Cainan Espinosa Gimenes
Mestre em Filosofia e Ensino pelo Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ). Contato: cainan.gimenes@santoinacio-rio.com.br
Leandro Couto Carreira Ricon
Doutor em História Comparada pelo Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor da Universidade Católica de Petrópolis (UCP) no Programa de Pós-Graduação em Educação. Contato: leandro.ricon@ucp.br
Resumo: Este artigo explora a intersecção entre a espiritualidade inaciana e a análise do cotidiano proposta por Michel de Certeau, destacando como ambos abordam a integração entre a prática espiritual e a vida diária. A análise centra-se nas primeiras duas semanas dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola e na teoria de Certeau sobre práticas diárias, discutindo como o cotidiano pode servir como um espaço para a espiritualidade e a resistência. Na primeira semana dos Exercícios, Santo Inácio convida os exercitantes a contemplar a presença divina em suas atividades diárias, promovendo uma integração entre espiritualidade e cotidiano através do Princípio e Fundamento e da prática da indiferença. Certeau, por sua vez, explora o cotidiano como um campo de resistência e criatividade, onde as táticas individuais desafiam as estruturas sociais dominantes. Nesse sentido, tanto a abordagem inaciana quanto a teoria de Certeau reconhecem a importância do cotidiano como um espaço ativo e dinâmico para a experiência espiritual e a prática crítica. Ao integrar os conceitos de Princípio e Fundamento com a teoria das táticas de Certeau, o estudo revela como o cotidiano pode ser um meio de transformação espiritual e resistência social, oferecendo uma visão enriquecedora sobre a prática diária como um campo de ação significativo na busca por uma experiência espiritual autêntica.
Palavras-chave: Espiritualidade Inaciana; Cotidiano; Táticas e Estratégias; Resistência e Criatividade
Abstract: This article explores the intersection between Ignatian spirituality and the everyday practices analyzed by Michel de Certeau. Focusing on the first and second weeks of Ignatius of Loyola’s Spiritual Exercises, it examines how the daily life is intertwined with spiritual contemplation. According to Certeau, everyday practices are not mere routines but are spaces of creativity and resistance within societal structures. The Ignatian approach, emphasizing a profound engagement with the daily routine through spiritual lenses, mirrors Certeau’s views on the everyday as a realm of practical agency and transformation. The study discusses the concepts of “Principle and Foundation” and “Indifference” in Ignatian spirituality, highlighting how they guide the practitioner towards a deeper alignment with divine will. The article further delves into Certeau’s distinction between "strategies" and "tactics," showing how Ignatian spirituality aligns with these ideas by integrating practical spirituality into daily living. In the third and fourth weeks of the Exercises, the focus shifts to the contemplation of the other, reflecting on how Ignatian spirituality fosters a transformative experience that respects the distinctiveness of the divine-human relationship. This exploration underscores the relevance of everyday practices in spiritual development and the dynamic interplay between spiritual and mundane aspects of life.
Keywords: Ignatian Spirituality; Everyday Life; Tactics and Strategies; Resistance and Creativity
Este artigo explora a interseção entre a espiritualidade inaciana e o pensamento de Michel de Certeau, analisando como ambas as perspectivas oferecem um entendimento profundo sobre a prática espiritual e seu impacto na vida cotidiana. Inácio de Loyola (1491 - 1556), em sua jornada espiritual que começou com a transformação pessoal após os ferimentos em Pamplona e culminou com os Exercícios Espirituais, propôs uma metodologia que integra a mística com a realidade histórica e material da pessoa de Cristo. Seus Exercícios Espirituais visam não apenas uma introspecção profunda, mas também uma prática espiritual que se manifesta no serviço ao próximo e na busca pela maior glória de Deus. Em contraste, Michel de Certeau (1925 - 1986), um pensador contemporâneo, aborda a espiritualidade e o conhecimento a partir de uma perspectiva que reflete sua vida religiosa e seu compromisso com os marginalizados. A interconexão entre as práticas espirituais e a vida cotidiana, bem como a aplicação prática do amor a Deus e ao próximo, são temas centrais que unem as abordagens de Inácio e De Certeau.
A relação entre espiritualidade e cotidiano é uma temática profunda e multifacetada, especialmente quando analisada à luz dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola (2010) e da teoria de Michel de Certeau sobre práticas cotidianas (1994). Na primeira e segunda semanas dos Exercícios Espirituais, Santo Inácio oferece um método que visa integrar a espiritualidade com a vida cotidiana, propondo uma contemplação profunda da presença divina em cada aspecto da existência. Michel de Certeau, por sua vez, explora o cotidiano como um espaço de resistência e criatividade, destacando a importância das práticas diárias na vida dos indivíduos comuns. Este artigo examina como as práticas espirituais inacianas e a análise de Certeau se inter-relacionam, especialmente no que se refere à indiferença, ao Princípio e Fundamento, e à prática cotidiana como espaço de transformação e resistência. Através dessa análise comparativa, buscamos compreender como o cotidiano pode ser um campo ativo para a espiritualidade e a prática crítica, revelando a riqueza e a complexidade da vida diária tanto na perspectiva espiritual quanto na social.
Inácio de Loyola, no contexto de uma profunda transformação pessoal, vivenciou um processo de conversão iniciado durante sua convalescença em Loyola após ferimentos graves sofridos no ataque à fortaleza de Pamplona em maio de 1521. Durante este período, se dedicou à peregrinação a Jerusalém com o objetivo de visitar os Lugares Santos e recordar a presença terrena de Jesus. Esta jornada, no entanto, foi além do mero ato de visitação; tornou-se um momento crucial de revelações espirituais e místicas que moldaram sua compreensão teológica.
O impacto espiritual dessas experiências levou Inácio a uma compreensão mais profunda do mistério trinitário e da humanidade de Cristo, algo particularmente ilustrado durante sua meditação no rio Cardoner. Na sua Autobiografia, ele descreve essas visões místicas, destacando uma revelação essencial sobre a Trindade e a criação (LOYOLA, 2015, p. 55-57). Segundo o próprio Santo Inácio, Deus o tratou durante esse período “como um professor trata uma criança quando a ensina” (LOYOLA, 2015, p. 56), sugerindo um processo educativo divino que moldou sua espiritualidade de forma íntima e pessoal.
Em contraste com certos grupos de “alumbrados”, que Inácio conhecia e que enfatizavam a experiência espiritual elevada em detrimento do material e cotidiano, Inácio defendia uma abordagem na qual o místico está intrinsecamente ligado ao histórico e ao concreto. Os “alumbrados” promoviam uma espiritualidade que poderia ser considerada “líquida” na definição contemporânea, onde o foco se deslocava para a experiência subjetiva e desconsiderava o aspecto material da vida cotidiana. Inácio, por outro lado, sustentou que a encarnação de Jesus e a realidade concreta eram fundamentos imprescindíveis para uma espiritualidade autêntica. Esta perspectiva fundamentou a base de seus Exercícios Espirituais, que integram a experiência mística com a realidade histórica e material de Cristo (O'MALLEY, 1993, p. 112).
Após a experiência em Jerusalém, Inácio dirigiu-se a Barcelona para iniciar uma nova fase de sua vida, voltada para o estudo e a expansão do movimento que viria a ser conhecido como a Companhia de Jesus. Nesta fase, Inácio também começou o recrutamento de companheiros, estabelecendo o núcleo inicial dos futuros Companheiros de Jesus (VASQUEZ, 2001, p. 103).
Os Exercícios Espirituais, desenvolvidos por Inácio, representam um caminho de silenciamento e introspecção, mas é essencial que o exercitante mantenha um papel ativo de escuta — tanto em relação a Deus e a si mesmo, quanto ao diretor espiritual dos exercícios. Inácio enfatiza que o objetivo final é que Deus possa se comunicar com a alma devotada, envolvendo-a em seu amor e louvor (LOYOLA, 2010, p.20). Essa dimensão da “contemplação para alcançar o amor” evidencia o interesse de Inácio pelo aspecto mistagógico da experiência espiritual, que transcende a mera teoria ou doutrina, onde o amor para o autor “consiste mais em obras do que palavras” (LOYOLA, 2010, p. 129).
Os Exercícios Espirituais, portanto, não são uma prática desvinculada da realidade cotidiana, mas estão profundamente enraizados nas experiências concretas do dia a dia. Eles começam com as “anotações” que introduzem a prática dos exercícios, fornecendo uma estrutura e compreensão gerais sobre seus objetivos, duração e organização, demonstrando a intenção de Inácio de tornar a espiritualidade acessível e prática no contexto da vida ordinária (MILLER, 2010, p.7).
Por este nome, exercícios espirituais, entende-se todo o modo de examinar a consciência, de meditar, de contemplar, de orar vocal e mentalmente, e de outras operações espirituais, conforme adiante se dirá. 3 Porque, assim como passear, caminhar e correr são exercícios corporais, da mesma maneira todo o modo de preparar e dispor a alma, para tirar de si todas as afeições desordenadas 4 e, depois de tiradas, buscar e achar a vontade divina na disposição da sua vida para a salvação da alma, se chamam exercícios espirituais. (LOYOLA, 2010, p. 11)
Neste estágio inicial de sua jornada espiritual, Inácio de Loyola está imerso em uma espiritualidade tradicional, caracterizada por práticas como o exame de consciência, oração mental e vocal, meditação e contemplação. Entretanto, a verdadeira inovação de Inácio reside na sua reinterpretação dessas práticas à luz de uma analogia com os exercícios físicos corporais. Assim como o corpo necessita de exercícios regulares para manter-se saudável, Inácio reconhece que a alma também requer uma disciplina contínua para se desenvolver adequadamente. Esta analogia é fundamental para compreender a originalidade de sua abordagem espiritual.
A noção de que a alma sadia é aquela que consegue organizar sua própria vida, liberando-se dos afetos desordenados e cultivando os afetos ordenados, é um conceito central na espiritualidade inaciana. Inácio defende que os afetos ordenados não devem ser vistos como um método rígido, mas sim como um procedimento flexível e personalizado que promove um crescimento espiritual contínuo. Em contraste com uma espiritualidade excessivamente prescritiva, Inácio enfatiza que a vida espiritual deve ser dinâmica e adaptativa, com o objetivo de alinhar-se mais profundamente com a pessoa de Cristo, que se fez homem para que possamos amá-lo e segui-lo mais de perto (LOYOLA, 2010, p.72).
Nesse contexto, o conceito de magis, ou “mais”, torna-se crucial. Inácio introduz o magis como um princípio que impulsiona o indivíduo a buscar a maior glória de Deus (Ad Maiorem Dei Gloriam) e, concomitantemente, a prestar o maior serviço ao próximo. Segundo ele, a glória de Deus está intimamente ligada ao respeito pela dignidade humana; assim, não há verdadeira glória de Deus se houver pessoas sendo desrespeitadas ou pisoteadas em sua dignidade (VASQUEZ, 2001, p.89).
Michel de Certeau, jesuíta francês com produção significativa para as humanidades do século XX, ao refletir sobre a prática cotidiana, oferece uma perspectiva relevante para essa discussão. De Certeau argumenta que as pessoas, ao realizarem suas atividades diárias, estão constantemente criando significados e produzindo cultura. Essas práticas cotidianas não são meramente rotineiras, mas formas de resistência. De acordo com Certeau, a criatividade, a resistência e a inovação presentes nas ações diárias dos indivíduos são elementos essenciais na construção da pessoa e na adaptação das normas culturais à sua própria realidade. Assim, o cuidado com o outro e a busca por uma vida espiritual genuína, na visão inaciana, podem ser entendidos como um processo dinâmico e criativo que envolve a adaptação contínua às realidades concretas da vida e às necessidades do próximo.
Portanto, a espiritualidade inaciana, longe de ser uma prática rígida e dogmática, é um caminho flexível e adaptativo que busca constantemente a integração do indivíduo com a pessoa de Cristo, ao mesmo tempo que promove um compromisso profundo com a dignidade e o bem-estar do outro. Este enfoque permite uma abordagem espiritual que é simultaneamente pessoal e social, dinâmica e reflexiva, mantendo-se fiel ao princípio do magis e ao ideal de serviço ao próximo.
Ao examinar a vida e obra de Michel de Certeau, é comum inicialmente categorizar um autor em uma área específica de atuação, como historiador, antropólogo ou cientista social. No entanto, a compreensão de Certeau exige uma abordagem mais complexa, que transcende essas definições tradicionais. De fato, sua trajetória e trabalho refletem uma profunda intersecção entre sua identidade religiosa e seu pensamento acadêmico.
Michel de Certeau, apesar de ser predominantemente conhecido como um teórico da cultura e historiador, incorpora em sua abordagem elementos característicos de sua vida religiosa. Sua prática de vida revela uma fé profunda, uma simplicidade própria da pobreza evangélica e uma preocupação genuína com os excluídos e marginalizados. Esses aspectos de sua vida ressoam com os princípios do fundador da Companhia de Jesus, Santo Inácio de Loyola, cuja espiritualidade e vocação a serviço dos pobres moldaram não apenas sua vida pessoal, mas também suas práticas e conceitos teológicos.
A originalidade de Certeau reside em sua maneira de abordar o conhecimento. Ele não se limita a uma área específica, mas aborda o saber como uma rede complexa e interconectada. O autor explora uma vasta gama de áreas do conhecimento — incluindo educação, história, teologia e mística — e aborda essas áreas com um olhar que reflete seu compromisso religioso. Sua visão é uma manifestação de como sua identidade como religioso e intelectual está profundamente entrelaçada. Assim como os primeiros jesuítas, como Inácio de Loyola e seus companheiros, que viviam de esmolas e dedicaram suas vidas ao serviço dos pobres, Certeau aplica uma perspectiva que vê o conhecimento e a espiritualidade como formas de serviço e transformação.
A abordagem de Certeau pode ser vista como uma extensão dos Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola, que organizam a vida do praticante em busca da vontade de Deus. O foco dos Exercícios Espirituais, especialmente nas primeiras semanas, é o ordenamento da vida para discernir a vontade divina e preparar o praticante para uma experiência mais profunda de Cristo na morte e ressurreição (LOYOLA, 2010, p. 11-129). A culminação desses exercícios é a “contemplação para alcançar o amor”, um amor que se expressa mais nas ações do que nas palavras, refletindo um compromisso concreto com o serviço aos outros em vez de meros discursos eloquentes (LOYOLA, 2010, p. 129).
O Papa Francisco, que já havia afirmado em entrevista que seus dois pensadores franceses contemporâneos preferidos são Henri de Lubac e Michel de Certeau - autores que mantiveram certo contato por muitos anos - em discurso de 2 de março de 2016, descreveu Michel de Certeau como o “maior teólogo para os dias de hoje” (FRANCISCO, 2016), destacando sua relevância e impacto na compreensão contemporânea da espiritualidade e da cultura. Certeau, ao abrir o entendimento para o homem pós-moderno, muitas vezes marginalizado e excluído, proporciona uma perspectiva que considera as realidades espirituais e sociais além das fronteiras tradicionais da espiritualidade.
A obra de Michel de Certeau, nesse sentido, não é apenas uma análise acadêmica, mas uma expressão de um compromisso profundo com a espiritualidade e a justiça social, refletindo a integração de suas crenças religiosas com seu trabalho intelectual. Sua abordagem, ao integrar conceitos de rede e interconexão, oferece uma visão rica e dinâmica da complexidade do conhecimento e da espiritualidade na sociedade contemporânea. Em nossa leitura, portanto, há uma preocupação de viver pobremente com Cristo. Nas palavras de Kolvenbach,
A preocupação de viver pobremente com Cristo pobre não poderá se reduzir jamais a um regulamento que nos satisfaça, mas que nos levará a deixar-nos prender e inspirar cada vez mais pelo Cristo pobre. Nossa pobreza não tem sentido fora de um profundo amor pessoal a Jesus Cristo. E este amor implica o amor ao Cristo pobre. Exige um esforço continuo que inclui a contemplação dos mistérios de Cristo, Deus dos pobres, Deus pobre. (KOLVENBACH, 2005, p. 15)
Portanto, influenciado pela espiritualidade dos Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola, Michel de Certeau percebe a interconexão entre o amor a Deus e o amor ao próximo, especialmente aos vulneráveis. Este entendimento ressoa com a noção teológica de Selbstmitteilung Gottes (autocomunicação de Deus), um conceito desenvolvido por Karl Rahner, influente teólogo moderno. Rahner utiliza esse termo para descrever a forma como Deus se comunica e se entrega à humanidade através de um processo contínuo e revelador de interação e graça (RAHNER, 1972, p.69).
Nesse sentido, em Certeau, o exercício do amor a Deus e ao próximo não é um processo isolado, mas um fluxo dinâmico e recíproco que reflete a prática espiritual. Ele vê a prática espiritual como uma via de comunicação onde o amor de Deus se manifesta na prática concreta do amor ao outro, particularmente aos marginalizados e excluídos. Essa visão está alinhada com a proposta de Rahner de que a autocomunicação divina é um processo no qual a experiência humana de Deus é uma participação na própria vida divina, e essa experiência se manifesta na ética e nas práticas de vida cotidiana (RAHNER, 1972, p.70).
De acordo com Rahner (1972), a Selbstmitteilung Gottes implica que a presença de Deus na vida dos indivíduos é revelada através das ações e escolhas humanas, especialmente no serviço aos outros. Em sua obra, Rahner (1972) explora como a revelação de Deus não é apenas um evento transcendente, mas algo que se realiza na interação cotidiana e na construção da comunidade. Esse conceito reforça a ideia de que o amor a Deus é inseparável do amor ao próximo, e que a verdadeira espiritualidade se expressa na prática concreta e no serviço aos marginalizados, uma ideia que também permeia a obra de Certeau (CERTEAU, 1984, p.40).
Certeau, assim, aplica essa compreensão ao seu próprio trabalho, vendo a espiritualidade não apenas como uma prática pessoal, mas como uma rede de relacionamentos e ações que se entrelaçam para formar um compromisso com a justiça social e a dignidade humana. Ele adota uma abordagem que considera a espiritualidade como uma prática vivida, onde a presença de Deus é experimentada e expressa através do serviço e da solidariedade com os vulneráveis. Essa perspectiva, fundamentada na interconexão entre o amor a Deus e ao próximo, oferece uma visão abrangente de como a espiritualidade pode se manifestar de maneira prática e socialmente relevante na vida contemporânea.
Michel de Certeau define os Exercícios Espirituais de Santo Inácio como uma “forma de proceder” que reflete profundamente sua abordagem do cotidiano. De acordo com Certeau, a prática espiritual é entendida como um modo específico de viver e interagir com o mundo, o que se alinha com a visão inaciana de contemplar o cotidiano através da lente da espiritualidade (CERTEAU, 1984, p. 293).
Na primeira semana dos Exercícios Espirituais, Santo Inácio convida os exercitantes a uma contemplação profunda do mundo à luz da Trindade. Este convite não se limita a uma abstração teórica, mas pede um olhar atento e integrado ao cotidiano, reconhecendo a interconexão de todas as coisas. A proposta é que os exercitantes vejam e compreendam sua vida diária como parte de uma realidade divina e interligada, refletindo a presença e a ação de Deus em suas atividades comuns e rotineiras.
Este conceito é fundamental para o pensamento de Certeau, que considera o cotidiano como um elemento central em sua análise das práticas diárias. Para Certeau, o cotidiano é mais do que uma série de ações rotineiras; é um domínio da prática ordinária que abrange as atividades diárias e as maneiras pelas quais as pessoas comuns se movem e vivem em seus ambientes. Em seu trabalho, ele explora como essas práticas diárias são formas de resistência e criatividade, moldando a cultura e a experiência de vida das pessoas (CERTEAU, 1984, p.293).
A abordagem inaciana, ao focar na integração do cotidiano com a contemplação espiritual, ressoa com a perspectiva de Certeau sobre a prática cotidiana como um espaço de criação e significado. Ambos, Inácio e Certeau, reconhecem que a espiritualidade e a prática cotidiana estão profundamente entrelaçadas, e que o cotidiano não é um simples pano de fundo para a experiência espiritual, mas uma parte ativa e dinâmica dela.
Portanto, o exame do cotidiano na primeira semana dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio e a análise de Certeau sobre as práticas cotidianas ilustram uma convergência de perspectivas que destacam a importância de compreender e viver a espiritualidade em termos reais. A prática, em ambas as abordagens, não é apenas um campo de ação, mas um meio de integrar a experiência espiritual com a vida. Em Michel de Certeau, o cotidiano é o espaço-tempo de embate entre as estratégias e as táticas - conceitos centrais para o autor. Michel de Certeau afirma, acerca desses dois conceitos:
Por um lado, existe o poder das estratégias, das quais o próprio Estado é o centro ou o lugar privilegiado, mas cujos contornos recobrem, sem que jamais coincidam, todos os lugares onde são exercidas as múltiplas formas de poder. E, por outro lado, existe o movimento das táticas, que não têm lugar próprio e utilizam os furos e os vazios deixados pelas estratégias. De fato, é essa divisão que nos parece necessária para nomear a rede vasta e inextricável de relações que ligam essas instâncias de poder. (CERTEAU, 1984, p. 38)
Michel de Certeau é particularmente interessado nas táticas utilizadas pelas pessoas comuns para navegar em suas vidas cotidianas dentro das estruturas sociais mais amplas. Em seu trabalho seminal A Invenção do Cotidiano (1984), Certeau faz uma distinção crucial entre “estratégias” e “táticas”, conceitos que são centrais para sua análise da prática cotidiana.
Estratégias são as ações planejadas e regulamentadas pelas instituições sociais dominantes. Elas representam o poder das instituições e sistemas estabelecidos que impõem regras e estruturas sobre como os recursos e espaços devem ser utilizados. As estratégias são formuladas por aqueles que possuem o poder, e seu objetivo é maximizar o controle e a eficiência dentro de uma estrutura social ou econômica específica (CERTEAU, 1984, p. 35).
Por outro lado, as táticas são as ações criativas e frequentemente improvisadas que indivíduos comuns empregam para alcançar seus objetivos dentro dessas estruturas. Diferente das estratégias, que são planejadas e sistemáticas, as táticas possuem elementos da espontaneidade e adaptatividade. Elas surgem como respostas flexíveis e contextuais às restrições impostas pelas estratégias dominantes. Segundo Certeau, as táticas permitem que as pessoas comuns exerçam sua agência e autonomia, mesmo em um ambiente que muitas vezes limita suas opções e recursos (CERTEAU, 1984, p. 37).
Assim, em Certeau o cotidiano é o espaço-tempo da manifestação deste encontro. Ele observa que, apesar das limitações impostas pelas estruturas sociais, os indivíduos conseguem “fazer astuciosamente” (faire avec astuce), utilizando improvisações e soluções criativas para lidar com as condições e restrições do dia a dia. Essa capacidade de inventar e adaptar é um aspecto fundamental da prática cotidiana, e reflete a agência dos indivíduos dentro de um sistema social que frequentemente tenta padronizar e controlar (CERTEAU, 1984, p.49).
Portanto, Certeau destaca a importância do cotidiano como um campo de resistência e criatividade. Argumenta que, embora as estruturas sociais dominantes imponham restrições, as pessoas comuns encontram maneiras de subverter e negociar essas restrições através de práticas inovadoras e adaptativas. O cotidiano, assim, se torna um local vital para a expressão da agência humana e da capacidade de “fazer o melhor com o que se tem”, desafiando as estratégias preestabelecidas e criando novas possibilidades dentro dos limites das estruturas sociais existentes. As estratégias são, portanto, ações que, graças ao postulado de um lugar de poder (a propriedade de um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes), capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem (CERTEAU, 1984, p. 96).
Nesse sentido, o cotidiano é a chave de leitura para o pensamento de Michel de Certeau. De igual modo, é pelo cotidiano que o exercitante começa o caminho para os Exercícios Espirituais, no que se entende por Princípio e Fundamento.
A princípio e fundamento consiste essencialmente em abrir um espaço destinado ao desejo, em deixar o sujeito falar do desejo em uma posição que não é lugar e não tem nome (...) o princípio escapa da fragmentação do tempo (...) o fundamento consiste em operar uma ruptura inicial na qual se baseia todo o desenvolvimento subsequente. (CERTEAU, 1984, p. 295).
Mas afinal o que é o princípio e fundamento? Podemos afirmar que é a porta de entrada da maneira de proceder e, portanto, numa análise do cotidiano dentro da vida espiritual. No princípio e fundamento está o sentido genuíno da vida, apresentando a resposta: a vida nos é dada para “louvar, reverenciar e servir a Deus nosso Senhor” e, assim, salvar-nos. Desse modo, o princípio fundamental é que o ser humano é criado e criativo, ou seja, participa da Vida criativa de Deus. Ao mesmo tempo que somos suas criaturas, somos também seus co-criadores; está em nossas mãos, fazer nosso próprio projeto de vida, de modo a criar e transformar as estruturas de relação com a natureza e com os outros seres humanos. Nas palavras de Inácio,
O humano é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor, e assim salvar a sua alma. E as outras coisas sobre a face da terra são criadas para o homem, a fim de ajudá-lo a alcançar o fim para que foi criado. Donde se segue que há de usar delas tanto quanto o ajudem a atingir o seu fim, e há de privar-se delas tanto quanto dele o afastem. (LOYOLA, 2010, p.28)
Para Michel de Certeau, as práticas cotidianas não são meramente uma reprodução mimética da realidade, mas manifestam uma maneira mais profunda e radical de entender o mundo. Certeau enfatiza a importância de abrir espaço para o desejo dentro dessas práticas, revelando como as ações diárias podem subverter e reinterpretar normas estabelecidas. Como ele observa, “trata-se de uma tática moral destinada a favorecer a indiferença em vista de uma revisão dos meios adotados para alcançar o fim” (CERTEAU, 1984, p. 296).
O pensamento grego também está profundamente ligado à concepção de mimesis, mas com perspectivas distintas. Platão, em República (1990) e Timeu (1995), argumenta que o mundo sensível é uma imitação imperfeita do mundo das ideias. Ele sugere que “o mundo sensível é apenas uma cópia imperfeita do Mundo das Ideias, que contém a verdadeira essência de todas as coisas” (PLATÃO, 1990, p. 52). Platão vê a mimesis como uma tentativa de reproduzir modelos transcendentais.
Em contraste, Aristóteles, na Poética (2000), propõe que a mimesis está diretamente relacionada à imitação da vida cotidiana. Ele afirma que “a arte é a imitação da ação humana, e a mimesis está ligada à reprodução das experiências da vida cotidiana” (ARISTÓTELES, 2000, p. 15). O autor, assim, vê o cotidiano como um modelo válido para a criação artística, oferecendo uma abordagem mais pragmática.
Certeau (1984) se aproxima da perspectiva aristotélica ao sugerir que as práticas cotidianas devem ser compreendidas não apenas como uma repetição de modelos imutáveis, mas como uma forma de tática moral que permite a adaptação e a resistência às normas estabelecidas. Assim, a visão de Certeau (1984) sobre as práticas cotidianas se alinha com a ideia de que o cotidiano, como modelo, é um campo de práticas táticas e criativas.
Esse conceito, indiferença, está presente nos Exercícios inacianos. Ora, uma vez encontrado o princípio fundamental, é necessário então:
tornar-nos indiferentes a respeito de todas as coisas criadas em tudo aquilo que depende da escolha do nosso livre-arbítrio, e não lhe é proibido. De tal maneira que, de nossa parte, não queiramos mais saúde que doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa que breve, e assim por diante em tudo o mais, desejando e escolhendo apenas o que mais nos conduzir ao fim para que fomos criados. (LOYOLA, 2010 p.28)
O conceito de indiferença, tal como explorado nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, revela uma faceta crucial da experiência espiritual cristã. O princípio de indiferença, como descrito por Certeau, sugere que “o cristão é desenraizado das preocupações relativas ao aprimoramento do fazer ou dizer” (CERTEAU, 1994, p. 296). Este princípio implica uma atitude de desapego em relação aos próprios desejos e preferências pessoais, permitindo uma abertura para a experiência direta de Deus.
Logo na primeira semana dos Exercícios Espirituais, os participantes são confrontados com o cotidiano e passam a perceber um processo de “decolagem” ou, conforme a terminologia de Certeau, um “desinvestimento” (CERTEAU, 1994, p. 296). A abordagem inaciana não prescreve um caminho fixo para a experiência espiritual; ao contrário, promove uma abertura contínua. Assim, Deus é entendido como um ser totalmente simples e aberto, caracterizando-se por uma indiferença total, dado que a sua essência transcende a complexidade das preocupações humanas.
No âmbito da teologia cristã, Deus é frequentemente descrito em termos de uma simplicidade absoluta e universalidade. A noção de Deus como sendo comum a todos os seres humanos sugere uma compreensão de Deus que transcende particularidades culturais e individuais. Este conceito de “comum” está intrinsecamente ligado à ideia de “comunhão”, que deriva do termo “comum”. Assim, a comunhão, em um contexto cristão, reflete uma unidade que se manifesta através da vida cotidiana, e os Exercícios Espirituais têm o intuito de conduzir os indivíduos ao reconhecimento deste comum (SULLIVAN, 2003, p.50).
A indiferença, dentro do contexto dos Exercícios Espirituais, pode ser vista como um desinteresse pelas preocupações mundanas em favor de um foco na experiência espiritual e na realização do valor humano. Em um ambiente cultural caracterizado pela diversidade de opções de sentido e pela valorização da autoexpressão, a espiritualidade inaciana propõe uma forma de amor que aspira a essa indiferença. Esta abordagem contrasta com as posturas narcisistas predominantes na sociedade contemporânea (WHELAN, 2016, p.103).
O paradoxo que surge é que, enquanto a espiritualidade inaciana promove uma autotranscendência centrada na realização pessoal, essa autotranscendência é, paradoxalmente, orientada para uma profunda conexão com uma experiência transcendente que pode entrar em colisão com a experiência histórica acumulada da vida humana. A espiritualidade inaciana, portanto, não apenas oferece uma alternativa às tradições religiosas estabelecidas, mas também convida a uma reavaliação da relação entre o indivíduo e o sagrado dentro dos limites da razão (BERGIN, 2000, p.22).
Neste contexto, a espiritualidade inaciana procura fundamentar a teoria espiritual na prática cotidiana, enfatizando a importância da experiência diária como um meio para alcançar um relacionamento mais profundo com Deus. No entanto, a questão que se coloca é como integrar esse conceito de indiferença em um mundo saturado pelo consumo e pela busca incessante de satisfação material. A prática da espiritualidade inaciana oferece uma resposta possível, ao promover uma perspectiva que valoriza o desapego e a simplicidade como caminhos para a realização espiritual verdadeira. O que, também, se aproxima da perspectiva de Michel de Certeau, quando este afirma:
A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção, qualificada de consumo: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante. (CERTEAU, 1994, p. 39)
Assim, vale destacar que a criação de um ambiente comunicativo e inclusivo pode ser alcançada através da transgressão das normas estabelecidas e da indiferença diante das realidades e estratégias dominantes. De acordo com Certeau, “por meio da transgressão, da indiferença diante das realidades, é possível se reorganizar para criar um ambiente que torne possível a comunicação, na qual ninguém se sinta esquecido ou marginalizado” (CERTEAU, 1994, p. 325). Essa perspectiva sugere que a prática cotidiana pode ser transformadora quando se adota uma postura de indiferença crítica em relação às estruturas preexistentes.
Certeau argumenta que um espaço organizado pelo outro emerge da própria experiência dos indivíduos. Ele afirma que “o texto faz o que diz. Ele se constitui abrindo-se. Ele é o produto do desejo do outro” (CERTEAU, 1994, p. 305). Essa ideia reflete a noção de que a prática e a experiência cotidiana não são apenas respostas passivas às circunstâncias, mas sim processos dinâmicos que se formam e se reformam em resposta aos desejos e ações dos outros.
No contexto dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, a indiferença é compreendida de maneira distinta. A indiferença, dentro deste quadro, não é uma ausência de desejo ou uma forma de apatia, mas sim uma escolha deliberada de não preferir nada em detrimento de outra coisa. A vontade do homem, ao buscar a indiferença, deve primeiro desejar ser indiferente. Nesse sentido, o “querer” dentro dos Exercícios Espirituais é entendido como um desejo de não ter preferências, uma abertura à vontade divina que transcende as opções pessoais e contingentes.
Santo Inácio oferece um método de discernimento que permite estabelecer uma ordem na vida espiritual em vez de uma desordem pré-existente. A magnetização da vontade, que é essencialmente a capacidade de direcionar à vontade de acordo com a vontade de Deus, é vista não como um ato isolado do indivíduo, mas como um movimento afetivo que demonstra a orientação divina. A indiferença, neste contexto, é o meio pelo qual o indivíduo pode alinhar sua vontade com os propósitos divinos, buscando um discernimento que organiza a vida espiritual e a prática cotidiana (CAMPBELL, 2005, p.55).
Dessa forma, os Exercícios Espirituais oferecem um caminho para a transformação pessoal e espiritual, permitindo que o indivíduo experimente uma nova ordem em sua vida, baseada em uma relação mais profunda com Deus. A indiferença, portanto, é uma prática espiritual que permite ao indivíduo transcender as preocupações mundanas e se engajar em uma comunhão mais autêntica com o divino.
Nas terceira e quarta semanas dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, a prática da contemplação do outro assume um papel central. Inácio convida os exercitantes a recordar a história e a vida de Cristo, inseridos no contexto cotidiano, e a buscar uma transformação através da contemplação profunda do amor divino. Este processo é concebido como uma forma de experiência transcendente, onde o contemplante se une ao contemplado, e experimenta uma força que ultrapassa a compreensão imediata.
Durante essas duas semanas, o exercitante é estimulado a refletir sobre o sofrimento e a dor do mundo, com um foco especial nos mais necessitados. A contemplação, conforme proposta por Inácio, é uma prática que visa cultivar um profundo pesar pelas condições do mundo, mas esse pesar é orientado não pelo desespero, mas pela esperança na presença de Deus. Esta perspectiva enfatiza que a união entre Deus e o homem não deve ser entendida como uma fusão completa, onde as identidades são absorvidas ou alteradas, mas como uma comunhão que preserva as distinções entre o divino e o humano. Tal compreensão contrasta com outras tradições místicas que propõem uma absorção do indivíduo pelo divino, como indicado por Joseph Moingt em sua análise teológica (MOINGT, 1991, p.65).
A contemplação inaciana se diferencia por evitar a absorção do indivíduo na divindade, mantendo a distinção entre Deus e o homem. Essa abordagem é relevante no contexto contemporâneo, onde diferentes formas de misticismo unitivo tendem a promover uma visão de união que se aproxima da absorção completa do humano pelo divino (GEFFRÉ, 1991, p. 39). Santo Inácio propõe uma contemplação que busca a transformação sem desconsiderar a natureza humana do indivíduo.
Michel de Certeau oferece uma perspectiva adicional sobre a contemplação e a prática cotidiana. Em sua análise, Certeau introduz o conceito de “antidisciplina”, que se refere à abordagem das práticas cotidianas como um campo de forças em movimento, revitalizado pela dimensão do desejo (CERTEAU, 1994, p. 63). A antidisciplina de Certeau destaca a importância da criatividade e da imaginação na vida cotidiana, o que ressoa com o conceito inaciano de contemplação. Para Certeau, a ética está intrinsecamente ligada à capacidade de criar, de mostrar compaixão e empatia, valores que também são fundamentais na prática dos Exercícios Espirituais (CERTEAU, 1994, p. 41).
A liberdade, para Certeau, está intimamente associada à imaginação como uma forma de resistência em um cotidiano marcado por repressão. Da mesma forma, os Exercícios Espirituais nas terceira e quarta semanas proporcionam uma “escola para a liberdade”, onde o amor e a paixão de Cristo servem como fundamento para a contemplação e transformação (CAMPBELL, 2005, p.87). A contemplação inaciana é um movimento contínuo, uma prática dinâmica que se contrapõe à ideia de estagnação, como ilustrado na citação das Constituições: “nossa vocação é ir de um lugar para outro e viver em qualquer parte do mundo de forma mais grande serviço a Deus e maior ajuda às almas” (LOYOLA, 1995, p.90).
A contemplação, portanto, não é uma prática estática, mas um movimento constante em direção ao outro e ao desconhecido. Esse processo é descrito por Joseph Moingt como a “fertilidade da existência”, uma busca incessante pelo outro que está em constante movimento e recuperação (MOINGT, 1991, p.217). A visão de Certeau e a proposta inaciana se encontram na valorização da experiência do outro e na dinâmica do cotidiano, onde o outro é sempre uma presença ativa e organizadora, que nunca deixa o espaço da prática solitário.
A análise das práticas espirituais de Inácio de Loyola e a percepção sobre a vida cotidiana na modernidade de Michel de Certeau revela um profundo compromisso com a integração entre misticismo e vida cotidiana, demonstrando que a espiritualidade não é uma esfera isolada, mas sim uma dimensão viva e dinâmica da experiência humana. Os Exercícios Espirituais de Inácio, ao combinar meditação profunda com um engajamento ativo no mundo material, estabelecem um caminho para a transformação pessoal e o serviço ao próximo, refletindo a máxima inaciana de buscar a maior glória de Deus. Por sua vez, Michel de Certeau, ao aplicar conceitos interconectados ao conhecimento e à espiritualidade, oferece uma visão que harmoniza práticas espirituais com um compromisso social e ético, alinhando-se com o princípio da autocomunicação divina proposto por Karl Rahner (1972). Ambos os pensadores contribuem para uma compreensão mais abrangente e prática da espiritualidade, evidenciando que o amor a Deus e ao próximo se manifestam na prática concreta e no serviço aos marginalizados. Esse enfoque integrador proporciona uma perspectiva enriquecedora sobre como a espiritualidade pode transformar não apenas o indivíduo, mas também a sociedade em que vivemos.
A análise comparativa entre os Exercícios Espirituais de Santo Inácio e a abordagem de Michel de Certeau revela uma interseção significativa entre a prática espiritual e a experiência cotidiana. Santo Inácio propõe uma integração da vida diária com a espiritualidade através da contemplação e da indiferença, encorajando uma visão do cotidiano como um campo para viver o divino. Em paralelo, Certeau destaca a importância das táticas e da criatividade no cotidiano, oferecendo uma perspectiva crítica sobre como as pessoas comuns navegam e subvertem as estruturas institucionais. Ambas as abordagens convergem na valorização do cotidiano como um espaço ativo e significativo, embora com ênfases distintas: a espiritualidade inaciana enfatiza a transformação e a conexão com o divino; enquanto Michel de Certeau foca na resistência e na criatividade. Esta convergência e divergência sublinham a riqueza da experiência cotidiana como um ponto de encontro entre a espiritualidade e a análise social, oferecendo uma compreensão mais profunda da inter-relação entre a prática espiritual e a vida diária.
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