De João Paulo II a Francisco, um panorama eclesiológico a partir da Igreja no Brasil

From John Paulo II. to Francis, an ecclesiological overview from the Church in Brazil

Matheus da Silva Bernardes
Doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Professor na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Contato: matheus.bernardes@puc-campinas.edu.br


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Resumo: Do mistério pascal nasce a Igreja: da morte e da ressurreição de Jesus de Nazaré surge uma comunidade de discípulas e de discípulos seus que tem a missão de anunciar a Boa-notícia do Reinado de Deus inaugurada por ele mesmo. A consequência imediata de tal afirmação é a seguinte: a práxis de Jesus de Nazaré orienta a práxis da Igreja, como insiste Jon Sobrino. Não obstante, processos históricos complexos fizeram com que a Igreja se afastasse da práxis misericordiosa de seu Senhor e se ocupasse muito mais de si mesma e de suas relações com os poderes temporais. Iniciado com o giro constantiniano, o processo de transformação da comunidade de discípulas e discípulos em Igreja imperial, posteriormente cristandade, permaneceu em voga até a virada do século XX. O evento conciliar, começado com a convocatória do Concílio Vaticano II pelo papa João XXIII, significou um sério empenho no “retorno às fontes”, à Boa-notícia do Reinado de Deus. Contudo, leituras e hermenêuticas diversas do concílio impuseram à Igreja agendas diversas, como é possível constatar nos pontificados de João Paulo II e Francisco. Depois de um percorrido histórico, este breve trabalho aprofunda nas mencionadas leituras e hermenêuticas do concílio a partir da convivência, nem sempre pacífica, das duas perspectivas eclesiológicas, isto é, a comunidade de discípulas e discípulos de Jesus de Nazaré e a cristandade, na Igreja no Brasil.  

Palavras-chave: Comunidade; Discípulas e discípulos; Igreja imperial; Cristandade; Boa-notícia do Reinado de Deus

Abstract: From the Easter mystery the Church lives: from Jesus of Nazareth’s death and resurrection emerges a community of disciples which has the mission to proclaim the Goodnews of God’s Kingdom inaugurated by Jesus himself. The immediate consequence of it is Jesus of Nazareth’s praxis guides the praxis of Church, as Jon Sobrino stresses. However, complex historical processes caused the Church to move away from the merciful praxis of the Lord and be much more concerned with herself and her relations with temporal powers. Initiated by Constantinian turn, the process of transformation of a community of disciples into an Imperial Church, afterward Christendom, remained until the 20th century. The conciliar event, begun with the II Vatican Council’s call by the pope John XXIII, meant a serious compromise with “returning to the sources”, to the Goodnews of God’s Kingdom. But diverse readings and hermeneutics impose diverse ecclesial agendas, as it is possible to realize during John Paul II’s and Francis’ pontificates. After a historical overview, this brief paper deepens into the mentioned readings and hermeneutics of the council from the coexistence, not always peaceful, of the two ecclesiological perspectives, i. e., community of disciples and Christendom, in the Church in Brazil.

Keywords: Community; Disciples; Imperial Church; Christendom; Goodnews of God’s Kingdom

Introdução

Embora este breve trabalho tenha por objetivo realizar uma reflexão sobre as últimas décadas da caminhada da Igreja, sobretudo desde a perspectiva da Igreja no Brasil, é mister ampliar o horizonte para além dos pontificados de João Paulo II e Francisco e da própria Igreja no Brasil. É preciso deter a atenção em alguns momentos significativos da caminhada eclesial, desde a Páscoa do Senhor Jesus. Com efeito, a Igreja nasce do mistério pascal, nasce da vida nova daquele que foi morto em uma cruz, mas agora vive para sempre (At 2,32).

A Páscoa de Jesus de Nazaré, como reflete Jon Sobrino, é a confirmação de sua missão e de sua vida: o verdugo não tem a última palavra, mas a vítima; e sua palavra é uma palavra de misericórdia (SOBRINO, 1999, p. 153-182). No Evangelho segundo Marcos, assim como no livro dos Atos dos Apóstolos, lê-se que Jesus fez tudo bem (Mc 7,37), passou pelo mundo fazendo o bem (At 10,38). Qual bem? Ele fez expulsou demônios, perdoou os pecados, tomou refeição com os pecadores e curou os enfermos, ou seja, o bem que ele fez é precisamente sua identificação com as vítimas de um mundo opressor e excludente.

Ao nascer na Páscoa de Jesus de Nazaré, a Igreja, em primeiro lugar, é confirmada como comunidade de “vítimas”, ou seja, não são os puros e os perfeitos aqueles que são chamados para fazer parte da comunidade do Ressuscitado, mas os impuros e os pecadores. Pedro, nesse sentido, torna-se exemplar: pescador (Mc 1,16 e par.), logo impuro, e traidor (Mc 14,30 e par.), logo pecador. Em segundo lugar, porém, a Igreja é confirmada em sua missão de anunciar a Boa-notícia do Reinado de Deus aos pobres, aos pequeninos, aos pecadores, isto é, a Igreja é convocada a permanecer com aquelas e aqueles que são deixados de lado, esquecidos à beira do caminho, como o aleijado de nascença que ficava à porta formosa do Templo e foi curado por Pedro (At 3,6).

Não é possível imaginar que a Igreja tenha nascido com uma instituição poderosa e respeitada, pelo contrário, nasceu como um pequeno grupo insignificante e subversivo, sobretudo aos olhos do Judaísmo oficial e, posteriormente, do Império Romano, e tinha como seu maior tesouro a fé em Jesus: “Nem ouro, nem prata possuo. O que tenho, porém, isto te dou: em nome de Jesus Cristo, o Nazareu, põe-te a caminhar!” (At 3,6), recordando novamente o episódio da cura do aleijado por Pedro.

Como consequência imediata de sua vocação, especialmente de sua fé subversiva, isto é, sua fé que não se adequa ao status quo, a Igreja foi perseguida, ora pelo Judaísmo oficial (At 6,8-15), ora pelo Império (Ap 12-18-13,10). Aquela pequena comunidade de seguidoras e seguidores de Jesus de Nazaré, agora repleta da força de seu Espírito (At 2,4), tornou-se capaz de testemunhar (martýrein) sua fé, inclusive mediante o sangue de seus membros. Importante atentar-se que a fé à qual aqui se refere é aquela que está intimamente vinculada à justiça, ou seja, cristãs e cristãos não eram mortos somente pelo odium fidei, mas igualmente pelo odium iustitiae. Tomás de Aquino remarca na Summa Theologica que “o amor é o elemento formal que outorga excelência no martírio” (ST II-II q. 124 a. 2 ad. 2).

Logo, não se pode supor que cristãs e cristãos deram sua vida somente por uma doutrina, mas sua condenação à morte está diretamente vinculada à práxis do amor, da justiça, da decisão pelo pequenino, pelo pobre e pelo pecador. Afinal, o próprio Jesus de Nazaré anunciou e viveu essa práxis, tanto que por ela foi condenado injustamente à morte (SOBRINO, 1993, p. 339). Nesse sentido, é impossível separar o anúncio e a vida da Igreja de uma práxis histórica em favor da justiça.

Mesmo não sendo possível englobar toda a complexidade eclesial, pode-se dizer que a Igreja se entendeu, ao longo de seus três primeiros séculos, na perspectiva acima apresentada. Com o giro constantiniano (313), a perspectiva eclesial passa por uma mudança radical: embora o Édito de Milão só tenha proclamado a neutralidade do Império Romano em relação aos credos religiosos, especialmente ao Cristianismo, o caminho para tonar-se religião oficial do Império estava aberto (380).

Com relação a isso, uma precisão é necessária: comumente afirma-se que com o Édito de Tessalônica, promulgado pelo Imperador Teodósio, o Império Romano teria se convertido ao Cristianismo; não obstante, o que de fato aconteceu foi o processo inverso, isto é, o Império não se tornou cristão, mas a Igreja se tornou Império. Trata-se, evidentemente, de um processo de conversão da comunidade de discípulas e discípulos de Jesus de Nazaré em uma Igreja imperial; contudo, tal transformação não aconteceu somente em um único acontecimento, no caso o Édito de Tessalônica.

Nesse sentido, o surgimento do clero é bom exemplo para ilustrar o processo. O termo klerus aparece no Novo Testamento, porém em um contexto de eleição ou destino (At 1,16-26). Contudo, com o giro constantiniano seu significado torna-se completamente distinto: o termo klerus passa a ser compreendido no contexto de privilégios. Mesmo que a determinação de seu significado tenha um marco teológico-moral, principalmente a partir da segunda metade do século IV, os membros do klerus passam a gozar de privilégios civis por suas funções sagradas. Tanto assim que dentro da comunidade passa a valer a dicotomia duo sunt genera christianorum (LThK VI, p. 131-133), o que introduz em seu seio a separação sociológica clérigos e leigos.

O processo que teve início no século IV, como descrito, aprofunda-se ainda mais, na segunda metade do primeiro milênio cristão, tanto no Oriente, na pessoa do Patriarca de Constantinopla, como no Ocidente, na pessoa do Romano Pontífice. Não se pode deixar de lado o fato de que da queda de Roma (476) até a coroação de Carlos Magno pelo Papa Leão III (800), o Ocidente cristão vivenciou uma profunda crise, que ficou conhecida como “idade das trevas”. Todavia, o ressurgimento da figura do imperador no Ocidente, sustentado pelo poder do Romano Pontífice, conduziu a sociedade ocidental à conhecida cristandade.

É decisiva para a cristandade ocidental a Reforma Gregoriana, realizada pelos papas do século XI, especialmente Gregório VII. A Igreja recupera sua autonomia, isto é, a potestas de nomear bispos, até então nas mãos do imperador, e o Papa impõe-se como grande poder, não só religioso também político, na Europa medieval. Nesse sentido, não se trata somente de uma reforma, mas uma verdadeira revolução papal; potestas eclesial e autoridade civil concentram-se na pessoa do Romano Pontífice (SCHILLEBEECKX, 1983, p. 106).

Mesmo com a crise do Papado de Avignon (1309-1377), o grande questionamento sobre a potestas do Romano Pontífice surge com os reformadores protestantes, principalmente Martinho Lutero, no século XVI. O não reconhecimento da potestas do Romano Pontífice durante e depois da Reforma representa um sério questionamento de sua legitimidade e, consequentemente, da legitimidade da Igreja, ou pelo menos, da cristandade (MARTINA, 1997, p. 119).

Para impedir o avanço da Reforma, o papa deve ceder naquilo que fora reconquistado durante a Reforma Gregoriana: novamente a potestas para nomeação de bispos passa para as mãos do poder civil, concretamente para as coroas espanhola e portuguesa (MARTINA, 2003, p. 312). Mesmo sabendo que tenha passado por diversas modificações desde o início das grandes navegações no século XV até sua extinção no século XX, a figura do padroado reforçou ainda mais o regime da cristandade em plena Modernidade.

Não obstante, era de se esperar o retrocesso da cristandade com a emancipação do sujeito moderno, isto é, com a passagem do eclesiocentrismo medieval para o antropocentrismo moderno, ao longo dos séculos, mas não foi o que aconteceu. O Concílio Vaticano I (1869-1870), sobretudo a proclamação da infalibilidade papal na Constituição Dogmática Pastor Aeternus, deu à cristandade ocidental mais um fôlego. A compreensão eclesiológica societas perfecta inaequalis, surgida no século XII e amplamente defendida por Roberto Belarmino durante a Contrarreforma Católica, é reafirmada.

Não se deve esquecer, todavia, de que o Concílio Vaticano I foi o último suspiro da cristandade ocidental; o concílio foi interrompido às pressas quando as forças de unificação da península itálica anexam a cidade de Roma ao Reino da Itália. Com isso, o Romano Pontífice, concretamente Pio IX, perde o controle sobre os Estados Pontifícios e, consequentemente, grande porção de seu poder civil. O exílio do papa no próprio Vaticano, em 1870, foi o começo de um declínio inevitável: potestas eclesial e autoridade civil não podiam caminhar mais lado a lado.

Em meio a esse longo processo histórico, o qual ainda se manteve até o Pontificado de Pio XII, o que resta daquela comunidade de discípulas e discípulos de Jesus Cristo que, como ele, coloca-se ao lado dos pequeninos, dos pobres e dos pecadores? O que ainda resta da práxis histórica em favor da justiça? Ocupando-se muito consigo mesma e duelando ad infinitum com o poder temporal, não em favor dos “sem poder”, mas para manter seu próprio poder, a Igreja empreende um caminho distante da Boa-notícia do Reinado de Deus, alinhada, porém, ao Império. Não é mais uma comunidade subversiva, mas uma Igreja imperial que defende o status quo.

1 O Concílio Vaticano II

Evidentemente, não se deixa de lado o fato de que o Espírito sempre suscitou mulheres e homens, sobretudo na vida consagrada, que trataram de retornar à mensagem original do Evangelho. Não são poucos os exemplos de carismáticas e carismáticos que assumiram a vida dos empobrecidos para, a partir deles, a anunciar a proximidade do Reinado de Deus. Além disso, muitas delas e muitos deles chegaram a ser questionados, quando não perseguidos, pela própria instituição.

Contudo, somente com o Concílio Vaticano II, o “retorno às fontes” converteu-se em programa da intuição católica. Não se trata de deter no conteúdo dos textos conciliares, sem dúvidas, resultado de árduo trabalho; pretende-se, pelo contrário, tratar de encaixar o evento conciliar dentro do breve percorrido histórico acima apresentado.

Em primeiro lugar, chama muito a atenção o fato de que a Igreja, sim, seria a temática central do Concílio. Inclusive, teria sido temática do Vaticano I, se o Concílio não tivesse sido interrompido abruptamente, como exposto anteriormente (SOUZA, 1998, p. 31). Embora o Concílio tenha proclamado a infalibilidade do Romano Pontífice, não se chegou a uma doutrina católica sobre a Igreja. A tarefa, portanto, permaneceu aberta e com a convocatória do Concílio Vaticano II, em 1959, pelo Papa João XXIII se dava a oportunidade de retomar e concluir o trabalho.

O papa confiou à comissão teológica preparatória a elaboração do esquema De Ecclesia, que deveria ser apreciado pelos padres conciliares, uma vez a Concílio tivesse sido oficialmente aberto. Os três pontos principais do esquema deveriam ser: a Igreja, como Corpo Místico de Cristo, o episcopado e o laicato; o responsável pela elaboração do esquema foi o jesuíta holandês Sebastian Tromp, secretário do Santo Ofício e cujo trabalho na redação da carta encíclica Mystici Corporis do Papa Pio XII era muito conhecido (PEREIRA, 2024, p. 05).

Nas palavras de Carlos José Boaventura Kloppenburg, o esquema foi “violentamente criticado em sua estrutura, método, argumentação, conteúdo e espírito” (KLOPPENBURG, 1968, p. 38). A insistência na autoridade na Igreja, centralizada no clero, e a ênfase nos aspectos visíveis e jurídicos fez com que o texto de 123 páginas, divididas em onze capítulos e um anexo, fosse rejeitado pela ampla maioria dos Padres conciliares, embora uma pequena minoria estivesse de acordo com ele.

O que surgiu da rejeição do esquema De Ecclesia é história bem conhecida. Não obstante, vale a pena remarcar um fato que pode passar, muitas vezes, despercebido: a formação teológica dos Padres presentes na aula conciliar era a Neoescolástica. Embora, a Nouvelle Theologie e outros avanços teológicos já tivessem sido firmados na Europa, a formação dos bispos da primeira e segunda metade do século XX era a Neoescolástica, muito mais habituada à especulação aristotélico-tomista que à leitura dos textos da Escritura e dos Padres da Igreja.

Nesse sentido, se o Concílio Vaticano II estava se propondo a apresentar a doutrina católica sobre a Igreja, vale a pergunta: de qual Igreja? No breve percorrido histórico anterior, contata-se que dois modelos irreconciliáveis de Igreja eram muito bem conhecidos: a comunidade de discípulas e discípulos de Jesus de Nazaré e a Igreja imperial de Constantino que, durante o Medievo, se converteu em cristandade. Tudo indicava que o que seria apresentado era uma doutrina sobre a cristandade.

No entanto, não se deve esquecer de que os concílios, desde Niceia ao Vaticano II, são obra do Espírito, que se utiliza de instrumentos humanos para inspirar e suscitar vida na Igreja; dois instrumentos humanos, concretamente, foram decisivos para o retorno às fontes realizada pelo Concílio Vaticano II: o próprio João XXIII, que o convocou e inaugurou, e Paulo VI, que o clausurou e teve a coragem de não engavetar os textos conciliares, mas dar início às reformas propostas e aprovadas pelos Padres.

Chama a atenção duas falas dos Romanos Pontífices, as quais marcaram a senda do evento conciliar. No discurso de abertura do Concílio, afirmou João XXIII:

Nos nossos dias, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia que o da severidade. [...] A Igreja Católica, levantando por meio deste Concílio Ecumênico o facho da verdade religiosa, deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade com os filhos separados. (JOÃO XXIII, 1962b)

Por outro lado, Paulo VI, em sua alocução à última sessão pública do Concílio, ressaltou o espírito conciliar:

Aquela antiga história do bom samaritano foi exemplo e norma segundo os quais se orientou o nosso Concílio. Com efeito, um imenso amor para com os homens penetrou totalmente o Concílio. A descoberta e a consideração renovada das necessidades humanas – que são tanto mais molestas quanto mais se levanta o filho desta terra – absorveram toda a atenção deste Concílio. (PAULO VI, 1965)

Já não se trata de uma Igreja que compreende a si mesma como societas perfecta inaequalis; João XXIII e Paulo VI, assim como os demais Padres conciliares, retomam a missão samaritana da Igreja, ou seja, sua missão como servidora das filhas e dos filhos de Deus que vivem suas “alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias” (GS 01) no mundo. Sem pretender contradizer as notas da Igreja professadas pelo I Concílio de Constantinopla, a misericórdia, como insiste João XXIII, deve chegar a ser um traço essencial da Igreja na atualidade.

Nas palavras de Jon Sobrino, não se trata simplesmente de buscar novas notas para a Igreja, mas comprometer-se que ela se pareça, cada vez mais, com o próprio Jesus (SOBRINO, 1990, p. 671). Se o princípio fundamental que configura a vida de Jesus é a misericórdia, ele também deve ser o princípio que configura a vida da Igreja.

Mesmo que não tenha sido remarcado explicitamente nos documentos conciliares, não é possível deixar de lado um traço fundamental da Igreja: a Igreja de Cristo é Igreja dos pobres (JOÃO XXIII, 1962a). A expressão contida na mensagem radiofônica do Papa João XXIII e o discurso de abertura do Concílio, citado mais acima, tiveram grande repercussão na aula conciliar (SOUZA, 2021, p. 14-15).

2 Leituras e hermenêuticas do Concílio Vaticano II

Comumente, fala-se de duas leituras e hermenêuticas do Concílio Vaticano II: a leitura e a hermenêutica da continuidade, proposta e defendida por Joseph Ratzinger, eleito posteriormente Romano Pontífice sob o título Bento XVI, e a leitura e a hermenêutica da descontinuidade otimista, proposta e defendida por Giuseppe Alberigo e outros tantos historiadores da Escola de Bolonha (COUTINHO, 2012). Entretanto, é justo se perguntar: continuidade e descontinuidade de quê?

Se o Concílio Vaticano II é contemplado dentro da tradição cristã, que se remonta a Jesus de Nazaré e a seu Evangelho, fala-se claramente de continuidade. Mas, se a figura histórica assumida pela Igreja desde o giro constantiniano é contemplada, o que tem ido chamado, neste trabalho, “Igreja imperial”, a qual conduziu ao regime de cristandade durante o Medievo e boa parte da Modernidade, fala-se claramente de descontinuidade.

Para saber do que falar, é interessante que refletir brevemente sobre a única recepção do Concílio Vaticano II levada a cabo por uma Igreja continental, isto é, a recepção conciliar realizada no II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, celebrada em Medellín/ Colômbia. José Oscar Beozzo ressalta a relevância ímpar da conferência dentro do processo de recepção do Concílio, porque se trata de “o elemento de verificação mais importante, pois revela quais dimensões foram capazes de passar para o cotidiano da Igreja, que outras deixaram de ser assimiladas e até mesmo as que foram seletivamente abandonadas” (BEOZZO, 2015, p. 803).

Nesse sentido, chama muito a atenção o fato de que a opção pelos pobres é elemento central dentro do processo de recepção do Concílio Vaticano II (VILLAS BOAS, MARCHINI, 2018, p. 112-113). Os enormes desafios sociais vividos pelos diversos países latino-americanos na década de 1960 impuseram-se como voz dos tempos, principalmente no resgate da dignidade humana e, consequentemente, no anúncio da Boa-notícia do Reinado de Deus. Já não é possível compreender a salvação separada da libertação, como o documento conclusivo da conferência indica:

[A salvação consiste em] libertar todos os homens de todas as escravidões a que o pecado os sujeita: a fome, a miséria, a opressão e a ignorância, numa palavra a injustiça que tem sua origem no egoísmo humano (Jo 8,32-34). (Justiça, n. 02)

Nesse sentido, a leitura e a hermenêutica do Concílio Vaticano II realizada pela Conferência de Medellín e, consequentemente por toda a Igreja latino-americana, alinha-se muito mais à descontinuidade otimista proposta pela Escola de Bolonha. Já não se trata, portanto, de uma Igreja convertida em Império, mas de uma Igreja que está com as empobrecidas e os empobrecidos deste mundo, anunciando a elas e a eles a Boa-notícia do Reinado de Deus e assumindo seus clamores de libertação.

Retomando, no entanto, o tema da reflexão: qual teria sido a leitura e a hermenêutica do Concílio Vaticano II de João Paulo II e qual tem sido a leitura e a hermenêutica do Concílio Vaticano de Francisco?

2.1 A leitura e a hermenêutica do Concílio Vaticano II de João Paulo II

Eleito Bispo de Roma em 16 de outubro de 1978, João Paulo II teve o terceiro mais longo pontificado da Igreja: 26 anos, 5 meses e 17 dias; além disso, os números de seu pontificado são surpreendentes: convocou a Igreja para a celebração de dois grandes jubileus (1983 e 2000); beatificou mais 1300 pessoas e canonizou 483; promulgou o novo Código de Direito Canônico, em 1983; publicou catorze cartas encíclicas sobre temas desde a relações entre a razão e a fé (Fides et Ratio), a eucaristia (Ecclesia de Eucharistia), a vida conjugal e a reprodução humana (Evangelium Vitae) até temas de doutrina social (Sollicitudo Rei Sociais e Centesimus Annus). Foi um dos grandes líderes políticos do século XX, sendo reconhecida sua atuação para o fim dos regimes comunistas do leste europeu; tornou-se o “papa peregrino”, tendo realizado mais de 100 viagens internacionais e visitado 129 países.  

 No entanto, este trabalho se interessa por sua leitura e sua hermenêutica do Concílio Vaticano II. Não se deve esquecer de que a recepção dos temas e dos textos conciliares incide diretamente na compreensão e na atuação da Igreja no século XXI.

Embora tenha sido apresentada por seu sucessor, Bento XVI, durante a alocução com os cardeais da cúria romana às vésperas do Natal de 2005, a “justa hermenêutica” do Concílio Vaticano II pode ser identificada ao longo do pontificado de João Paulo II. Nela, há uma clara representação do tempo, da qual deriva um projeto de história específico (COUTINHO, 2012).

Trata-se de uma representação marcadamente teocêntrica, a qual combina renovação em continuidade; não é somente a continuidade da única e verdadeira Igreja, é também a continuidade dos princípios que norteiam a própria Igreja. Fundamentos de tal representação são a filosofia grega, que não incorpora o transitório e o devir da história, próprios do pensamento moderno, e a teologia escolástica, decididamente metafísica não considerando a experiência concreta (COUTINHO, 2012).

Sendo assim, as decisões do Concílio Vaticano II correspondem mais à situação contingente dos “homens de Igreja” que propriamente à Igreja, “único sujeito-Igreja, que o Senhor nos concedeu; é um sujeito que cresce no tempo e se desenvolve, permanecendo, porém sempre o mesmo, único sujeito do Povo de Deus a caminho” (BENTO XVI, 2005). O Concílio Vaticano II, nesse sentido, teria corrigido algumas decisões históricas de alguns “homens de Igreja”, sobretudo aquelas referidas ao diálogo com a Modernidade, mas revelaria a íntima e profunda natureza da Igreja, isto é, “seu princípio transcendental e verdadeiramente divino” (COUTINHO, 2012).

Essa continuidade marcada pelo pessimismo distancia-se da recepção do Concílio, por exemplo, pela Igreja latino-americana, como mencionado acima; são a leitura e a hermenêutica oficiais vaticanas, vistas especialmente no pontificado de João Paulo II. A Segunda Assembleia Extraordinária do Sínodo dos Bispos, convocada por João Paulo II por ocasião dos 20 anos de clausura do Concílio Vaticano II e celebrada em Roma entre 25 de novembro e 08 de dezembro de 1985, expressa muito bem o que acaba de ser afirmado. A frase que sintetiza os trabalhos sinodais, Ecclesia sub Verbo Dei Mysteria Christi celebrans pro salute mundi, procura condensar os quatros principais documentos conciliares em uma única formulação (LIBÂNIO, 1986, p. 77-78).

Novamente, a perspectiva teológica é “de cima”, são acentuadas as noções “mistério” e “comunhão”, deixando para momento segundo sua aplicação na vida eclesial cotidiana. Nesse sentido, a legitimidade teológica e pastoral é atribuída exclusivamente à instituição católica, até mais, à instituição católica romana, deixando de lado toda e qualquer forma de pensar teologicamente e agir pastoralmente de lado, o que poderia significar – de fato, significou – polarização com outras leituras e hermenêuticas do Concílio (LIBÂNIO, 1986, p. 85).

Entretanto, será uma formulação de João Batista Libânio que expressará o projeto de história específico contido na “justa hermenêutica” do Concílio, não só de Bento XVI, mas sobretudo de João Paulo II: a volta à grande disciplina. Não se trata somente de uma frase, mas de um livro publicado por primeira vez em 1983 e nasce de “observações atentas dos fatos, mas também da criatividade e da intuição dos rumos gestados na época pelas políticas do papa e da Cúria Romana” (PASSOS, SANCHEZ, 2024, p. 142).

Nos primeiros anos do pontificado de João Paulo II, a Igreja encontra-se imersa em uma situação ambígua: de um lado, as exigências de levar adiante a agenda de reformas do Concílio Vaticano II e, do outro, a necessidade de retornar à grande disciplina, isto é, à grande tradição eclesial (LIBÂNIO, 1983, p. 11). O Romano Pontífice indica que a fidelidade está assegurada mediante a submissão à grande disciplina eclesial, a qual garante a justa ordem do Corpo Místico de Cristo. Com isso, o propósito e o projeto de seu pontificado tornam-se explícitos: é preciso voltar à grande disciplina depois da experiência do aggiornamento conciliar (PASSOS, SANCHEZ, 2024, p. 143).

Ao ter procurado diálogo, o Concílio Vaticano II rejeita a condenação da Modernidade levada a cabo durante o século XIX e abre as portas da Igreja para que o sujeito moderno possa nela entrar (LIBÂNIO, 2005, p. 21). A consigna da leitura dos sinais dos tempos à luz do Evangelho (GS 04) torna-se guia mestre para a relação Igreja-mundo; já não se tratava de uma Igreja debruçada sobre si, mas aberta e disposta a acolher em seu seio mulheres e homens desde as mais diversas experiências.

Claramente, tal atitude questiona a identidade católica e o significado de ser propriamente membro da Igreja. Com a eleição de João Paulo II, setores do episcopado alinhados com a leitura e a hermenêutica da continuidade chegam ao centro do poder eclesial. Todas as iniciativas de reforma, até então muito presentes na Igreja pós-conciliar, passam a ser freadas (PASSOS, SANCHEZ, 2024, p. 148). Inicia-se o período conhecido como inverno eclesial; era preciso enquadrar o Concílio e os processo de reforma e de renovação que dele nasceram.

João Paulo II inspira-se no modelo tridentino, ou seja, no exclusivismo católico e no imaginário espiritual centrado no medo e na condenação. João Batista Libânio, a propósito, chega a afirmar: “[esse imaginário] atormentava o fiel com ameaças, medos de condenação eterna, fazia da Igreja, como instituição, nau segura de salvação” (LIBÂNIO, 1983, p. 86). Além disso, investe-se na formação do clero, principalmente do episcopado, para a criação de um corpo coeso seguindo o paradigma de Trento (PASSOS, SANCHEZ, 2024, p. 150).

Nesse sentido, o enquadramento de todo o clero torna-se prática comum durante o pontificado de João Paulo II; enquadramento que chega até as conferências episcopais, as quais passam a gozar de uma compreensão reduzida de sua natureza como é possível constatar na carta apostólica Apostolos Suos sob a forma de Motu Proprio, de 21 de maio de 1998. Novamente, o poder eclesiástico passa a ser concentrado no Romano Pontífice e na cúria romana, toda e qualquer iniciativa, como aquela surgida na América Latina desde a Conferência de Medellín, deveriam ser revistas e repensadas pelas instâncias romanas.

Além disso, merecem ser mencionados dentro do projeto de história específico, chamado por João Batista Libânio de “volta à grande disciplina”, a rigidez moral, principalmente nos âmbitos da família, da sexualidade e da procriação humana, a clara opção pastoral por movimentos laicais conservadores e o alinhamento político do Vaticano com os assim conhecidos países-centro, sobretudo os Estados Unidos e os países da Europa ocidental (LOPES, 2018). Logo, a leitura e a hermenêutica do Concílio Vaticano II realizadas por João Paulo II realinharam a Igreja, especialmente seu centro de poder romano, com a cristandade.

2.2 A leitura e a hermenêutica do Concílio Vaticano II de Francisco

No dia 11 de fevereiro de 2013, durante o consistório para a canonização dos mártires de Otranto, Bento XVI anuncia sua renúncia ao pontificado. Em toda a história do papado, apenas três papas renunciaram, sem pressões externas, ao ministério petrino: Ponciano, em 235, Celestino V, em 1294, e Gregório XII, em 1415; Bento XVI, portanto, converte-se no quarto papa a renunciar, em 2013.

Conforme a declaração do próprio Romano Pontífice, sua renúncia devera à idade avançada e à debilitada saúde, inclusive confirmada em carta a seu biógrafo, Peter Seewald. O papa padecera de insônia desde a Jornada Mundial da Juventude de Colônia/ Alemanha, em 2005, meses depois que sucedera a João Paulo II. No entanto, há alguns elementos a merecem ser explorados.

Os antecedentes da renúncia de Bento XVI não se remontam somente à idade avançada e ao frágil estado de saúde do pontífice, a sucessão de escândalos de corrupção envolvendo personagens centrais da cúria romana, assim como a péssima condução dos casos de abusos contra menores durante o pontificado de João Paulo II implodiram o modelo de Igreja imposto pelo papa polonês e seguido à risca por seu sucessor alemão. Inclusive, como indicou o jornalista Gerson Camarotti, Joseph Ratzinger é eleito papa não por ser quem ele é, mas por ser o homem de confiança de João Paulo II. Os mais de vinte e seis anos de pontificado de João Paulo impuseram à Igreja o desejo de não ter outro papa que o próprio João Paulo II; Ratzinger foi eleito porque, nele, os cardeais viam Wojtyla (CAMAROTTI, 2013, p. 141).

Contudo, o projeto de história específico incorporado por ambos rui, até mais, implode, como mencionado. A leitura e a hermenêutica de continuidade do Concílio Vaticano II, a volta à grande disciplina, o exclusivismo católico – extra ecclesiam catholicam nulla salus – e o imaginário espiritual centrado no medo e na condenação esgotaram-se. No dia 13 de março de 2013, o conclave elege Jorge Mario Bergoglio, até então Arcebispo Metropolitano de Buenos Aires/ Argentina, como novo bispo de Roma. “Vindo do fim do mundo”, como ele mesmo anuncia em sua primeira aparição pública, Bergoglio, agora Francisco, impõe-se um estilo profundamente marcado por palavras e gestos simbólicos.

Ao celebrar a Ceia do Senhor, na Quinta-feira Santa, em um centro de detenção de menores em Roma, e lavar os pés de jovens detentos, incluindo uma jovem muçulmana, e ao realizar sua primeira viagem apostólica à Ilha de Lampedusa, no Mar Mediterrâneo, para expressar solidariedade para com os migrantes e os refugiados, Francisco aponta um rumo diverso para o pontificado. Contudo, será com a publicação da exortação apostólica Evangelii Gaudium, em 24 de novembro de 2013, que seu programa se torna claro: uma Igreja em saída (EG 20-23), uma Igreja pobre e para os pobres (EG 198).

Muito mais alinhado aos pontificados de João XXIII e Paulo VI, Francisco retoma a leitura e a hermenêutica da descontinuidade, sobretudo com a figura histórica da Igreja imperial e da cristandade. O ponto de partida é o evento conciliar e sua agenda inacabada; sua vivência, especialmente na recepção criativa do Concílio na América Latina, faz com que o Concílio Vaticano II seja uma bússola para a Igreja e seu pontificado (OLIVEIRA, DE LIMA, 2021, p. 583).

Partindo da centralidade do Evangelho e de sua dinâmica de transmissão, Francisco retoma o cerne da reflexão conciliar (OLIVEIRA, DE LIMA, 2021, p. 593). Discípulas e discípulos de Jesus, a comunidade por elas e por eles constituída não podem compreender-se à margem da “alegria do Evangelho [que] enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus” (EG 01).

A constituição dogmática Dei Verbum sobre a revelação divina surge da coexistência de duas correntes presentes na sala conciliar: a perspectiva do aggiornamento do discurso conciliar proposto pelo papa João XXIII e o texto da comissão preparatória que ainda remarcava a compreensão intelectualista da revelação (THEOBALD, 2006, p. 395). Nesse sentido, a agenda conciliar ainda permanece aberta e a insistência de Francisco no anúncio do Evangelho indica a superação dos limites ao interior do próprio texto, como remarca Christoph Theobald.

Mesmo sem negá-la, Francisco não remarca a compreensão jurídica e institucional da Igreja; o resgate da eclesiologia do povo de Deus, muito mais central para a constituição dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja que a eclesiologia de comunhão, tão destacada a partir da Segunda Assembleia Extraordinária do Sínodo dos Bispos, convocada por João Paulo II em 1985, revela grande sintonia entre o atual Romano Pontífice e o magistério conciliar.

Isso pode ser visto de modo preclaro em seu empenho contra o clericalismo em todos os níveis (OLIVEIRA, DE LIMA, 2021, p. 601). São duras, mas assertivas as palavras de Francisco à presidência do CELAM, em 28 de julho de 2013, último dia da Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro/ Brasil:

O clericalismo é também uma tentação muito atual na América Latina. Curiosamente, na maioria dos casos, trata-se de uma cumplicidade pecadora: o pároco clericaliza e o leigo pede-lhe, por favor, que o clericalize, porque, no fundo, é mais cômodo. O fenômeno do clericalismo explica, em grande parte, a falta de maturidade e liberdade cristã em parte do laicato da América Latina: ou não cresce [a maioria], ou se comprime sob coberturas de ideologizações como as indicadas [– reducionismo socializante, ideologização psicológica, proposta gnóstica, proposta pelagiana –], ou ainda em pertenças parciais e limitadas. (FRANCISCO, 2013a)

Contudo, é em sua consigna “Igreja em saída” que é possível vislumbrar sua leitura e sua hermenêutica de descontinuidade otimista do Concílio Vaticano II. Uma Igreja em “permanente estado de missão” (DAp 551; EG 25) não indica uma Igreja autocentrada, mas uma Igreja, cujas atitudes fundamentais são a abertura e o diálogo. Não se trata de uma missão que impõe, mas que propõe a Boa-notícia do Reinado de Deus; trata-se da acolhida e do diálogo sem reservas.

Finalmente, ao abraçar a opção pelas empobrecidas e pelos empobrecidos, Francisco resgata a orientação original do próprio Concílio e seu fundamento pastoral (OLIVEIRA, DE LIMA, 2021, p. 585). Movida pela misericórdia, a Igreja parece-se muito mais a “um hospital de campanha que um campo de batalha para as guerras culturais”, afirma o próprio papa em uma entrevista concedida ao jesuíta Antonio Spadaro, em 2013.

“Cada cristão e cada comunidade há de discernir qual é o caminho que o Senhor lhe pede, mas todos somos convidados a aceitar esta chamada: sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG 20). Ir às periferias geográficas e da existência não é uma opção para a Igreja; trata-se de sua missão, assim como foi a missão de Jesus de Nazaré. Logo, a leitura e a hermenêutica do Concílio Vaticano II de Francisco realinham a Igreja com a comunidade de discípulas e discípulos de Jesus de Nazaré.

Considerações finais – a Igreja no Brasil

Entre João Paulo II e Francisco, onde está a Igreja no Brasil? Seria ingênuo supor que a Igreja imperial, a cristandade, tenha simplesmente desaparecido das lembranças de católicas e católicos, ainda Igreja no Brasil em que a Igreja, viveu por séculos, sob o regime do padroado e padeceu – quando não, ainda padece – com os excessos do clericalismo. Portanto, a leitura e a hermenêutica da continuidade tendem a impor; de fato, elas vêm se impondo cada vez mais dentro do complexo horizonte da Igreja no Brasil.

Do ponto de vista religioso, não se pode falar de um só catolicismo no Brasil, mas de catolicismos, como indica Brenda Carranza (2024). Do ponto de vista institucional e pastoral, a CNBB passa por um período “insignificante” e “irrelevante”, nas palavras de Geraldo De Mori (2023) e assiste, passivamente, o surgimento de inúmeros influencers católicos. Comunidades paroquiais cada vez mais envelhecidas, altos custos para a manutenção do patrimônio eclesiástico, clero e laicato dividido entre si e em si mesmos. Quo vadis, Ecclesia?

Não obstante, o aggiornamento pós-conciliar e a redescoberta da riqueza da comunidade de discípulas e discípulos de Jesus de Nazaré ainda permanecem vivos. Segundo Henri Bergson, o tempo mais que mera quantificação é uma experiência real, uma duração real (BERGSON, 1972, p. 604; COELHO, 2004, p. 234). Tanto a física como a matemática ocupavam-se com uma ideia de tempo sem muito serventia; tratava-se de uma concepção abstrata do tempo, na qual os eventos físicos seguem uma ordem imutável. O tempo seria uma mera linha imóvel, cuja finalidade é mera mediação. Para o filósofo francês, o tempo é dureé, isto é, duração: o tempo dura porque é duro. Por isso, o tempo por ser concebido como um tecido real que permanece como sucessão, continuidade, mudança, memória e criação (COELHO, 2004, p. 244). Nesse sentido, a coexistência de “tempos” diversos não é absurda, mas real.

Logo, é possível afirmar que na Igreja no Brasil convivem duas perspectivas eclesiológicas: a comunidade das discípulas e dos discípulos de Jesus de Nazaré, ainda que na memória de muitas e muitos, e a cristandade, que se impõe atualmente; convivem a comunidade que se empenha no serviço aos mais pobres e marginalizados, ainda que, em diversas ocasiões, na memória de muitas e muitos, e a instituição centrada em si mesma, ocupada com seu poder, expressado em uma doutrina e em uma moral rígidas, que se impõe atualmente.

“A Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (LG 01), ensina o Concílio Vaticano II. Na frase, contempla-se o fundamento da Igreja, isto é, Jesus Cristo, e seu sentido, a humanidade, o mundo. Jamais a Igreja pode se considerar uma realidade absoluta, é relativa a Jesus Cristo e relativa à humanidade, ao mundo. Se ela perde uma dessas referências, perde sua razão de ser.

Embora temerário, este trabalho conclui com a afirmação de que aquilo que se impõe na Igreja no Brasil não perdeu uma, mas as duas referências principais. A Igreja no Brasil vive um profundo saudosismo: vive-se a nostalgia da cristandade e persistem os discursos pessimistas, como é possível vislumbrar na mensagem dos já citados influencers católicos.

Um movimento de nostalgia, com nuances muito particulares, invade dioceses, paróquias, comunidades e, principalmente, seminários: o excesso de rendas, velas e cruzes sobre os altares, chapéus com pompons, batinas e mais batinas que alegram muito mais as indústrias têxteis que as comunidades eclesiais apontam a um saudosismo daquilo que nunca foi vivido, porque simplesmente nunca existiu. E o pior: os saudosistas, os nostálgicos são de uma geração muito jovem; querem retornar ao período pré-conciliar, mas ainda lhes faltava muitos anos para nascerem (BRIGHENTI, 2021, p. 18-23).

Não se quer “canonizar” o modelo de Igreja vivido nas décadas de setenta e oitenta do século passado, no Brasil e na América Latina. Entretanto, é possível identificar naquele período o sério empenho de “retornar às fontes”, sobretudo à Boa-notícia do Reinado de Deus. Tratou-se de um sério compromisso com uma Igreja, que se identificava como comunidade de discípulas e discípulos de Jesus de Nazaré. Contudo, simplesmente repetir o que foi vivido há décadas consistiria em um grave erro; a situação atual exige muito mais diálogo e superação das antigas dialéticas, que tanto marcaram os planos de pastorais e as análises de conjuntura.

Todavia, o inverno eclesial vivido já nos anos oitenta fez com que esse compromisso não só esfriasse, mas desaparecesse da agenda eclesiástica – sobretudo da agenda dos ministros ordenados. Não obstante, permaneceu na memória daquelas e daqueles que viveram o redescobrir da Igreja com o evento conciliar. Nesse sentido: não seria o momento de deixar novenas, trezenas ou quaresmas, como está na moda, peregrinações ou a busca de indulgências e parar e se maravilhar novamente com as palavras de Jesus? Não seria o momento de ouvir novamente sua voz ecoar nos corações e se deixar contagiar pela alegria de seu Evangelho (EG 01), como convida Francisco?

Não seria o momento de arriscar por uma leitura e uma hermenêutica da descontinuidade otimista? Indo além da reflexão de Geraldo De Mori (2023), a insignificância e a irrelevância da Igreja no Brasil não se devem somente à pluralidade da Modernidade tardia, mas ao fato de que tendo voltado sua atenção a si mesma – nas palavras de João Batista Libânio, voltado à “grande disciplina” – a Igreja no Brasil tem dito pouco ou nada que valha à pena.

O doutrinamento e o moralismo onipresente nos discursos de influencer católicos não é bússola para a Igreja; é mera repetição de um passado que sequer existiu, é desejo de vanglória terrena que pouco ou nada tem a ver com a pequena comunidade de discípulas e discípulos de Jesus de Nazaré, a qual se inspirou na fé subversiva naquele que foi crucificado, mas que vive para sempre (At 2,32).

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