Edin Sued Abumanssur
Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor do Departamento de Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Contato: edin@pucsp.br
Resumo: Neste artigo, discute-se a transição entre duas perspectivas relacionadas à maneira como se articulou o tema da cooperação entre instituições eclesiásticas ou entre religiões, a saber, a perspectiva ecumênica no século XX e o diálogo inter-religioso no século XXI. Na segunda metade do século XX, a causa ecumênica foi no Brasil e na América Latina, um movimento associado às lutas populares de libertação. Esteve comprometida com os processos revolucionários, a busca por autonomia política e econômica das nações e, finalmente com os movimentos pró democratização da região. Em um mundo polarizado ideologicamente entre o Oriente e o Ocidente, o ecumenismo se constituiu em uma bandeira identitária que via a unidade dos povos como necessária para os processos de libertação. O século XXI traz outra perspectiva: o foco já não é mais a unidade entre as igrejas, mas o diálogo entre as religiões. O diálogo emerge no contexto das conquistas democráticas e, com a queda do Muro de Berlin, na superação do mundo polarizado entre o Oriente e o Ocidente. O objetivo dessa análise, e sua razão de ser, é entender as alterações no cenário macropolítico e econômico e como isso impactou e tornou obsoleta a maneira como o ecumenismo era proposto há sessenta anos e como ele acabou suplantado pelas reflexões sobre o diálogo inter-religioso. A crítica dos documentos e da produção intelectual do movimento ecumênico daquele tempo e a confrontação com o que se pensa hoje sobre as relações entre as igrejas, permite-nos traçar o perfil transacional entre as duas perspectivas. Produções êmicas do campo religioso daquele tempo foram confrontadas com as do tempo atual. Sociólogos cuja perspectiva analítica adotam a linguagem e as categorias econômicas, como Peter Berger e Pierre Bourdieu permitem uma análise consequente sobre essa transição. Enquanto o ecumenismo se fundamentava em uma perspectiva política no contexto da Guerra Fria, o diálogo inter-religioso se vê como um imperativo ético para as igrejas em um contexto de pluralismo no qual cada religião se comporta como um agente econômico (BOURDIEU, P., 1982, p 57) em concorrência pelos fiéis.
Palavras-chave: Ciência da Religião, ecumenismo, diálogo inter-religioso, pluralismo religioso.
Abstract: In this article, the aim was to discuss the transition between two perspectives related to the way the theme of cooperation between ecclesiastical institutions or between religions has been articulated, namely, the ecumenical perspective in the 20th century and interreligious dialogue in the 21st century. In the second half of the 20th century, the ecumenical cause in Brazil and Latin America was a movement associated with popular struggles for liberation. It was committed to revolutionary processes, the pursuit of political and economic autonomy for nations, and, finally, the pro-democratization movements in the region. In a world ideologically polarized between East and West, ecumenism became an identity flag that viewed the unity of peoples as necessary for liberation processes. The 21st century brings another perspective: the focus is no longer on unity among churches but rather on dialogue between religions. This dialogue emerges in the context of democratic achievements and, with the fall of the Berlin Wall, in the overcoming of a polarized world divided between East and West. The aim of this analysis, and its raison d'être, is to understand the changes in the macro-political and economic landscape and how they have impacted and rendered obsolete the way ecumenism was proposed sixty years ago, leading to its replacement by reflections on interreligious dialogue. The critique of documents and the intellectual production of the ecumenical movement of that time, in contrast with current perspectives on relations between churches, allows us to outline the transitional profile between the two perspectives. Emic productions from the religious field of that time were compared with those of today. Sociologists whose analytical perspective adopts economic language and categories, such as Peter Berger and Pierre Bourdieu, enable a consequential analysis of this transition. While ecumenism was based on a political perspective in the context of the Cold War, interreligious dialogue is seen as an ethical imperative for churches in a pluralistic context, in which each religion behaves as an economic agent (BOURDIEU, P., 1982, p. 57) competing for followers.
Keywords: Religious Studies, ecumenism, interreligious dialogue, religious pluralism.
A palavra ecumenismo é pouco usada atualmente pelos agentes do campo religioso brasileiro. Bem menos do que já foi nos tempos em que, animadas pela Teologia da Libertação, algumas igrejas se envolveram com as lutas políticas dos anos 60 a 80 na América Latina. A democratização da região, a queda do Muro de Berlin, a emergência do pentecostalismo como fenômeno de massa, o acesso de muitas Igrejas à mídia social, a consolidação de um mercado de bens de salvação, as novas posturas das lideranças religiosas em relação à política institucional e a identificação de pautas religiosas com interesses da extrema-direita emergente, trazem outros desafios que eram desconhecidos pelas igrejas e movimentos sociais nas últimas décadas do século XX.
Hoje se fala em diálogo inter-religioso fundado em bases de mútua tolerância. Isso poderia parecer, à primeira vista, uma degradação daquela proposta mais aberta, mais ampla e mais consistente defendida, antes, pelos setores das Igrejas cristãs mais progressistas e comprometidos com os direitos humanos. No entanto, aquela proposta de ecumenismo estava marcada pelos processos políticos e econômicos da época. Os novos tempos exigem outros tipos de compromissos.
O diálogo inter-religioso não é apenas a proposta possível para a questão do ecumenismo contemporâneo, mas é, sim, em muitos sentidos, uma proposta mais ousada e mais corajosa por parte daqueles que defendem a unidade fundamental do gênero humano nos quesitos do direito à própria cultura e aos próprios deuses. No campo da teologia, a atual configuração da discussão ecumênica é bem mais arrojada do que aquela que foi proposta anteriormente. A questão teológica, presente no último tópico aqui trabalhado, não chega a ser um debate com os teólogos que refletiram sobre o diálogo inter-religioso, mas entendo que a teologia ocupa lugar central em qualquer análise sobre as motivações positivas ou negativas para o diálogo e a aproximação entre os agentes e as agências que atuam no campo religioso.
Este artigo é, pois, uma revisão das teses que desenvolvemos em outros ensaios sobre as mudanças sócio-políticas na América Latina e seus impactos sobre o campo religioso. Buscamos sistematizar as reflexões anteriores na tentativa de dar-lhes maior organicidade. No entanto, há aqui, para além da análise descompromissada, um caráter propositivo: apresentamos o diálogo inter-religioso como um mandato ético para a superação da lógica do mercado de religiões. Na história do ecumenismo ocidental a superação dessa lógica se daria pelo viés da política e das lutas de libertação numa perspectiva proto-decolonial. O diálogo inter-religioso, porém, só encontra a sua razão de ser como proposta de uma ética de superação das diferenças.
Sob a ideia de ecumenismo, encontram-se diferentes concepções dos acordos de convivência e das relações entre as Igrejas cristãs e, de maneira mais ampla, das diferentes formas de crença que disputam espaço no campo religioso (SANTA ANA, J, 1987, p. 7). As inúmeras divisões do cristianismo e a existência de incalculáveis Igrejas cristãs deram origem ao movimento de convergência entre elas e, consequentemente, fizeram surgir muitas teologias a respeito da unidade subjacente à diversidade das organizações eclesiásticas. As Igrejas são tantas e tão diversas na forma, na estrutura de poder, na autocompreensão, nas respectivas teologias que não deixa de ser admirável a busca de uma unidade que esteja para além dessas diferenças sem comprometer a sua diversidade.
Berger (BERGER, P, 1963), no início dos anos 60 do século XX, fez uma análise do Movimento Ecumênico nos Estados Unidos que ajuda entender o que acontece no Brasil hoje ao propor um paradigma econômico para a compreensão dos processos de aproximação entre os organismos eclesiásticos. É uma abordagem útil para a compreensão do fenômeno em um contexto em que o pluralismo religioso cria uma situação de mercado na qual a religião torna-se o produto em oferta. Essa análise de Berger vale pela introdução da lógica econômica nos estudos do ecumenismo e ela ainda é pertinente quando observamos que as Igrejas mais interessadas na aproximação e cooperação mútua, são aquelas menos afeitas à lógica do mercado, as menos competitivas, as menos dinâmicas. Essa abordagem trouxe uma perspectiva inovadora e crítica dos processos de unidade e cooperação entre as Igrejas cristãs.
Berger, ao analisar a geografia religiosa nos Estados Unidos, propôs um modelo de mercado para explicá-la. Ele partiu da constatação de que conviviam, no mundo das denominações americanas, dois fenômenos antagônicos em suas expressões particulares: o ecumenismo crescente (à época), de um lado, e a ênfase renovada na herança histórica de cada denominação, de outro. A coexistência aparentemente conflituosa entre ecumenismo e denominacionalismo foi interpretada de diferentes formas. Para alguns analistas, o fortalecimento das denominações protestantes foi visto como fator de impedimento da realização da unidade das Igrejas; mas para os que defendem a posição oficial das agências ecumênicas mundiais, a recuperação das tradições denominacionais não chega a ser um fenômeno antagônico ou antitético ao ecumenismo. De qualquer forma, nenhuma das duas posições oferece explicação para a emergência do paradoxo.
Berger, para explicar o paradoxo do crescimento concomitante do denominacionalismo e do ecumenismo, propõe um modelo macrossociológico que julga ser mais útil se as denominações envolvidas no paradoxo forem percebidas como unidades econômicas engajadas numa competição de livre mercado.
Os limites desse modelo seriam as Igrejas protestantes americanas, igrejas do mainstream social americano, de classe média, consideradas o coração do protestantismo dos Estados Unidos. Para Berger, essas Igrejas assistiram a dois processos: a) o crescimento da cooperação inter-denominacional e b) a crescente influência nos Estados Unidos do Movimento Ecumênico iniciado na Europa e imbuído de uma teologia mais racional. Berger afirma que essa teologia acabou servindo de legitimação post facto do processo de cooperação, cujas “raízes são mais mundanas”. As “raízes mundanas” seriam três: primeira, a especificidade de classe da população do protestantismo mainline, que cresce homogeneamente entre as classes médias brancas, e que possuem um nível altamente sofisticado de consumo. A disputa das Igrejas mainline por essa membresia acaba por colocar em suas mãos os mesmos problemas enfrentados por qualquer organização que atua no mercado, oferecendo algum bem de consumo.
A segunda “raiz mundana” seria o aumento demasiadamente grande dos custos de manutenção e operação das atividades das Igrejas: custos que vão desde o salário do ministro até o genuflexório. Torna-se obrigatório, nessas condições, um melhor e mais racional planejamento econômico. A necessidade de cooperação se torna, assim, uma exigência econômica para se evitar uma competição destrutiva que não convém a ninguém.
A terceira “raiz” seria a autonomia das burocracias eclesiásticas em relação às pressões das bases. Essa autonomia tem por pano de fundo a grande massa de capital investida pelas burocracias das denominações. Este investimento é feito na bolsa de valores e tem isenção de impostos em função de leis específicas. A consequência é que as burocracias denominacionais adquirem grande independência em relação às contribuições de uma relutante membresia e possibilita a elas operarem suas economias de maneira mais racional, e se engajarem numa mútua cooperação econômica. Berger ressalta ainda que, em contraste com anos anteriores, a iniciativa em direção ao ecumenismo tem partido das burocracias denominacionais e que, se antes os esforços das bases em direção à cooperação eram frutos da indigência eclesiástica, hoje o ecumenismo que vem de cima tem razões exatamente opostas.
Assim é que Berger vê fatores poderosos de ordem econômica pressionando as Igrejas em direção a uma maior racionalização em suas atividades e, consequentemente, no mercado religioso. A racionalização das atividades do campo religioso leva à “cartelização” eclesiástica. A “cartelização” racionaliza a competição pela redução do número de unidades competidoras através de um amalgamento dessas unidades e da divisão do mercado entre as unidades restantes. O ecumenismo seria, então, essa política de racionalização da competição entre as denominações nos Estados Unidos.
O modelo de mercado traz para a reflexão uma análise de cunho sociológico que dá mais valor à dinâmica dos agentes e das agências religiosas envolvidas em processos de aproximação ou enfretamento como elementos determinantes para o sucesso de uma religião. A proposta de Berger é ousada, mas perfeitamente aplicável à atual conjuntura do fenômeno religioso. Os aspectos associados às motivações peculiares ao mundo da fé passam ao largo de suas análises e há mesmo um desconhecimento proposital da própria história do ecumenismo. Perguntamos até que ponto a ideia de ecumenismo pode ser utilizada para legitimar a racionalização da competição religiosa num modelo de mercado? O modelo em si é consistente, mas a história e o discurso desenvolvidos pelo ecumenismo e pelo Movimento Ecumênico possuem uma dimensão que lhe escapa. Essa dimensão, arriscaríamos afirmar, é a própria institucionalização do ecumenismo, isto é, o Movimento Ecumênico tem suas próprias agências, organismos e instituições. O Movimento Ecumênico tem vida própria e acontece não entre as Igrejas, mas paralelo a elas. O discurso ecumênico se torna mais um discurso disputando espaço no mercado competitivo das religiões.
Na América Latina, o ecumenismo teve uma história peculiar. As organizações que levantaram a bandeira da unidade das Igrejas não as representavam. O compromisso maior dessas organizações era com o processo revolucionário popular nos anos 50, 60 e 70 e, mais para o final do século XX, com as liberdades democráticas. Na história recente do ecumenismo na América Latina as questões teológicas e religiosas se confundem com as lutas políticas contra as ditaduras militares e em favor de uma revolução social de cunho popular. Foi a estrutura organizacional, inovadora para a época, que permitiu a radicalização do discurso ecumênico. Organizações ou associações sem fins lucrativos, com personalidade jurídica própria, permitiram a sobrevivência dos indivíduos, das ideias e das lutas políticas. Essas associações possibilitaram o trabalho livre e autônomo em relação às igrejas e, principalmente, forneceram o mínimo de estrutura jurídica para que pudessem receber doações nacionais e estrangeiras. Permitiram a contratação de funcionários e a manutenção de escritórios.
O Movimento Ecumênico tornou-se dependente dessas organizações e associações à medida que perdeu o apoio das Igrejas. Fora das instituições eclesiásticas, não seria possível a subsistência do Movimento sem esse modelo de trabalho que se mostrou adequado e eficiente para os propósitos desejados.
Na América Latina, muitos anos ainda se passarão até que as marcas do ecumenismo vivido na região a partir da década de 1950 sejam superadas em abrangência, compromisso com a realidade e profundidade teológica.
A um observador desatento poderia parecer que vivemos dias de refluxo do ecumenismo ou que as Igrejas não conseguem ou não querem implementar um processo de maior diálogo e aproximação entre elas. Esse observador diria ainda que em tempos de fundamentalismos vários, a lei da sobrevivência institucional leva a um comportamento de retraimento e autodefesa. Em parte, isso é verdade, mas é preciso perceber também que, para muitas Igrejas, a cooperação é o melhor, senão o único, caminho de sobrevivência em uma esfera da vida social altamente competitiva na qual os organismos mais fracos têm pouca chance de se manterem vivos.
O alto grau de competição no campo religioso é, nos dias de hoje, a característica mais distintiva em relação à situação vivida pelo Movimento Ecumênico nos últimos quarenta anos do século XX na América Latina. Hoje, mais do que antes, a bandeira do ecumenismo serve de marca distintiva para um grupo de Igrejas que busca o seu diferencial na oferta de bens religiosos. O ecumenismo serve para diferenciar as Igrejas que oferecem bens religiosos de natureza erudita em oposição àquelas que oferecem produtos religiosos de consumo popular. Os bens religiosos eruditos são, entre outros exemplos, a reflexão teológica sofisticada, o código de ética consequente, a música e os hinos de tradição e estrutura melódica que remetem aos clássicos. No polo oposto estão os bens religiosos de consumo popular como a oferta de solução para problemas imediatos, a relação mágica com os entes sagrados, a música efêmera e de consumo rápido, a ênfase nas emoções (MENDONÇA, A. G., 1977, p. 133). É neste sentido que o ecumenismo deixa de ser uma proposta de inclusão e busca de unidade e passa a funcionar como um elemento operativo na construção de identidade e na distinção de um grupo de Igrejas em meio às disputas por melhor posicionamento no campo religioso.
O ecumenismo é uma das chaves de análise do campo religioso na América Latina. Ele possibilita compreender alguns fluxos de poder e prestígio entre as diferentes organizações religiosas e o jogo de alianças que determina as posições relativas de cada uma delas não apenas nas relações e dinâmicas internas do campo, mas também nos contatos e nas negociações mais amplas dessas organizações com o poder secular.
Numa perspectiva histórica podemos dizer que o ecumenismo foi o resultado de um longo processo de negociação entre as Igrejas a partir da quebra de monopólio na oferta de bens religiosos. O tipo de denominacionalismo, implantado na América Latina por missionários americanos a partir da segunda metade do século XIX, mostrou-se mais eficaz na conquista de novos membros forçando uma nova situação até então desconhecida pela agência monopolista, a saber, a Igreja Católica Romana. Por muitas décadas, o antagonismo no interior do campo religioso se deu de um lado pelo estranhamento da situação de pluralismo por parte de quem detinha o monopólio da oferta dos bens de salvação e, de outro lado, pela sede de conquista de fatias cada vez mais amplas desse mercado de bens religiosos demonstrada pelas Igrejas protestantes. O pluralismo religioso é, necessariamente, uma situação na qual as agências e agentes que atuam nesse campo se veem na necessidade de disputar, conquistar, manter e garantir a lealdade daqueles que aderem às suas propostas. É uma situação de mercado (BERGER, P., 1985, p. 149).
A recusa do ideário subjacente ao ecumenismo sempre se deu por parte daquelas Igrejas que se sentiam mais bem qualificadas para disputar amplas fatias do mercado de bens religiosos. O ímpeto proselitista esteve na origem da recusa das causas ecumênicas, pois no cálculo das vantagens relativas, para as Igrejas mais agressivas, a moderação do discurso em relação às demais organizações eclesiásticas significava uma menor taxa de expansão. Em uma situação de alta competitividade, onde a sobrevivência de cada grupo depende da capacidade de demonstração de seu diferencial na oferta dos bens religiosos, o ecumenismo só irá interessar àquelas organizações eclesiásticas menos qualificadas para a disputa agressiva do mercado.
O fôlego que manteve taxas de crescimento expressivas em algumas Igrejas protestantes tem diminuído, salvo as raras exceções que encontraram no discurso e no comportamento carismáticos um caminho alternativo de evangelização. No caso do Brasil, os evangélicos, incluindo protestantes e pentecostais, representavam apenas 2,6% da população na década de 1940. No final do século XX eles perfaziam 15,4% da população. No entanto, segundo o censo de 2000, os pentecostais saltaram na última década do século XX de 5,6% para 10,4% da população, ao passo que os protestantes que eram 3% da população são agora minguados 4,1%. O Censo de 2010 aponta para a mesma tendência: os evangélicos somam 22,16% da população, mas os protestantes continuam sendo 4,03% da população. Em outras palavras, os protestantes perderam o apelo inicial e o ímpeto na busca de novos fiéis. O baixo desempenho na conquista e ocupação de novos territórios, geográficos e culturais, dos protestantes e dos católicos, faz um ruidoso contraste com os pentecostais e, de maneira mais específica, com as novas Igrejas cristãs que têm demonstrado vigor e capacidade adaptativa aos novos tempos.
Se observarmos quais são as Igrejas que se reúnem em organismos ecumênicos na América Latina poderemos notar que são justamente aquelas que mantêm um crescimento quase que apenas vegetativo. Neste caso a união das forças, dos recursos, o intercâmbio entre o clero e a busca de consenso em alguns temas teológicos têm sido a saída para essas Igrejas. Não estamos dizendo que essa atitude de respeito mútuo e aproximação seja algo meramente utilitarista e, consequentemente, de valor moral duvidoso. Ao contrário, essa atitude, ditada por razões e necessidade de sobrevivência, pode vir a ser justamente a razão da manutenção dessas Igrejas no mercado das religiões.
Por isso é que afirmamos que o ecumenismo pode ser visto como uma bandeira identitária que algumas Igrejas levantam em um contexto no qual os bens religiosos são reduzidos a um único valor geral de troca capaz de nivelar qualquer forma de adesão e lealdade religiosa transformando-as em algo indistinto e amorfo. Ser reconhecida como uma Igreja ecumênica é uma forma de proteção ao mesmo tempo em que anuncia o tipo de filiação teológica dessa Igreja. O ecumenismo é também uma mercadoria em oferta no mercado de bens simbólicos.
Para as Igrejas de alta competitividade o ecumenismo não interessa, pois elas teriam mais a perder com o reconhecimento e a colaboração mútua do que permanecendo na atitude combativa que lhes tem rendido um número crescente de adesões. À medida que o movimento carismático toma conta das Igrejas protestantes tradicionais e a típica racionalidade teológica, que foi uma das marcas desse protestantismo no Brasil, vai sendo substituída pelo comportamento coletivo centrado nas emoções, o ecumenismo passa a ser visto por esse movimento, como uma proposta de alianças espúrias e indesejáveis e um sinal de arrefecimento no ímpeto evangelizador. Acrescente-se a isso o fato de que o ecumenismo, enquanto ideia e ideal, esteve associado às lutas políticas de libertação e andou de braços dados com movimentos revolucionários na América Latina. Não é de se estranhar, portanto, que algumas Igrejas protestantes, sob a direção de lideranças influenciadas pelo movimento carismático, optem por abandonar os organismos ecumênicos nacionais e regionais.
A principal característica do campo religioso latino-americano atualmente é a grande segmentação do público. Isso leva ao surgimento de Igrejas especializadas no atendimento de necessidades específicas dos fiéis. São Igrejas com discurso e prática próprios para satisfazer as necessidades de grupos sociais estigmatizados ou que não encontram espaço nas demais Igrejas para existirem enquanto tais. Punks, Hip Hop, atletas, artistas, gays, policiais: cada grupo quer uma Igreja específica para si e sempre acabam encontrando alguém disposto a formatar o produto religioso para atendê-los. Essas novas Igrejas, que não se enquadram em nenhuma das classificações e tipologias existentes, não estão preocupadas ou interessadas no tipo de discussão ou de teologia que sempre acompanhou a história do ecumenismo. Elas nasceram já em um ambiente de pluralidade e competição e não vêm isso como um problema a ser superado. O ecumenismo, suas lutas, propostas e razões de ser, não alcançam o tipo de preocupação e de demanda que animam essas novas Igrejas.
A pergunta que nos resta responder é: há futuro para o ecumenismo na América Latina? De um ponto de vista teológico podemos afirmar que o desafio da causa ecumênica hoje é maior do que o até aqui experimentado pelas Igrejas e organismos comprometidos com essa questão. É difícil saber se, numa atitude propositiva, as Igrejas e organismos ecumênicos terão capacidade e desejo de responder ao desafio representado pela explosão de novas Igrejas e pelo alto grau de competitividade do campo religioso.
Mas, desde uma perspectiva sociológica, o ecumenismo pode ser também um canal e uma fonte de legitimação daquelas novas Igrejas que procuram reconhecimento e legitimidade no campo religioso. Eventualmente, num futuro incerto, talvez essas novas Igrejas percebam que seria interessante para elas, poderem se assentar em uma assembleia ao lado de Igrejas que gozam de maior prestígio junto à mídia e outras esferas de poder.
3. Diálogo inter-religioso: desafio teológico moderno
Até meados do século XX acreditava-se que a religião, ou as religiões, estava com seus dias contados. Esse era um sentimento que pairava sobre os ambientes mais intelectualizados e vinha desde o final do século XIX por conta do clima otimista produzido pelas promessas da ciência. A nova mentalidade científica prescindia do pensamento religioso e, aparentemente, isso era bom e desejável.
No entanto, a despeito de todos os prognósticos, a religião não desapareceu. Ao contrário, ela tornou-se mais presente, mais dinâmica, mais atraente do que aparentava há sessenta ou setenta anos. Mas, por outro lado, no ocidente ela deixou de ser a expressão cultural maior da sociedade. Ela já não expressa mais a identidade das nações e perdeu sua natureza simbiótica com elas. Ela está presente sim, nas culturas modernas, mas já não possui o caráter estruturante de antes. Se por um lado assistimos a uma explosão de criatividade religiosa e a um número crescente de formas e conteúdos religiosos, é forçoso reconhecer, por outro lado, que a religião no ocidente não desempenha mais o mesmo papel que tinha em séculos anteriores.
Hoje vivemos em uma situação de pluralismo religioso e não podemos dizer que uma religião específica é a alma e a razão de nossa sociedade. Mais ainda: não podemos dizer, que a religião é o fator fundamental da coalescência social. Hoje temos de falar não mais em religião, no singular, mas em religiões, no plural. Aquele gênero de experiência e pensamento a que, antes, atribuíamos o nome de religião, hoje se apresenta de maneira multiforme e variada.
Uma das marcas mais relevantes da modernidade é a organização da vida das pessoas em esferas relativamente autônomas. Se em sociedades arcaicas a vida cotidiana era integrada, sem distinção entre o público e o privado e não havia distinções claras e rígidas entre o que era a política, a economia, o lazer, a religião, a arte ou a educação, o mesmo não acontece em sociedades complexas e modernas como a nossa.
A sociedade moderna, o seu imaginário, a sua forma de conceber a organização do cotidiano se baseia na ideia de que a vida é composta de campos ou esferas distintas e elas são relativamente autônomas. Assim, uma coisa são os momentos de lazer, que se opõem e não se confundem com as rotinas do trabalho. O espaço familiar e privado é distinto do espaço social e público. Economia, educação, religião, arte, esporte são todas elas áreas específicas de nossas vidas nas quais estabelecemos relações sociais e de poder segundo as regras de cada uma.
A religião, nessas condições, também se organiza como um campo autônomo de relações de poder e onde bens e serviços religiosos são trocados (BOURDIEU, P., 1982, p. 38). O campo religioso se apresenta institucionalizado e centrado em um corpo burocrático de funcionários, detentor de todos os meios de gestão dos bens simbólicos religiosos. Atualmente é impossível pensarmos na configuração das religiões e na forma como elas interagem entre si sem fazermos referência à noção de campo religioso.
Steil, em um texto intitulado “O diálogo inter-religioso numa perspectiva antropológica” também aponta para o caráter distinto e inovador do campo religioso na modernidade:
A partir dessa transformação estrutural da sociedade, se torna possível compreender a emergência da multiplicidade de religiões nas sociedades modernas, que tendo rompido com o princípio religioso fundante do social, engendra a fragmentação de religiões não-orgânicas, que abrangem as mais variadas formas de crenças. [...]. Essa fragmentação é fruto da própria dinâmica da modernidade que redefiniu a função da religião dentro do contexto social (STEIL, 1993, p. 24).
A formação de um campo religioso está associada à “desapropriação objetiva daqueles que dele são excluídos e se transformam por essa razão em leigos destituídos do capital religioso (enquanto trabalho simbólico acumulado) e reconhecendo a legitimidade dessa desapropriação pelo simples fato de que a desconhecem como tal” (BOURDIEU, P., 1982, p. 39).
Temos, portanto, a constituição de duas classes nesse campo: os especialistas detentores do capital religioso e os leigos, destituídos desse capital. É importante ainda lembrar que, segundo Bourdieu, esse corpo de especialistas é fruto do processo de surgimento e crescimentos das cidades. É o clero citadino que promove a concentração do capital religioso em prejuízo dos leigos.
Outra consequência da constituição de um campo específico para a religião, com relativa autonomia, foi a concentração do trabalho religioso em uma esfera própria, liberando as demais áreas da vida para constituírem-se em campos próprios, com suas lógicas e circulação de capital simbólico específicos.
O campo religioso, portanto, se estrutura sobre o trabalho religioso dos especialistas. Estes, por sua vez, atuam no sentido da concentração do capital simbólico, de natureza religiosa, em suas próprias organizações, agências e agentes. Institui-se, dessa forma, uma luta entre sacerdotes, profetas, magos, pais de santo, pastores, monges, rabinos, mulahs, médiuns etc., para ver quem amealha a maior parcela do capital religioso em circulação no campo.
É nesse contexto, pois, que podemos afirmar que o campo religioso se organiza como um mercado de bens de salvação onde se dão as trocas e disputas entre as diversas instâncias em competição pela legitimidade religiosa. O mercado só existe em um contexto de pluralismo e o pluralismo religioso instituí o mercado de religiões. Pluralismo religioso e mercado de religiões são, portanto, realidades contíguas e consequentes.
A modernidade apresenta uma aparente contradição quando o assunto é a religião. De um lado a desimportância crescente, no cenário cultural, das agências ministradoras e administradoras dos bens religiosos. Isso, segundo alguns autores, foi chamado de secularização, isto é, a perda de relevância social das religiões, mas, por outro lado, a crescente multiplicidade de religiões e dinamismo do mercado de bens simbólicos. Como é possível coadunar fenômenos aparentemente contraditórios? É possível que a secularização tenha trazido em seu bojo sua própria negação?
Na verdade, são poucos os que ainda hoje entendem o fenômeno da secularização como sendo o retraimento da religião na esfera pública. Ela é mais bem compreendida se a entendermos como sendo justamente a quebra do monopólio dos serviços e bens religiosos e a introdução da realidade de mercado nessa esfera da vida cotidiana. A secularização seria, portanto, a responsável pela maior pujança e vigor do campo religioso.
Ao falarmos em pluralismo religioso e em diálogo inter-religioso é preciso levar em conta a realidade de mercado e a natural competição das agências e agentes religiosos pela posse do capital que circula nesse campo. É nesse contexto, pois, que situamos a problemática do diálogo inter-religioso.
A teologia se sente desafiada nesta conjuntura a reconhecer o direito e a legitimidade de as diferentes culturas sustentarem a sua própria compreensão religiosa. O desafio para os teólogos, está em olhar para elas não como concorrentes em disputa num mercado de religiões, mas como expressões singulares da complexa e rica revelação que Deus faz de si aos homens. Segundo Küng:
Nós precisamos de Igrejas que não ‘re-ajam’ de forma hierárquica e burocrática aos novos desafios espirituais e religiosos, mas que tanto interna quanto externamente ajam próximas às bases e conscientes dos problemas: não de forma centralista, mas organizadas de forma pluralista, não dogmáticas, mas dispostas ao diálogo; não de forma autossuficiente e circunscritas a si próprias, mas, apesar de todas as dúvidas da fé, tratando as perguntas do futuro de forma autocrítica e inovadora( KÜNG, H., 1993, p. 183).
O maior desafio teológico está em reconhecer que o diálogo inter-religioso se impõe não como uma forma de se buscar a verdade, mas como uma exigência ética de compromisso com sujeitos históricos plenos de direitos.
O Diretório Ecumênico, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), faz uma distinção entre ecumenismo e diálogo inter-religioso. Para o Diretório “o ecumenismo, no sentido do termo, trata exclusivamente da promoção da unidade entre os ‘cristãos’. Por isso, o relacionamento com ‘seitas’ ou ‘novos movimentos religiosos’ não é uma tarefa ecumênica e sim de ‘diálogo inter-religioso’”. (BIZON, J.; DARIVA, N.; DRUBI, R. (Org.), 2005, p. 201)
Fazer uma leitura teológica da presente situação, tendo como perspectiva o diálogo inter-religioso, significa refletir sobre o significado e o valor das tradições religiosas mundiais à luz da revelação cristã. Segundo Dupuis “a teologia das religiões, interpreta os dados na perspectiva de uma adesão pessoal a uma fé religiosa e reivindica o direito de expressar, dentro de tal perspectiva, juízos de valor” (DUPUIS, J. 1999, p.17). Ainda que a tarefa teológica seja confessional, isto é, realizada dentro dos parâmetros de uma dada religião, ela não pode e nem deve ser, no caso da teologia cristã, míope em relação à experiência religiosa da humanidade como um todo. Faz parte das disposições de fé cristã buscar as verdades que se têm em comum presente nas demais religiões. Essa é a tarefa e o desafio maior que se impõem aos teólogos cristãos.
É próprio do diálogo inter-religioso, nas suas várias formas, desvendar tudo aquilo que os cristãos e os não-cristãos podem dizer e fazer em comum, apesar de suas irredutíveis diferenças. E faz parte da boa vontade ecumênica fornecer o impulso para tal empreendimento (DUPUIS, J, 1999, p.20).
Para algumas das igrejas cristãs, as protestantes e a Católica ao menos, o maior problema no diálogo com as demais religiões está em torno de duas questões: a revelação e a salvação. Creem, essas igrejas, que Deus se revela de muitas maneiras, mas de forma especial em sua Palavra expressa na Bíblia. Sendo a Bíblia a Palavra de Deus, como acolher outros textos ou, ainda, outras possibilidades da revelação divina? A salvação também é um tema controverso no contexto do diálogo inter-religioso não apenas no seu significado e sentido, mas também e, talvez, principalmente nos caminhos para se alcançá-la.
Sobre a revelação há algumas definições que devem ser mencionadas (VIGIL, J. M., 2006, p. 99). Uma das interpretações mais presentes, ainda hoje, diz respeito e se enraíza na questão da autoria da revelação: a Bíblia é a expressão única e exclusiva daquilo que Deus quis que os homens conhecessem a respeito dele. A Bíblia seria a própria Palavra de Deus, ditada por ele. Nesta definição ela encerra toda a possibilidade de revelação e nada além do que está escrito nela pode ser dito a respeito de Deus. Tudo que é possível conhecer, tudo que é necessário se conhecer sobre Deus e sua salvação, está presente na Bíblia. Nesse caso não sobra espaço para nenhuma outra palavra. Mesmo o próprio Deus não estaria autorizado a acrescentar nada mais além daquilo que está ali escrito. Seria abrir espaço para novas revelações e desautorizar todo o trabalho de dois mil anos da Igreja.
Mas, também segundo Vigil, há outras leituras mais atuais sobre o sentido e significado da revelação. São leituras mais condizentes com a necessidade de abertura para o diálogo e mais apropriadas aos tempos de pluralismo religioso.
A principal característica dessa nova posição teológica, e da qual as demais derivam, afirma que a revelação de Deus se dá em um processo histórico e humano. Desta forma, a palavra que Deus tem a oferecer aos homens não é atemporal, mas situada em um dado contexto e relativo a esse contexto. A palavra de Deus, neste caso, deixa de ser verbal e se transfere para a experiência dos povos com o divino. Experimentar Deus no processo histórico e na cultura e a sistematização dessa experiência nos mitos e relatos culturais passam a ser vistos como a maneira de Deus se revelar a cada povo.
Em consequência, todos os povos são possuidores ou têm acesso à revelação de Deus. Assim, qualquer religião tem o direito de reivindicar uma descendência divina. A revelação se torna um processo. Ela acaba sendo um processo de conscientização da ação de Deus no contexto cultural e circunstancial de cada povo. Ao reconhecer o gesto divino em um determinado momento da história e da cultura é dar a esse momento a dimensão de revelação.
A segunda questão que vem a dificultar o diálogo inter-religioso é a ideia de salvação. Sem entrar no significado dessa expressão, mas apenas apresentando a raiz do problema, é possível dizer que os caminhos da salvação sempre foram reivindicados com exclusividade pela Igreja. Para os cristãos, a ideia de que, se houver salvação e necessidade dela, certamente seria a Igreja a única a poder oferecer um caminho seguro para tal.
Na interpretação mais exclusivista dessa afirmação a Igreja seria a única detentora da graça de Deus e de sua salvação. Reconhecer que essa mesma graça também se faz presente em outras manifestações religiosas foi um passo imenso em direção ao diálogo. Tal reconhecimento, formalizado no Vaticano II, no Decreto Ad Gentes (AG), teve de deslocar o papel da Igreja de seu lugar de exclusividade para outro onde ela é vista como o “sacramento da salvação” (AG, n. 1).
Dos Decretos, Constituições e Declarações do Concílio Vaticano II, a Nostra Aetate (NA) é a que mais explicitamente tratou do diálogo com outras religiões. Ela afirma que:
A Igreja Católica nada rejeita do que há de verdadeiro e santo nestas religiões. Considera ela com sincera atenção aqueles modos de agir e viver, aqueles preceitos e doutrinas. [...] Exorta por isso seus filhos a que, com prudência e amor, através do diálogo e da colaboração com os seguidores de outras religiões, testemunhando sempre a fé e vida cristãs, reconheçam, mantenham e desenvolvam os bens espirituais e morais, como também os valores sócio-culturais que entre eles se encontram (NA, n 2).
Segundo Depuis, (DUPUIS, 1999, p. 258) há dois grandes paradigmas que atravessam os debates atuais sobre o diálogo inter-religioso: o cristocêntrico, também chamado de inclusivista desde que não se busque uma unicidade para a pessoa e obra de Jesus Cristo, mas lhe seja atribuído um caráter universal. Esse paradigma, apesar de sua intencionalidade abrangente, apresenta o problema de carregar o peso da história e da tradição que as Igrejas cristãs representam. Por mais que se busque romper com a identidade entre Cristo e a Igreja, a própria linguagem acaba por trair as intenções de universalidade da fé cristã.
O segundo paradigma, teocêntrico, procurou fugir da armadilha linguística e focou seu olhar sobre Deus. “Tal mudança de paradigma implica necessariamente o abandono de qualquer reivindicação de um significado único não só para o Cristianismo, mas também para o próprio Jesus Cristo”. Mas a mudança de paradigma, do cristocêntrico para o teocêntrico, significou, ainda segundo esse autor:
[...] reconhecer de maneira irrevogável o igual significado e valor das diferentes religiões e renunciar a qualquer pretensão não só de exclusividade, mas também de normatividade para o Cristianismo ou para Jesus Cristo. Se este último tem alguma universalidade, esta só pode ser a do fascínio que sua mensagem poderia exercer quanto às aspirações da totalidade dos homens e mulheres. (DUPUIS, J, 1999, p. 263)
Esse reconhecimento “irrevogável” só é possível com a redução da figura de Jesus Cristo a uma dimensão ética retirando dele todo aspecto ontológico e aquilo que a Igreja sempre reconheceu como sua natureza divina. O paradigma teocêntrico é, pois, problemático para boa parte das tradições cristãs que se recusam a subtrair o Cristo da mediação universal na ordem da salvação.
Claude Geffré, teólogo dominicano, trabalhou no sentido de encontrar um caminho de superação dos limites teológicos para o diálogo, a aproximação e o reconhecimento entre as diferentes crenças. Para ele o pluralismo religioso foi o próprio objeto da reflexão. Nesta direção, segundo Geffré, a teologia mesma foi vista como interpretação da fé e o pluralismo religioso como resultado de uma ação deliberada da vontade divina em sua ação de autorrevelação.
O ecumenismo deve levar em conta as ações que visam tornar a oikoumene em uma terra para todos e, neste contexto, as religiões e o diálogo entre elas se tornam condições necessárias para transformar a “terra habitada” em uma casa comum. O avanço recente nas reflexões teológicas em relação ao que postulava o Vaticano II está na compreensão de que a revelação de Deus aos homens passa pelo trabalho de todos na construção dessa oikoumene. Deus se revela, de acordo com a teologia que fundamenta esse diálogo, justamente na situação de pluralismo religioso, mas não em suas expressões competitivas e sim no reconhecimento mútuo do valor intrínseco de cada crença, no respeito e no diálogo entre todos os credos. “Trata-se de pensar o pluralismo religioso como um querer misterioso de Deus, ou, então, como desígnio de Deus para a humanidade” (PANASIEWICZ, R., 2007, p. 115).
A situação contemporânea das religiões, diferentemente das situações anteriores ao século 18, impõe às organizações e agências religiosas a convivência em situação de igualdade e legitimidade. Pluralismo religioso é uma novidade recentíssima na história ocidental. Embora já faça quinhentos anos que o mundo ocidental vem convivendo com diversas expressões de fé, foi somente a partir do final do século 18, com o surgimento das “Igrejas livres” que teve início essa atual situação caracterizada como de pluralismo religioso. Sim, porque não basta que haja diferentes Igrejas em um mesmo território para se caracterizar o pluralismo, mas é preciso que elas estejam, de forma legal e legítima, em situação de igualdade. Essa situação só é possível quando o Estado deixa de ser o avalista de uma Igreja e abre espaço para que outras formas e organizações religiosas surjam e se estabeleçam no território. Neste sentido o pluralismo religioso é a novidade que nos últimos cinquenta anos vem desafiando as Igrejas e lhes impondo a necessidade de se repensarem face a uma situação que transforma a fé, a teologia e a própria espiritualidade em objetos de desejo. Consequentemente, as Igrejas se vêm agora em face à necessidade de atender a esses desejos.
O ecumenismo, desta forma, transcende o diálogo confessional e situa-se no campo da ética. Este é o lugar mais legítimo para o ecumenismo na atualidade, pois reconhece a existência de diferentes formas de ser no mundo e evita a redução das infinitas formas de vivências culturais a algo parecido com uma “natureza humana”. O denominador comum para o diálogo não é mais a revelação de Deus, tal qual entendida pelos cristãos, tampouco é aquilo que poderia ser visto como a nossa natureza comum, mas, antes, é a ética o denominador e a razão para a busca da unidade.
A ética só existe em face do outro e esse outro visto como um sujeito de direitos no exercício de sua liberdade. Por isso só existe sentido no ecumenismo no contexto dos compromissos éticos dos cristãos. É nesse contexto que se pode propugnar por um diálogo genuíno no qual a escuta da fé e da cultura alheia se impõe como a base para o relacionamento e a aproximação entre os interlocutores.
Referências
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