Julio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero
Doutor em Teologia pela Faculdade Teologica Sul Americana. Atua nas áreas de Diálogo com a Filosofia da Religião e Semiótica das Linguagens Religiosas. Contato: jzabatiero@uol.com.br
Resumo: Este artigo oferece à discussão uma leitura exegético-teológico do sétimo golpe (praga) contra o Egito no ciclo das chamadas Dez Pragas. A metodologia adotada é híbrida, juntando elementos da exegese histórica com elementos da análise literária e narratológica. É o maior dos relatos individuais, com exceção do relato do último golpe se levarmos em conta a descrição do vínculo com a Páscoa. Sua função no ciclo dos golpes é acrescentar mais uma evidência da supremacia do poder de YHWH contra o Faraó e os deuses do Egito, de modo que estes não tenham alternativa senão reconhecer a presença e o poder de YHWH como libertador do seu próprio povo. Em relação ao povo de YHWH, o relato reforça a sua convicção do caráter libertador de YHWH e da importância de Moisés como o seu parceiro na libertação e saída do Egito.
Palavras-Chave: Faraó. Coração; Golpe; Êxodo. Libertação
Abstract: This article offers for discussion an exegetical-theological reading of the seventh blow (plague) against Egypt in the cycle of the so-called Ten Plagues. The methodology adopted is hybrid, combining elements of historical exegesis with elements of literary and narratological analysis. It is the largest of the individual accounts, with the exception of the account of the last blow if we take into account the description of the link with Passover. Its function in the cycle of blows is to add further evidence of the supremacy of YHWH's power against the Pharaoh and the gods of Egypt, so that they have no alternative but to recognize the presence and power of YHWH as the liberator of their own people. In relation to YHWH's people, the account reinforces their conviction of YHWH's liberating character and the importance of Moses as their partner in the liberation and exodus from Egypt.
Keywords: Pharao Heart Blow; Exodus; Liberation
Um dos textos mais famosos da Bíblia, especialmente por sua recepção e exposição cinematográfica, é o relato das Dez Pragas contra o Egito. Além da repercussão cinematográfica, o relato também se notabiliza pelo grande número de trabalhos referentes à sua historicidade. A pergunta básica é se as pragas realmente aconteceram e de que modo aconteceram – literalmente conforme relatado, ou de outro modo, com o relato entendido metafórica ou simbolicamente. Nenhum desses aspectos, porém, apesar de legítimos, é do interesse deste artigo. O foco e objetivo deste trabalho são a compreensão exegético-teológica do relato de uma das chamadas pragas, ou, como seria mais adequado do ponto de vista do idioma hebraico, o golpe do granizo (Êx 9,13-35).[1] O relato deste golpe é o sétimo na lista de dez e é o maior dos relatos individuais, com exceção do longo relato da morte dos primogênitos e a consequente Páscoa dos hebreus. O formato do artigo segue o padrão de comentários exegéticos e a metodologia utilizada é híbrida: mescla elementos de métodos históricos e literários na busca de uma compreensão teológica do texto dentro de seu contexto histórico de produção e recepção. Nesta exegese, o contexto do livro do Êxodo é o da sua redação no Pentateuco (não discutiremos a sua história da tradição, composição e redação), possivelmente na parte final da dominação persa sobre Israel (primeira metade do século IV a.C.), conforme o consenso atual na pesquisa histórico-crítica.
(A) 13 E disse YHWH a Moisés: levanta-te pela manhã e vai ao faraó e dize-lhe: Assim disse YHWH, Deus dos hebreus: envia meu povo e me servirá.
(B) 14 Pois desta vez enviarei todas as minhas pragas ao teu coração, e em teus servos e em teu povo, para que reconheças que não há um como eu em toda a terra, 15 pois eu poderia ter estendido minha mão para te ferir e a teu povo com pestilência e terias sido eliminado da terra. 16 Contudo, far-te-ei permanecer a fim de veres meu poder e para que meu nome seja anunciado em toda a terra. 17 Se continuares a agir arrogantemente contra meu povo e recusar-se a enviá-lo, 18 amanhã, a esta hora, choverá granizo, pesado como jamais houve no Egito, desde o dia em que foi fundado até agora.
(C) 19 Envia agora a proteger o teu gado e tudo o que tens no campo, pois toda pessoa ou animal que estiver no campo e não em casa e descerá sobre eles o granizo e morrerão. 20 E temeram a palavra de YHWH alguns dos servos do faraó e fugiram os servos e seus bens para as casas, 21 mas quem não colocou a palavra de YHWH em seu coração deixou os seus servos e seu gado no campo.
(D) 22 E disse YHWH a Moisés: estende a tua mão para o céu e haverá granizo em toda a terra do Egito, sobre as pessoas, sobre os animais e sobre toda a erva do campo na terra do Egito. 23 E estendeu Moisés seu bordão para o céu e YHWH fez trovejar e cair granizo. Fogo caiu sobre a terra e fez YHWH chover granizo sobre a terra do Egito.
(D’) 24 E houve granizo e fogo que reluzia no meio do granizo e o granizo era grande como jamais houvera em toda a terra do Egito desde sua fundação. 25 O granizo feriu toda a terra do Egito, tudo o que estava no campo, pessoas e animais, o granizo destruiu toda a erva do campo e toda árvore do campo estraçalhou. 26 Somente na terra de Goshen, em que viviam os filhos de Israel, não houve granizo.
(C’) 27 E enviou Faraó e chamou Moisés e Arão e lhes disse: transgredi desta vez, YHWH é justo, mas eu e meu povo somos pecadores. 28 Suplicai a YHWH para que parem os trovões de Deus e o granizo. Eu vos enviarei e não vos reterei. 29 E disse Moisés: ao sair da cidade estenderei a palma de minhas mãos a YHWH e os trovões cessarão e não haverá mais granizo, para que saibais que de YHWH é a terra. 30 De ti e de teus servos sei que ainda assim não temereis a presença de YHWH Deus. 31 Linho e cevada foram destruídos, a cevada já estava na espiga e o linho em flor. 32 Mas trigo e centeio não foram destruídos, eram tardios.
(B’) 33 Saiu Moisés de junto do faraó e, fora da cidade, estendeu a palma de suas mãos a YHWH, e terminaram os trovões o granizo e a chuva não caiu mais sobre a terra. 34 E viu faraó que a chuva, o granizo e os trovões cessaram e aumentou seu pecado e fez pesado seu coração e o de seus servos.
(A’) 35 E endureceu o coração de faraó e não enviou os filhos de Israel, como falara YHWH pela mão de Moisés.
Este é o maior dos relatos do ciclo (o segundo maior é o próximo). Como o primeiro golpe do terceiro grupo, é também iniciado com a ida de Moisés ao encontro do faraó pela manhã (os dois primeiros grupos têm 3 golpes cada, enquanto este tem 4 – assim este relato pode funcionar tanto como uma espécie de conclusão a um ciclo quanto como uma introdução a um novo ciclo). No primeiro e quarto golpes o encontro se dá às margens do Nilo, mas neste o local não é mencionado. A fórmula do mensageiro, juntamente com a expressão Deus dos hebreus, porém, está ausente do primeiro e do quarto golpes. A mensagem, “envia meu povo e me servirá”, está presente em seis relatos (7,16 primeiro; 7,26 segundo; 8,16 quarto; 9,1 quinto; 9,13 sétimo e 10,3 oitavo), sempre nos dois primeiros de cada grupo de três/quatro. É a única vez no ciclo em que um golpe é proferido contra o coração do faraó. Se o sétimo golpe for visto como narrativamente climático, faz todo o sentido que o golpe atinja o coração inflexível do faraó a fim de que ele, talvez finalmente, reconheça YHWH como um deus especial, peculiar. Carpenter nota que o coração do faraó é mencionado 23 vezes no ciclo (onze antes deste golpe e onze depois), de modo que esta menção ocupa o lugar estrutural central da epistême do faraó (CARPENTER, 2016, p. 400). Por outro lado, em Êx 15,8 o faraó e seu exército são lançados ao coração do mar, metáfora apropriada de um coração devorando outro: o coração do caos cósmico devora o coração do caos político.
É peculiar a este relato o diálogo sobre o que YHWH poderia ter feito contra o Egito (v. 15-17), adiando a apresentação do golpe até o v. 18. É, também, o único relato em que YHWH informa previamente aos egípcios como se proteger do golpe. Pela primeira vez Moisés recebe a ordem de elevar sua mão aos céus. Em 10,13 Moisés aponta o bordão para o céu, mas não recebera ordem de YHWH para fazê-lo. Em 10,21-22 a ordem é repetida, mas, diferentemente daqui, em que Moisés aponta o bordão para o céu (v. 23), no relato do nono golpe ele eleva a sua mão aos céus. Esta é uma característica, portanto, do terceiro grupo de golpes[2]. Outra peculiaridade deste relato é o uso de duas frases para se referir à obstinação estulta do faraó. Na primeira vez, o faraó ‘torna pesado’ seu coração, enquanto na segunda, ele endurece seu coração. Como o primeiro relato de uma nova série, esta duplicidade serve como indicação de avanço narrativo. Por outro lado, o fato de ser o próprio faraó quem endurece seu coração forma quase um anticlímax em relação ao final do golpe anterior, embora introduza um avanço narrativo ao uso de YHWH como sujeito do endurecimento nos dois próximos golpes. Pela última vez nos nove relatos encontramos a expressão ‘como falara YHWH’, que se refere à introdução ao ciclo em Êx 7,13 – todavia, é a única vez no ciclo que lemos “como falara YHWH pela mão de Moisés”, ao invés da costumeira expressão “como falara YHWH a Moisés”. Do ponto de vista do enredo do livro, a mão estendida de Moisés, com o bordão, remete ao bordão que separa o mar em Êx 14,13ss.
Estruturalmente este e o próximo relato são similares e pela primeira vez há menção ao golpe anterior (no oitavo golpe: 10,5.12.15), oferecendo uma contiguidade narrativa aos episódios do ciclo. Há grande semelhança entre este relato e o próximo, e também com o terceiro desta série, embora seu tamanho seja bem menor e sua estrutura bem mais simples.
A abertura do relato (v. 13 segmento A da estrutura) já é conhecida no ciclo dos golpes. Usando a fórmula do mensageiro estabelece um novo encontro entre Moisés e o faraó pela manhã. O segundo segmento da perícope, entretanto, é uma novidade no ciclo, tanto pelo diálogo a ser estabelecido entre YHWH (mediado por Moisés) e o faraó, quanto pelo uso do plural em relação aos golpes. É a única vez no Êxodo que se usa a palavra magaphah[3]. A sentença anunciada caso o faraó não liberte os israelitas é o envio de todas as minhas pragas – a ênfase recaindo sobre a totalidade e seus efeitos, não sobre os golpes individualmente – com o plural remetendo para os golpes anteriores e posteriores.[4] O uso da palavra e do verbo cognato sugere tanto a ocorrência de doenças e morte, quanto de derrota militar. Os destinatários do golpe também são peculiares no ciclo: é a única vez em que o coração do faraó se torna vítima, juntamente com os servos e o povo do faraó (já presentes em outros relatos como vítimas). O objetivo dos golpes é a mudança do modo de pensar do faraó.
Tendo o faraó como destinatário, quatro vezes no ciclo dos golpes é encontrada uma expressão de reconhecimento (em 10,2 os filhos de Israel são os destinatários da expressão): (a) Assim disse YHWH: por meio disto reconhecerás que eu YHWH (7,17 no primeiro golpe); (b) para que reconheças que não há outro como YHWH nosso Deus (8,6 no segundo); (c) a fim de que reconheças que eu YHWH no meio da terra (8,18 quarto golpe) e aqui “para que saibais que não há um como eu em toda a terra”. Na primeira ocorrência, a fórmula remete diretamente à fala do faraó que não sabia quem era YHWH (5,2). Na terceira ocorrência o objetivo é que o faraó reconheça que YHWH está presente e atuante no seu território. Na segunda e na quarta ocorrências o objetivo é que o faraó reconheça a incomparabilidade de YHWH. Andiñach captou bem o impacto retórico da expressão, apesar de unificar o seu propósito nas quatro ocorrências, o que, a meu ver, é inadequado:
A finalidade da praga define-se como “para que saibas que não há ninguém como eu na terra”. Esse objetivo já se encontra em 7,17; 8,6.18, o que evidencia que se pretende mudar o pensamento do faraó. Nos quatro casos o interesse é mostrar que Javé é o Senhor de toda a terra e que tudo está sujeito a ele. Isso não era somente uma novidade para o faraó, mas também um absurdo, dado que, para ele, os Deuses mais poderosos eram os seus. Ninguém podia questionar sua supremacia, muito menos se podia tolerar que o Deus dos escravos proferisse tais palavras. A terra e seus habitantes pertenciam a ele, o faraó, e não ao Deus dos hebreus. (ANDIÑACH, 2010, p. 138)
Nesta perícope não se trata do conhecimento de YHWH enquanto tal, nem propriamente do seu poder, mas do reconhecimento de que ele é único, incomparável, de que não há outro Deus como ele – cheio de misericórdia! Não se trata de demonstrar o poder de Deus separadamente de sua misericórdia, pois YHWH já poderia ter enviado suas pragas e destruído não só o faraó, como também todo seu povo e sua terra. A demonstração da misericórdia é, então, acompanhada da manifestação do poder de YHWH (v.16), de modo que a sobrevivência do faraó e de seu povo é motivo para o anúncio do nome de YHWH em toda a terra. Não se trata de um anúncio evangelístico, mas, sim, da informação[5] de que YHWH é Deus poderoso e misericordioso. Nome comumente se refere ao caráter da pessoa, ou à presença de YHWH (em textos deuteronômicos), mas, aqui, é mais provável que se refira à honra, à reputação de YHWH na terra – do Egito, apesar de vários comentaristas verem uma referência a todos os povos (e.g. DAVIES, 2020; CARPENTER, 2016; FRETHEIM, 2010). A mudança de modo de pensar não tem a ver apenas com o intelecto, mas com a própria atitude do faraó: ele deve abdicar de sua teimosa arrogância e libertar os israelitas de sua dominação. Caso se recuse a atender à demanda de YHWH, então verá a demonstração do seu poder.
É claro que a expressão meu nome remete aos encontros de YHWH com Moisés, em que o nome de YHWH é revelado ao mensageiro do Deus dos hebreus (3,14; 6,2-10) Ainda do ponto de vista do enredo, a expressão aponta para 15,3; 33,19 e 34,5 – na celebração da libertação e na instrução a Moisés sobre quem é YHWH. No hino é destacado o poder de YHWH capaz de derrotar o exército egípcio, enquanto no relato do bezerro de ouro o nome de YHWH é expressão de misericórdia e perdão ao seu povo idólatra. Do ponto de vista da reputação ou honra, podemos também remeter o uso da expressão aqui com o chamado de Abrão, cujo nome será engrandecido por YHWH – é a honra de YHWH que garante a honra de Abrão e sua descendência. Assim como YHWH demonstrou misericórdia a Abraão diante de seus repetidos erros, e demonstrou misericórdia aos israelitas no deserto, também manifesta a sua misericórdia ao faraó e ao povo egípcio. Não podemos falar do poder de YHWH desvinculadamente de sua misericórdia – pois então ele seria apenas mais um dentre tantos deuses adorados no Antigo Oriente. É a delimitação misericordiosa do poder que torna YHWH único em toda a terra. A sua incomparabilidade não é baseada no exercício puro e simples do poder (qualquer deus faria isso), mas no exercício misericordioso do poder, mesmo quando tem o direito de punir os destinatários de seu poder. Podemos nos perguntar qual a relação desta noção com o anúncio salvífico de Is 19,24-25: “naquele dia, Israel será o terceiro com os egípcios e os assírios, uma bênção no meio da terra; porque YHWH dos Exércitos os abençoará, dizendo: ‘bendito o Egito, meu povo; a Assíria, obra de minhas mãos; e Israel, minha herança”? Talvez tenhamos aqui um indício negligenciado na pesquisa sobre a história da escrita do Pentateuco.
Este segmento da perícope se encerra com o anuncio do golpe propriamente dito: “amanhã, a esta hora, choverá granizo, pesado como jamais houve no Egito, desde o dia em que foi fundado até agora” (v. 18). Em relatos anteriores (8,19 e 9,5) amanhã é o tempo do golpe em função da proteção dos israelitas, aqui, o golpe é designado para amanhã a fim de que os egípcios possam proteger a si mesmos e seus animais – conforme a advertência no verso 19 e sua resposta nos versos 20-21. Alguns servos do faraó temeram a YHWH e atenderam à sua advertência, enquanto outros não a consideraram válida e, por isso, deixaram seus animais e empregados no campo. O verbo temer e a expressão colocar a palavra de YHWH no coração funcionam como desencadeadores de isotopia: (a) por um lado, devem ser entendidos em sentido teologicamente neutro se consideramos os egípcios como sujeitos das ações – eles tiveram medo do que aconteceria, ou simplesmente não acreditaram que poderia acontecer o que fora dito; (b) por outro lado, se pensarmos nos leitores/ouvintes israelitas e atuais, os verbos devem ser entendidos em sentido teologicamente forte: comprometer-se com YHWH e aceitar plenamente a sua palavra (em conjunto, estas duas temáticas são típicas do Deuteronômio).
O terceiro segmento encaminha o relato ao seu centro estrutural, ocupado por dois segmentos (v. 22-23 e v. 24-26), que consiste no golpe propriamente dito. Enquanto a ordem de YHWH no v. 22 é que Moisés eleve a sua mão aos céus, no v. 23 Moisés cumpre a ordem apontando o seu bordão[6] para os céus. Na ordem, o golpe é descrito como granizo em toda a terra do Egito (...), enquanto no cumprimento ele passa a ser descrito como YHWH fez trovejar e cair granizo. Fogo caiu sobre a terra e YHWH fez chover granizo sobre a terra do Egito. O golpe é claramente descrito como uma forte tempestade, com relâmpagos (o significado mais provável do fogo que cai sobre a terra), trovões e granizo – um fenômeno inexistente no Egito devido à sua configuração geoclimática. Dozeman destaca que a descrição de YHWH enviando a tempestade ao Egito retrata o Deus dos hebreus de modo similar a Baal, o deus da chuva dos cananeus. Como deus da tempestade YHWH é o deus que vence as guerras de seu povo. Davies, porém, considera inválida a interpretação de Dozeman:
O papel do cajado de Moisés, em conjunto com a vinda da tempestade, foi comparado por Propp (p. 334) ao do 'poste de raios' de Baal (ʿṣ brq) em um texto ugarítico (KTU 1.101.4; cf. ANEP, nºs 490 e 500). Isto pode parecer fortalecer o argumento de Dozeman (ver acima nos vv. 17-19) para a representação de Yahweh aqui como o deus da tempestade, mas o fato de ser Moisés quem empunha o cajado, e não YHWH, mina um pouco o paralelo. (DAVIES, 2020, p. 608)
Parece mais provável vincular a descrição do golpe com o poder criador de YHWH do que com a descrição de Baal (ver, também, ANDIÑACH, 2010, p. 139).
O golpe propriamente dito é descrito com muito mais intensidade do que o seu anúncio (v. 18.22), mas não se deve usar as diferenças como indicativo de eventuais fontes distintas do relato, pois uma chuva de granizo normalmente era acompanhada de relâmpagos e trovões. O centro estrutural é completado (D’) pela repetição do golpe e pela apresentação dos seus efeitos sobre o Egito e o livramento dos israelitas em Goshen. A consequência geral do golpe foi a destruição dos campos egípcios, o ferimento e/ou morte de pessoas e animais que estavam nos campos. A ameaça foi cumprida e, mais uma vez, o gado egípcio foi exterminado, assim como as suas plantações e flora em geral. Um detalhe importante deve ser ressaltado: o granizo era grande como jamais houvera em toda a terra do Egito desde que se tornara uma nação. A expressão retoma o v. 18 “amanhã, a esta hora, choverá granizo, pesado como jamais houve no Egito, desde o dia em que foi fundado até agora”. Embora a referência imediata seja a origem do Egito enquanto povo, não podemos descartar totalmente uma alusão à criação do mundo. Prefiro, porém, dado o ambiente da tempestade, ver nestes versos duas referências: (a) a primeira retrospectiva, à promessa de YHWH a Abrão que ele se tornaria uma grande nação; (b) a segunda, proléptica, à revelação no Sinai – até agora YHWH não tem sido conhecido plenamente, será conhecido, porém, quando se revelar entre trovões, tempestades e erupção vulcânica.
A descrição dramática do golpe e seu posicionamento climático na perícope encaminham para a segunda metade do relato do golpe, que mostra mais uma vez o faraó rogando a Moisés que ore a YHWH para cessar a praga. O diálogo entre o faraó e Moisés é mais amplo do que em relatos anteriores, assim como a afirmação sobre o endurecimento do coração do faraó é dupla, pela primeira e única vez no ciclo. A fala do faraó é calculada para conseguir a aprovação de Moisés. Ele reconhece seu erro – a tradução do verbo hebraico por pecar aproveita o fato do verbo ser um desencadeador de isotopia: para o ouvinte israelita o faraó admite mais do que um erro, mas do ponto de vista do faraó é provável que tenha apenas concedido a Moisés ter errado nas negociações. Em 27b temos uma oração que alude aos termos de uma aliança: “eu e meu povo somos pecadores”, mas não se deve fazer inferências exageradas deste fato. Assumida a culpa, o faraó pede a Moisés que ore a YHWH para o cessamento da tempestade, e agora ele promete libertar o povo sem condições, como havia feito em outros diálogos. Moisés responde positivamente que orará após sair da cidade, mas faz o faraó saber que ele não acredita que o faraó e os seus servos (não o seu povo) continuarão a não temer a presença de YHWH na terra – ele sabe que a negociação visa apenas protelar o inevitável.
Antes da narrativa da oração de Moisés os versos 31-32 oferecem um detalhe que tem intrigado comentaristas do livro, como, por exemplo:
Os v. 31-32 parecem indicar que, já que algumas colheitas se salvaram, ao faraó ainda restaram recursos materiais para poder continuar negando o direito dos israelitas de ser libertados da escravidão. (n.) defendeu-se a ideia de que esses versículos foram acrescentados para deixar sobrar algumas culturas para a praga seguinte, a dos gafanhotos (cf. 10,5). Também se aventou a hipótese de que os v. 31-32 se encontravam, originalmente, logo após o v. 24, onde sua presença seria mais lógica [cf. DURHAM, J. I. Exodus. Waco, 1987, p.126-129]. (ANDIÑACH, 2010, p. 140, texto e n. 55)
Dozeman (2009, in loco) entende que os versos foram acrescentados para esclarecer aos ouvintes israelitas a respeito do calendário agrícola do Egito. DAVIES (2020, p. 610), por sua vez, afirma, após mencionar a hipótese de que os versos deveriam vir após o v. 24: “sua posição, porém, foi cuidadosamente escolhida, conforme indica Houtman (1996, p. 95): a incompletude da devastação das colheitas provê uma explicação específica para a suspeita de Moisés, no v. 30, de que a reação dos egípcios não seria duradoura”. A explicação textual é dada pelo golpe seguinte (10,5.12.15), ao que podemos acrescentar, talvez, um motivo teológico: YHWH deixou um resto de colheita como expressão de sua misericórdia (um tema importante neste relato).
Os v. 33-34 narram a oração de Moisés, que levanta a palma de suas mãos aos céus em oração – um contraste com as mãos levantadas para trazer a tempestade – e o golpe é cessado. A reação do faraó é esperada, mas exposta de modo a contrapor-se à sua confissão inicial e é formulada com veia poética:
(A) Aumentou seu pecado
(B) Manteve obtuso o seu coração e o de seus servos
(B’) E endureceu o seu coração
(A’) E não enviou os filhos de Israel
Mais do que apenas continuar pecando, o faraó tornou seu pecado ainda mais intenso, pois mentiu e, mais uma vez, não deixou o povo de Israel sair do Egito. Não foi o poder do faraó, porém, que reteve os israelitas, mas a soberania de YHWH: “como falara YHWH pela mão de Moisés”[7]. Narrativamente este relato não só oferece um clímax à série anterior, como também introduz a nova série de três e o último e decisivo golpe contra o faraó e seu povo. A expressão pela mão de Moisés funciona também como uma referência proléptica à renovação da aliança após o episódio do bezerro de ouro (34,29) – se YHWH pode ‘perdoar’ o faraó e seu povo, também poderá perdoar o seu próprio povo e manter a sua parceria com ele.
O relato dos dez golpes (pragas) de YHWH contra o Faraó e o Egito é uma das estórias mais conhecidas da Escritura Hebraica, e tem estimulado a imaginação de artistas, cineastas, além de proporcionar à pesquisa exegética uma fonte infinita de interpretações e questionamentos. Este sétimo golpe traz sua colaboração ao conjunto do relato, mostrando que independentemente da gravidade do golpe, o Faraó egípcio continua firme em sua decisão de não deixar os hebreus saírem do Egito. Diferentemente de outros relatos, aqui é o próprio faraó quem endurece seu coração, e não YHWH; porém, a teimosia do Faraó está dentro do plano libertador de YHWH anunciado a Moisés. A teimosia do Faraó se reafirma, apesar dele suplicar a Moisés pelo perdão de YHWH e pela cessação do golpe. YHWH, atende a súplica do Faraó, mesmo sabendo que ele não iria – ainda – libertar o povo do Egito. Isoladamente, o relato mostra a supremacia do poder de YHWH em relação ao Faraó e aos deuses do Egito – lido no conjunto do ciclo dos golpes, indica também a misericórdia de YHWH que atende à súplica do faraó mesmo sabendo que ele não iria libertar o seu povo. O objetivo do ciclo dos golpes é que o Faraó e seu povo reconheçam quem é YHWH, o Deus dos hebreus, o libertador de seu povo. E esta é a sua contribuição principal para a compreensão do livro do Êxodo. O reconhecimento de YHWH é resposta ao reconhecimento do povo por YHWH, de modo que o caráter compassivo, relacional e libertador de YHWH é destacado no livro – não só na libertação propriamente dita, mas também na relação de aliança e compromisso mútuo que se estabelece entre Deus e seu povo.
Referências
ANDIÑACH, Pablo R. O Livro do Êxodo. Um comentário exegético-teológico. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2010.
CARPENTER, Eugene. Exodus. Bellingham: Lexham Press, 2016.
DAVIES, Graham I. Exodus 1-10 A Critical and Exegetical Commentary. Nova Iorque: T & T Clark, 2020.
DOZEMAN, Thomas B. Exodus. Grand Rapids: Eerdmans, 2009.
FRETHEIM, Terence E. Exodus. Louisville: Westminster John Knox Press, 2010.
HOUTMAN, Cornelis. Exodus vol. 2. Leuven: Peeters, 1996.
UTZSCHNEIDER, Helmut; OSWALD, Wolfgang. Exodus 1-15. Stuttgart: Kohlhammer, 2012.
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[1] Tendo em vista os limites de um artigo, questões teológicas e históricas importantes não serão tratadas, tais como a violência de YHWH contra o Egito, a relação entre o endurecimento do coração do faraó por YHWH e a justiça; a historicidade dos golpes.
[2] Do ponto de vista do enredo do livro, a mão estendida de Moisés, com o bordão, remete ao bordão que separa o mar em Êx 14,13ss.
[3] Esta palavra hebraica é usada apenas aqui no Êxodo (embora o verbo da mesma raiz ocorra em 12,13 e 30,12, ambos P). Assim como o verbo (‘golpear, ferir’), a palavra é usada para designar derrota militar (1Sm 4,17; 2Sm 17,9; 18,7), para sofrimento individual e para praga, peste ou pestilência. Este último significado é particularmente comum nas seções sacerdotais de Números, em Crônicas e em outros textos tardios (Zc 14,12.15.18; Sl 106,29-30), mas também é encontrado em 1Sm 6,4 e 2Sm 24,21.25 e o verbo é usado nesse tipo de contexto em Êx 12,23.27 (não P); 32,35; Js 24,5. Portanto, não é necessariamente uma marca de autoria sacerdotal (P em Êxodo, na verdade, prefere outras palavras para as pragas: cf. 6,6; 7,3-4) ou de uma data tardia para o versículo. DAVIES, 2020, p. 598.
[4] Para uma opinião diferente, que vê apenas remissão às próximas pragas: “a referência a ‘todas as minhas pragas’ não é clara. Poderia significar (veja o panorama em Houtman, 1996, p. 85-86) os múltiplos fenômenos que ocorrem com a praga do granizo, a saber, a chuva, o trovão e o fogo. Talvez estas também sejam pragas de Deus porque evocam YHWH como um Deus do clima e, portanto, uma teofania (Dozeman, Exodus, 236; ver Sl 18,14; Jó 38,22-23: granizo como arma de Deus). Outra possibilidade é interpretar a forma plural como um plural de intensidade, sendo a praga do granizo caracterizada como particularmente severa. Parece-nos que – pelo menos para a forma final do texto – a referência mais adequada é às três pragas seguintes (como já havia sustentado Dillmann, Exodus, 96, e mais recentemente Berner, Exoduserzählung, 216).” (UTZSCHNEIDER; OSWALD, 2012, p. 343)
[5] O verbo hebraico é usado também em Êx 18,8 “Contou Moisés a seu sogro tudo o que o Senhor havia feito a Faraó e aos egípcios por amor de Israel, e todo o trabalho que passaram no Egito, e como o Senhor os livrara” e 24,3 “Veio, pois, Moisés e referiu ao povo todas as palavras do Senhor e todos os estatutos; então, todo o povo respondeu a uma voz e disse: Tudo o que falou o Senhor faremos”. (ARA)
[6] Em 7,19; 8,1.12 é Arão quem estende o bordão a fim de realizar o golpe.
[7] A frase final, 'através de Moisés' também é nova: é encontrada em passagens sacerdotais posteriores no Êxodo (34,29; 35,29) e em outros livros do Pentateuco (por exemplo, Lv 8,36), mas sempre com referência aos mandamentos de Yahweh. O uso de 'através' (heb. beyad) em relação a uma predição, como aqui, encontra seus paralelos mais próximos, não surpreendentemente, em narrativas proféticas nos livros históricos (1Sm 28,15.17: mais exemplos em BDB, pág. 391). Houtman (p. 96) e outros interpretam isso como uma referência às palavras de Moisés no v. 30, mas elas não são uma fala divina. Se se pretende uma referência específica, é mais provável que seja a versículos como 3,19; 4,21 e 7,3–4. Boa parte do v. 35 também encontra um paralelo próximo nas conclusões dos próximos dois episódios (10,20.27), bem como em 11,10b. DAVIES, 2020, p. 611.