou do futuro.
A maneira com que Nietzsche enxerga a relação dos sujeitos modernos com seu próprio passado o leva a propor outra alternativa, que talvez possamos chamar de outra cultura histórica ou, ao menos, de uma filosofia histórica. Para ele, o passado guarda a memória daqueles que combateram contra a história, pessoas que não ficaram paralisadas diante do “assim é” e ousaram seguir o que imaginavam sobre o “assim deve ser” (NIETZSCHE, 1983, p.69). Nietzsche destaca que esses sujeitos não levaram sua geração “ao túmulo”, mas, ao contrário, estiveram dispostos a inaugurar uma nova geração. Ela não seria composta por “retardatários” (submissos ao sentido histórico dos acontecimentos) mas, ao contrário, se constituiria de “primogênitos” (NIETZSCHE, 2011, pp.49-50). Essa alternativa proposta por Nietzsche também é imbuída de um senso de justiça, afinal, para ele, o passado é feito de lesões, coisas perdidas e formas fraturadas (NIETZSCHE, 2011, p.7).
O emprego que Ricoeur (2019) faz das reflexões de Nietzsche as tornam relevantes para a problemática discutida aqui. O filósofo francês destaca que, ao buscar o que significa viver historicamente, Nietzsche propõe um bom uso da história (RICOEUR, 2019, p.401). Nele, sobressai a interrupção da influência que recebemos do passado ou, ao menos, da fascinação que os tempos pretéritos exercem em nós por meio da historiografia (RICOEUR, 2019, p.400). Somente uma interrupção ou suspensão dos sentidos que recebemos do ocorrido pode fazer do presente um momento capaz de “refigurar o tempo” (RICOEUR, 2019, p.406).
Ricoeur (2019) também sublinha que as considerações de Nietzsche sobre as relações que estabelecemos com o passado podem representar uma força propulsora de ações no presente. É bastante sintomático o fato de que Ricoeur encerra a obra Tempo e Narrativa com percepções sobre a ação. Isso nos leva à conclusão de que, nessa obra, há uma preocupação bastante relevante com o âmbito das atitudes capazes de transformar uma realidade herdada do passado. De forma similar, refletir sobre a natureza das atitudes tomadas nas escolas diante de nosso passado, como propomos aqui, acarreta preocupações práticas, vinculadas ao âmbito da experiência escolar. Nesse sentido, o que está em discussão ao final de Tempo e Narrativa e na problemática que aqui se apresenta é uma reflexão sobre a força do presente.
Quando reflete sobre a pertinência do pensamento de Nietzsche para a atualidade, Ricoeur emprega o adjetivo “histórico” para qualificar o presente. Para Ricoeur,
Por um lado, o presente histórico é, em cada época, o termo último de uma história realizada, ele mesmo fato realizado e fim da história. Por outro, em cada época também o presente é - ou ao menos pode se tornar - a força inaugural de uma história por fazer (RICOEUR, 2019, p.407).
Essa passagem indica que o presente histórico pode assumir dois significados. Em primeiro lugar, é possível tratá-lo como um momento de encerramento de processos anteriores. Na contramão, o presente histórico pode ser visto como como algo vivo, “a força inaugural de uma história por fazer” (RICOEUR, 2019, p.407). Isso indica que a característica viva do presente histórico não está dada de antemão: ele “pode se tornar” um momento de inaugurações. Portanto, fica subentendido que o caráter vivo do presente histórico depende da relação que cada geração estabelece com o que lhe chega do passado. Para Ricoeur, a ênfase na força do presente histórico é uma herança do texto de Nietzsche que traz uma tarefa a ser atualizada em “contextos sempre novos” (RICOEUR, 2019, p.407). Trata-se da tarefa de pensar o “estatuto do presente para a história” (RICOEUR, 2019, p.407). Daí advém, inclusive, o nome que Ricoeur dá a seu capítulo: inspirado por Nietzsche, ele está à procura de uma interpretação do tempo histórico.
Diante da experiência escolar brasileira, as reflexões de Ricoeur nos levam a pensar sobre alguns princípios que podem desencadear ações transformadoras. Se nosso presente histórico é marcado por débitos com as vítimas do passado, fazer dele um tempo vivo, como sugere Ricoeur, demanda estabelecer com o ocorrido um tipo de relação específico; um tipo de relação capaz de modificar o vínculo que, até agora, mantivemos com nosso próprio passado.
No Brasil, a existência das leis 10.639 (BRASIL, 2003) e 11.645 (BRASIL, 2008) mostra que, até a data em que foram elaboradas, as práticas escolares criavam vínculos com o passado que excluíam saberes de parcela significativa de nossos antepassados. A elaboração e aplicação das leis aponta, portanto, para a necessidade de estabelecimento de outro tipo de relação com o passado, uma relação distinta daquela que herdamos de gerações anteriores.
Para levar adiante essa expectativa, o caminho que sugerimos volta à Ricoeur. Em suas reflexões, a possibilidade de uma ação transformadora está ligada a um presente histórico vivo. Se o presente só é vivo quando torna-se a força de uma “história por fazer” (RICOEUR, 2019, p. 407), o aprofundamento da discussão levada adiante aqui demanda uma investigação mais profunda sobre o que está implicado na concepção ricoeriana de história. Nesse sentido, os significados desse conceito podem ajudar a lançar luz sobre o cenário escolar brasileiro da atualidade, ainda fortemente influenciado por lógicas coloniais que vitimaram inúmeros sujeitos de nosso passado e podem seguir influenciando o porvir, se o presente não for permeado de reflexão e ação.
Os significados do conceito de história de Ricoeur coloca em evidência, também, a cultura histórica em que estamos inseridos, termo empregado originalmente por Nietzsche, mas resgatado por Ricoeur. Nesse sentido, uma pesquisa rigorosa sobre esse conceito, na obra do filósofo francês, implicaria também o exame sobre os usos derivados do termo, tais como o sentido da expressão cultura histórica. Se, a cada contexto, podemos abrir o passado a novas descobertas redimensionando nossas perspectivas para o futuro, então, é necessário investigar que relações podemos manter, no presente, com nossa cultura histórica.
Nos movemos pela hipótese de que a escola seja um local privilegiado para criar relações, com a cultura histórica, atentas às vítimas e injustiças advindas do passado. Tal suposição surgiu da leitura de autores como Jean Claude Forquin (2004), teórico francês relevante para o campo da filosofia da educação. Forquin (2004) aponta que a relação entre escola e cultura é de alta pertinência para os assuntos educacionais.
Para justificar esse ponto de vista, o autor defende que, desde a década de 1960, a cultura ocidental veio perdendo sua forma e substância (FORQUIN, 2004, p.10). Na Antiguidade grega, por exemplo, a “enkuklios paideia” trazia ao cotidiano saberes formadores bem delimitados, cuja validade não era questionada. Na avaliação de Forquin, parâmetros como esses desapareceram nas últimas décadas do século XX, o que está vinculado ao fato de que aquele era um momento de fortalecimento do instrumentalismo. Na educação, esse fenômeno contribuiu para que a utilidade momentânea dos temas trabalhados pela escola se tornasse um critério de peso na escolha dos aspectos culturais que deveriam compor os currículos (FORQUIN, 2004, p.10). Surgiu, dessa maneira, uma questão paradoxal: na tese sustentada por Forquin, as escolas não poderiam abandonar a ideia de cultura, mas tampouco deveriam empregá-la de forma operatória (FORQUIN, 2004,p.10). Para o autor, tal paradoxo mostra que a transmissão cultural operada pelas escolas é uma questão crucial, da qual o pensamento pedagógico contemporâneo não pode se esquivar (FORQUIN, 2004, p.9).
Na avaliação de Forquin (2004), a cultura que adentrou os meios escolares a partir dos anos 1960 foi imbuída de um senso prático, que procurou fazer das escolas aparatos úteis a fins externos à educação. Podemos traduzir esse senso prático como a busca pela produtividade, ou, pelo desenvolvimento econômico das sociedades atuais. Se a escola tem a capacidade de não empregar a cultura “de forma instrumental”, como sinalizado por Forquin, o tipo de vínculo que ela pode estabelecer com a cultura é singular. Isso contribui, inclusive, para a especificidade institucional das escolas no presente: se, por um lado, elas fazem a transmissão de aspectos herdados do passado, por outro lado, também podem se opor a conhecimentos e procedimentos que integram essa mesma cultura.
A maneira como Forquin desenvolve seu ponto de vista contribui para realçar a singularidade do vínculo que a escola pode estabelecer com a cultura que a abrange. Forquin defende que a cultura transmitida na escola tem um caráter vivo: trata-se de uma “obra coletiva”, “produto de um processo perpétuo de seleção e decantação, sendo suporte de memória e obra de memória” (FORQUIN, 2004, p.12). Considerar a cultura que adentra a escola algo vivo pressupõe um esforço sempiterno de reflexão sobre o que alimenta nossas relações com o imenso arcabouço cultural herdado de nossos antepassados. Se na escola a cultura é tratada como algo vivo, presume-se que essa instituição educacional, por sua especificidade, pode possibilitar isso, o que não necessariamente ocorre no meio externo à ela.
Forquin defende ainda que a “cultura é o conceito substancial da educação, sua fonte de justificação última” (FORQUIN, 2004, p.14). Em seu ponto de vista, “a educação ‘realiza’ a cultura como memória viva, reativação incessante e sempre ameaçada, fio precário e promessa necessária da continuidade humana” (FORQUIN, 2004, p.14). Essas belas formulações nos ajudam a trazer algumas afirmações de Ricoeur para o campo da educação.
Reunindo o pensamento de Ricoeur e Forquin percebemos que, por um lado, a escola “‘realiza a cultura como memória viva” (FORQUIN, 2004, p.14), o que nos faz supor que ela tem o potencial de abrir o passado a novas descobertas, como proposto por Ricoeur (2019). Por outro lado, ela lida com uma “promessa necessária da continuidade humana” (FORQUIN, 2004, p.14), o que nos leva à conclusão de que a instituição escolar está fortemente vinculada ao horizonte de expectativas para o porvir. Portanto, em nossa cultura histórica, a escola encontra-se num meio de caminho entre passado e futuro; para que ela seja um espaço capaz de fazer de nosso presente histórico um tempo vivo, não reprodutor de injustiças coloniais advindas do passado, é preciso pensar que princípios ensejam as relações com o que nos chega dos tempos pretéritos.
Quiçá, uma investigação mais profunda sobre o conceito ricoeriano de história, que implica as relações que mantemos com o que nos chega do passado, possa contribuir para tanto. Essa suspeita advém da percepção de que Ricoeur cita referências, como Nietzsche, e torna-se referência para autores, como Gagnebin, que pensaram sobre a força do presente histórico. Isso coloca em evidência a preocupação ricoeriana de enfrentar o presente com coragem e compromisso ético voltado à ação transformadora da experiência corrente. A escola parece uma instituição capaz de construir uma relação com nossa cultura histórica que abra o passado a novas descobertas, reavivando nele potencialidades irrealizadas, como proposto por Ricoeur. Somente a reflexão sempiterna sobre a cultura histórica — que adentra os meios escolares — e as ações subsequentes dessa atitude reflexiva parecem capazes de resistir ao encolhimento do espaço de experiências passadas. Isso possibilitaria, ademais, o alargamento de nosso horizonte de expectativas para o porvir.
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[1] Tal como apontado por Ricoeur (2019, p. 353), a polaridade entre as categorias de espaço de experiência e horizonte de expectativas foi introduzida por Reinhart Koselleck (2006). Para esse último, a diferença entre as expressões mostra que a “presença do passado é diferente da presença do futuro” (KOSELLECK, 2006, p. 311): a experiência do passado é espacial, pois resulta da aglomeração de muitos estratos de tempo. Diferentemente, a metáfora do horizonte é mais adequada para referir-se ao porvir pois, apesar dos prognósticos, o futuro é um “limite absoluto”, que ainda não pode ser experimentado (KOSELLECK, 2006, p. 311).
[2] O emprego dessa expressão é emblemático do ensaio Sobre o conceito de história, de Walter Benjamin (2012). Nele, o filósofo atribui aos historicistas a atitude de construir uma versão do passado que beneficia o lado vencedor, dominante. Em oposição, estariam os materialistas históricos, que olham os bens culturais com distanciamento. Isso desencadeia a formulação de Benjamin de que “Nunca houve um documento da cultura que não fosse simultaneamente um documento da barbárie” (BENJAMIN, 2012, p. 245). Essa formulação toca num ponto sensível à problemática aqui apresentada.
[3] Há aqui uma questão terminológica importante: Gagnebin (2006) e Ricoeur (2019) utilizam o termo “vítima” para referir-se às pessoas afetadas negativamente pela história. Ricoeur destaca que ele prefere dizer “história das vítimas e não dos vencidos: pois os vencidos são, em parte, candidatos à dominação que fracassaram” (RICOEUR, 2019, p.321).
[4] Palavra hebraica que significa “calamidade” e que, desde os anos 1940, tornou-se um termo padrão para referir-se ao holocausto (VASHEM).
[5] Nietzsche (1983, 2011) propõe uma tipologia que distingue três concepções do que é o conhecimento histórico. Elas interessam a este artigo pois propõem formas distintas de lidar com o que nos chega de tempos pregressos. Para o filósofo, a primeira concepção de história é aquela que denomina como “monumental”, composta pelos grandes feitos e momentos do passado da humanidade (NIETZSCHE, 2011, p.13). Ela é útil ao presente à medida que possui grandeza, mostrando o que foi “possível uma vez e, por isso, pode ser que seja possível mais uma vez” (NIETZSCHE, 1983, p.60). A segunda corresponde ao “modo antiquário”, que traz o que o passado nos legou de venerável, configurando um solo firme sob o qual podemos nos apoiar no presente. A história como antiquário traz a força de uma tradição compartilhada que, como as raízes de uma árvore, fundamenta a existência. Entretanto, ela possui um perigo: se preserva a vida, faz pouco caso do futuro; se guarda uma antiguidade que se quer imortal, não aponta para a produção do novo, podendo mumificar o passado e paralisar o homem de ação (NIETZSCHE, 2011, p. 19). Por isso, Nietzsche defende que, às duas maneiras de considerar o passado, é preciso adicionar uma terceira, a “história crítica”. Trata-se de uma via que pode colocar-se à serviço da vida, trazendo consigo a força de quebrar ou destruir aquilo que nos chega do passado (NIETZSCHE, 2011, p. 19), uma vez que “todo passado é digno de condenação” (tradução nossa, NIETZSCHE, 2011, p. 20). “Porque somos fruto de gerações anteriores, somos também o resultado de seus erros, de suas paixões, de seus equívocos e até mesmo de seus crimes” (tradução nossa, NIETZSCHE, 2011, p. 20). Após especificar a particularidade de cada uma dessas concepções, o autor conclui que as três fazem algo parecido: transformam a história num conhecimento que está sob domínio do tempo presente. Isso contribui para a crítica que ele faz à cultura histórica moderna, que mencionaremos adiante.