Alexandre Boratti Favretto
Doutor em Teologia Dogmática pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG-Roma). Professor na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Contato: oalebf@yahoo.com.br
Resumo: A renovação eclesial desejada pelo Papa Francisco, para uma Igreja em saída e eminentemente missionária, requer a renovação dos estudos eclesiásticos e, portanto do próprio método teológico. Este artigo aborda, justamente, essa necessária mudança epistêmica em vista de uma teologia indutiva. Para tanto, compõe-se de duas grandes partes. A primeira delas, tendo como referência a Constituição Apostólica Veritatis Gaudium, aborda o que significa o método indutivo na teologia, sua incidência epistemológica e pastoral e os critérios para a renovação dos estudos eclesiásticos, prospectando uma teologia fundamentalmente cristocêntrica, contextual e missionária. Na segunda parte, são desenvolvidas as mediações da filosofia e das ciências, consideradas imprescindíveis para uma teologia indutiva que se apresente como scientia Dei, justamente pelo fato de ser capaz de reconhecê-Lo nos seres humanos, no mundo e nos movimentos da história.
Palavras-chave: teologia indutiva; Igreja em saída; método teológico
Abstract: The ecclesiastical renewal desired by Pope Francis, for an outgoing and eminently missionary Church, requires the renewal of ecclesiastical studies and, therefore, of the theological method itself. This article addresses precisely this necessary epistemic change in view of an inductive theology. To this end, it consists of two major parts. The first, taking as reference the Apostolic Constitution Veritatis Gaudium, addresses what the inductive method means in theology, its epistemological and pastoral incidence and the criteria for the renewal of ecclesiastical studies, prospecting a fundamentally Christocentric, contextual and missionary theology. The second part develops the mediations of philosophy and science, considered essential for an inductive theology that presents itself as scientia Dei, precisely because it is capable of recognizing Him in human beings, in the world and in the movements of history.
Keywords: inductive theology ; Church going forth ; theological method
O nosso objetivo neste artigo é analisar a constituição de uma “teologia em saída” segundo a apresentação da carta apostólica, em forma de motu proprio Ad Theologiam Promovendam, do Papa Francisco, publicada aos 01/11/2023. Esse objetivo se justifica em duas dimensões: a teórica e a prática.
Na dimensão teórica, o Papa Francisco se mostra preocupado em tornar a teologia uma scientia Dei em consonância com a missão da Igreja, concebida como sacramento universal da salvação, que está a serviço do Reino de Deus. Então, a teologia não é uma teoria da fé com proposições conceituais e respectiva argumentação que está fechada em si mesma, mas que sai de si, colocando em missão, com espírito eclesial, a serviço do Reino de Deus. Por ser servidora do Reino de Deus, a teologia necessita estar presente no movimento de irrupção histórico-escatológica do Reino, de modo que sua identidade de scientia Dei seja efetivamente uma teoria que mostre uma Deus que amorosamente se encontra com o ser humano na história e habita o mundo.
Na dimensão prática, a preocupação do Papa Francisco se concretiza em dois documentos fundamentais sobre a teologia: a Constituição Apostólica Veritatis Gaudium, de 2017, e a carta apostólica, em forma de motu proprio, Ad Theologiam Promovendam¸ em que a teologia é concebida como “teologia em saída”, epistemologicamente em diálogo, interdisciplinar, transdisciplinar, missionária e sinodal. Por isso, urge aos(às) teólogos(as) a reflexão epistemológica sobre o significado da “teologia em saída”, sua constituição epistêmica e seus desdobramentos.
Para atingir esse objetivo, realizar-se-á uma exposição histórico-teológica acerca da Constituição Apostólica Veritatis Gaudium e sua repercussão epistêmica, desdobrada na carta apostólica, em forma de motu proprio Ad Theologiam Promovendam, em que se clarifica o significado de uma “teologia em saída”, com método indutivo, efetivamente missionária, sinodal e elaborada em permanente diálogo epistêmico. Em seguida, levará a cabo o uso das mediações da filosofia e das ciências em teologia, para evidenciar o método indutivo de uma “teologia em saída”, capaz de entrar na realidade concreta dos seres humanos e do mundo, despertando compaixão e esperança. Espera-se, então, que essa contribuição seja o início de um processo meditativo que assenta a teologia em seu caráter eclesial e missionário, para ser incisivamente contemporânea de sua época histórica.
Atualmente são três os documentos de referência para a renovação dos estudos teológicos: a Constituição Apostólica Sapientia Christiana (SCh), de 1979; a Constituição Apostólica Veritatis Gaudium (VG), de 2017; e a carta apostólica, em forma de motu proprio, Ad Theologiam Promovendam (ATP), de 2023. Todas se apresentam como frutos do Concílio Vaticano II, expressão de suas atualizações oportunas e promotoras do seu espírito de renovação da vida eclesial, nesses casos, através dos estudos teológicos.
Portanto, passados quarentas anos da SC, o Papa Francisco, na VG, entende ser o momento de atualizar epistemologicamente o campo dos estudos acadêmicos, considerando as mudanças socioculturais e globais desta “mudança de época”. Entende ser oportuno “relançar” os estudos eclesiásticos para uma nova etapa da missão da Igreja, apresentada programaticamente na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (EG) (VG, 1-2). Com efeito, existe aqui um tríplice contexto, no qual deve ser lida a VG: Vaticano II, SCh e EG.
Além disso, ao estabelecer a renovação dos sistemas dos estudos eclesiásticos, a VG apresenta como projeto uma “mudança radical de paradigma” (VG, 3) para o modo de fazer teologia. Tal mudança é inspirada pelo próprio movimento do Vaticano II, que, conforme Francisco, rompeu o divórcio entre ciência teológica e práxis pastoral. Agora, intenciona o Papa que a teologia aprofunde o diálogo com os seres humanos e com as culturas do tempo atual, ampliando a já anunciada “solicitude pastoral” do Decreto Optatam Totius, n. 19 (OT). Tal mudança de paradigma ganha formulação explícita na ATP, n. 8: solicita-se que a teologia seja desenvolvida com um método indutivo.
Isso significa que a teologia precisa assumir, como um todo, um caráter eminentemente pastoral, que sirva à pastoralidade da Igreja e que colha com essa ação os elementos para a própria reflexão epistemológico-teológica. Nos termos de Francisco, de um lado o método indutivo em teologia possibilita que se parta “dos diversos contextos e das diversas situações nas quais o povo está inserido, deixando-se interpelar seriamente pela realidade, para se tornar ‘discernimento’ dos sinais dos tempos’ no anúncio do evento salvífico do Deus-ágape, comunicando-se em Jesus Cristo” (ATP, n. 8); de outro lado, tal movimento metódico da teologia faz de bons teólogos bons pastores que “cheiram a povo e a rua e, com a sua reflexão, derramam azeite e vinho sobre as feridas dos homens” (ATP, n. 3).
A mudança de paradigma enunciada no proêmio da VG é categorizada na ATP n. 3.8, ao afirmar a necessária opção epistêmico-metodológica indutiva em teologia. Tal necessidade de renovação dos estudos eclesiásticos (VG, n. 3) é vista como “estratégica” para o processo de “discernimento, purificação e reforma” que a hodierna evangelização da Igreja precisa passar. Ou seja, para uma Igreja “em saída” (VG, n. 3-5), é preciso uma “teologia em saída” (ATP, n. 3). A esse compromisso, as Faculdades Eclesiásticas são chamadas a prestar contributo.
Estabelecendo como imprescindível o ímpeto pastoral da teologia, essa precisa considerar seriamente a mediação socioanalítica emergente das culturas e da história, considerando que as culturas e a história são espaços ou campos da revelação de Deus, cuja compreensão requer o uso das mediações tanto da filosofia quanto das ciências. Destas, irão emergir os questionamentos à teologia e, a partir desses, a ciência teológica irá desenvolver sua reflexão, a fim de responder hermeneuticamente aos anseios que emergem do povo em sua busca por Deus. Não é uma novidade o pedido de Francisco de que a teologia assuma o método indutivo em sua constituição epistêmica nesta época contemporânea. Já na EG, n. 217-237, o Papa apresentou os princípios polares em termos de princípios metodológicos para a construção intelectual hodierna (BORGHESI, 2018).
No que se refere à temática deste artigo, que é a renovação epistêmica e metodológica dos estudos teológicos, serve-nos o princípio polar de que a realidade é maior do que a ideia (EG, n. 231-233). Realidade, na EG entendida, nos termos da Revelação cristã, de uma história que experimentou a Encarnação do Verbo divino e, por isso, é terreno fecundo de onde emerge uma história como história da salvação, na qual Deus se relaciona interpelativamente com a humanidade e esta, responde-lhe. Tal resposta, questões que emergem da realidade, é carregada do desejo humano de corresponder a este Deus, mediante sua cultura e organização antropológico-social, repletas daquela inspiração que lhes advém pela Palavra Encarnada. Nada do que Deus gera no homem pode ser desprezado (GÄDE, 2002).
Justamente, essa realidade contrapõe-se a quaisquer ideias alienadas, adjetivadas assim porque oriundas de uma reflexão teológica desvinculada dessa realidade envolta pela graça. A EG expressamente as define como “fundamentalismos anti-históricos [...] intelectualismo sem sabedoria” (EG, N. 231) de ideias que, se desvinculadas da realidade desta história na qual Deus se encarnou, reduzem a “fé à retórica” ou estabelecem uma “racionalidade alheia à gente” (EG, n. 233).
Teólogo de grande influência sobre este pensamento de Francisco, e que também se contrapôs a um conceitualismo abstrato, foi Romano Guardini. Na obra Der Gegensatz: Versuche zu einer Philosophie des Lebendig-Konkreten, Gardini desenvolve sua teoria sobre a “oposição polar”, que irá incidir no pensamento de Francisco na EG, ao estabelecer os princípios polares, em termos metodológicos (SCANNONE, 2018) – tanto que esse teólogo é citado no mesmo capítulo da EG em que está o princípio metodológico supra (EG, n. 224).[1]
Sendo assim, a forma de fazer teologia de Guardini é de auxílio à compreensão da intencionalidade de Francisco ao estabelecer a epistemologia indutivo-teológica. Em sua forma de fazer teologia, Guardini enfatiza a relevância da realidade humana concreta, que, em sua complexidade histórico-cultural e religiosa, é determinante para a reflexão teológica (GIBELLINI, 2012). Ou seja, ainda que Guardini não tenha desenvolvido de forma metódica a indução como método teológico, sua abordagem empírica denota indução em sua produção teológica.
Como Francisco apresenta a teologia indutiva em termos de método, faz-se importante aqui retomar um clássico na utilização da investigação indutiva como método teológico, Tomás de Aquino (LAGRANGE, 2020), a fim de que auxilie nesta empreita de atualização epistemológica e metodológica da teologia.[2] Ao pedir o empenho da reflexão indutiva na teologia, Francisco mantém, como critério, a fundamentação na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja para o ato de fazer teologia, que precisa, simultaneamente, “acompanhar os processos culturais e sociais”, afrontando também os conflitos, sejam eles intra ou extra Ecclesie (VG, n. 4).
Aplicando aqui elementos do método indutivo tomasiano, o que move o teólogo na reflexão teológica, embora seja a experiência concreta, singular, histórica e cultural, combina-se à metodologia teológica o argumento de autoridade, que é a fonte da Revelação, a Sagrada Escritura, sem a qual não há teologia. Nesse sentido, não se trata de sujeitar a ciência teológica à dimensão socioanalítica, mas de, utilizando aqui os conceitos tomistas, entender que, em termos de método, na teologia indutiva, o procedimento de análise parte do efeito à causa. A causa eficiente não condiciona ou sujeita a teologia, mas é a motivação para que a ciência teológica chegue a uma definição essencial e não apenas nominal, categorial, sem vínculo com a existência concreta do homem (STh. I,q79,a8,c).
Assim como o Aquinate, no método teológico indutivo, parte-se do estudo de situações singulares, mais simples e concretas. Tal estudo tem como momento interno imprescindível a reflexão filosófica, que possibilita ao intelecto a abstração lógica. Abstração esta que abarca o processo pelo qual o intelecto analisa as realidades sensíveis, porém separa aquilo que lhes é essencial de sua materialidade e movimento, ou seja, busca chegar àquela realidade imaterial, a essência universal da coisa particular que o intelecto considerou. Com isso, há a expressão do conceito em termos de noção universal, comum, a todos os singulares analisados (FAITANIN, 2007).
O método indutivo em teologia, portanto, supõe o uso da razão e da lógica na investigação da vida cristã. A abordagem racional e indutiva possibilita formular argumentos teológicos, apoiando-se na observação empírica e na lógica para chegar a conclusões sobre as questões teológicas atuais. Enfim, as conclusões teológicas estarão sempre ligadas à vida concreta do povo e à realidade histórico-cultural da humanidade, sem as quais, simplesmente, não se pode chegar a conclusões teológicas com similitude inteligível.
A experiência singular, histórico-cultural, oferece os elementos para a abstração intelectiva, que afinal é o ato próprio da ciência teológica. Teologia que se faz com argumentos lógicos, em confronto com a Sagrada Escritura e a Tradição viva da Igreja, buscando a realidade essencial, concreta e universal daquilo que é analisado. Só assim, indutivamente, chegar-se-á a uma noção universal que corresponda à realidade da coisa em si analisada e que, simultaneamente, corresponda à realidade concreta, vivida, das pessoas; que dialogue com elas e lhes ofereça resposta às suas questões mais urgentes e atuais, sem descuidar das questões últimas, ou de ultimidade.
Pensar o que seria o caráter missionário da teologia, ou a missão da teologia, dentro dessa proposta de mudança epistêmica, envolve empenhar a reflexão teológica a ser “fundamentalmente contextual” (ATP, n. 4). Portanto, se indutivamente se parte do contexto, de que contexto estamos falando? Ora, de um contexto em que o Logos eterno é encarnado. A vinda de Deus na história e sua permanência, mediante a ação do Espírito Santo, faz com que o Logos entre na cultura, nas religiões e na vida dos povos. Destarte, a atividade missionária da teologia consiste em inferir hermeneuticamente essa presença do mistério de Cristo em toda parte e reconhecer e valorizar o que é gerado por ela nos diferentes contextos histórico-culturais como um patrimônio oriundo da Divina Providência, que encontra sua plenificação no Evangelho de Cristo (LOKUANG, 1975, p. 341-342).
Pensar, portanto, uma teologia em missão envolve conceber este dado fundamental, que é a encarnação e suas consequências para a história da humanidade. Nesse ponto, é-nos bastante útil a impostação pneumatológica na cristologia, realizada por M. Bordoni, em que o responsável por universalizar a presença do mistério de Cristo no mundo é o Espírito Santo. Com isso, faz-se possível ir além da particularidade histórica do Filho Encarnado e vislumbrar que o evento Cristo assume uma presença que se estende a toda a história humana. Trata-se de uma teologia que reconhece, de forma manifesta e concreta, o mistério de Cristo nos diversos contextos histórico-culturais (BORDONI, 2003, p. 181-188).
Logo, ser fundamentalmente contextual para a teologia em missão significa ser fundamentalmente cristocêntrico. Por isso, tem todo o sentido a retomada na VG, n. 2, do Decreto OT, n. 14, no qual se pede que os estudos eclesiásticos abram a mente dos alunos ao “mistério de Cristo, que atinge toda a história da humanidade”. Justamente, essa abertura é que destrava outra, a abertura à “escuta profunda aos problemas, feridas e solicitações” dos homens do nosso tempo (VG, n. 2). Na voz dos povos, faz-se ressoar a voz de Cristo, em quem vê nos sofrimentos da humanidade o reflexo de sua paixão e cruz. Em perspectiva teológica latino-americana, faz-se possível mencionar o Documento de Puebla n. 29-38, em que se concentra a teologia do rosto de Cristo, cujo acesso é pelos diversos rostos dos pobres, algo que também se manifesta, a modo próprio, tanto no Documento de Santo Domingo quanto no Documento de Aparecida.
Essa teologia que emerge da realidade se volta para esta mesma realidade, oferecendo repostas adequadas às interpelações humanas. Trata-se de a teologia inspirar mistagogicamente cada pessoa, oferecendo elementos para o reconhecimento de que, em qualquer contexto da criação, não existe solidão, mas a presença de um Deus Trindade. Justamente, em VG, n. 4a, e ATP, n. 4, faz-se a retomada daquilo que é fundamental para a teologia da missão no Decreto Ad gentes (AG): a missão é de natureza eminentemente trinitária (FAVALE, 1966, p. 35-41).
O Papa Francisco, na ATP, n. 4, e na VG, pede que haja o empenho de descoberta da marca trinitária em toda a criação, o que gera a consciência de que há uma “trama de relações”. Tal feito não pode ser exclusivamente teórico, mas também que se empenhe, no sentido de forjar uma “espiritualidade da solidariedade global que brota do mistério da Trindade” (VG, n. 4a). Desse modo, uma teologia em missão participa da própria missão trinitária, ao reconhecer sua presença na história e testemunhá-la, e, ao fazê-lo, anuncia uma realidade outra, categorizada como Reino de Deus, auxiliando na superação de duas grandes crises que marcam a época contemporânea: a antropológica e a socioambiental (VG, n. 3). Eis uma teologia em missão, efetivamente contextual.
A partir do que foi apresentado, existe uma teologia fundamental da encarnação que embasa uma teologia em missão, já que essa está atenta às consequências da encarnação para a realidade histórico-cultural. Com isso, há a superação de uma concepção pragmática de missão. Já não se trata de re-evangelização, mas de missão como evangelização com novos métodos, novo ardor, novas expressões. Vale aqui, para ilustrar, retomar o discurso de Paulo VI às comunidades religiosas não cristãs na Índia, por ocasião de sua visita ao país durante o 38º Congresso Eucarístico de Bombaim (1964). Em seu discurso, Paulo VI reconheceu nas práticas doxológicas deste povo a expressão do anseio do homem por Deus e convocou toda a humanidade para que reconheça em cada homem a filiação divina, a fim de que haja amizade e mútua compreensão em vista de um trabalho em conjunto para construir um futuro melhor para a humanidade (PAULO VI, 1964, p. 132-133).
Inclusive, visita que sucede ao acirrado debate sobre o Decreto AG, em um momento em que já se falava da necessidade de superar uma concepção de missão em termos de plantatio Ecclesiae, menos voltada à finalidade prosélita de conversão individual e mais destinada a suscitar a comunidade cristã para a vida eclesial (Congar, Diario, II, p. 293). Isso porque os Padres conciliares, já naquele momento, entendiam que o conceito de missão deveria ser fundamentado teologicamente sobre a natureza Trinitária de Deus (Alberigo, 2001, p. 609-611).
Relacionada a essa nova compreensão teológica sobre a missão, em discurso, Paulo VI reconheceu nas práticas doxológicas do povo hindu o implacável desejo de buscar a Deus. Expressão profunda da marca da filiação divina que toda humanidade possui e que, mediante este reconhecimento de bases espirituais, haja amizade e mútua compreensão em vista da construção conjunta de um futuro melhor para todos (PAULO VI, 1965, p. 132). Não seria isto, uma teologia em missão? Uma teologia que não se restringe à antiquada divisão do mundo entre cristão e não cristãos, mas que olha para o mundo como a seara de Deus e que quer colaborar com este mundo, para que se realize nele o projeto do Reino anunciado por Cristo? Com toda certeza!
No n. 4 do proêmio da VG, são apresentados os quatro critérios para a renovação dos estudos eclesiásticos, de modo que contribuam para uma Igreja em saída e missionária:
1) “Contemplação e introdução espiritual, intelectual e existencial no coração do querigma”. O Papa Francisco, como na Lumen gentium, para tratar a renovação eclesial, parte do mistério da Santíssima Trindade. Na VG, a ênfase é dada na forma como a relação trinitária incide na relação entre as pessoas, fazendo ressonância à Laudato Si’ (LS), n. 240, e à teologia tomista (Summa Theologiae I, q. 11, art. 3; q. 21, art. 1, ad 3; q. 47, art. 3), que inclusive serve de fundamento, nessa Carta Encíclica, à presente reflexão. A relação entre as Pessoas divinas extrapola o âmbito do criado e conecta todo o cosmos, fazendo dele uma “trama de relações”. É impressa em toda pessoa o dinamismo que é propriamente trinitário: estar em permanente relação, intercomunicação de amor – o que não pode ser negligenciado pela teologia.
Sendo Cristo o portador absoluto da Revelação e a Igreja o sacramento e o instrumento desta mesma salvação, a comunhão pericorética do Pai-Filho-Espírito Santo incide, de modo singular, na Igreja. Esta, por fixar suas raízes na Trindade, precisa viver a “mística do nós” e a “fraternidade universal” (VG, n. 4) que envolve a sacralidade do próximo, a dimensão social da evangelização e a solidariedade global. Tudo isso brota do mistério trinitário revelado em Cristo e precisa causar na teologia uma “mudança de paradigma” (ATP, n. 4).
Esse primeiro ponto da VG, sobre os critérios para a renovação dos estudos eclesiásticos, relaciona-se com o n. 4 da ATP, que considera seriamente a realidade da Encarnação. O entrar de Cristo na história, na cultura, nas religiões dos povos, precisa causar o necessário empenho dialógico e a “cultura do encontro” entre os diversos saberes e tradições culturais e religiosas. A teologia precisa ser “fundamentalmente contextual” (ATP, n. 4), constatando, analisando e testemunhando a impronta trinitária na história do mundo. Nesse sentido, a LS, n. 239, retoma São Boaventura na obra Quaestiones disputatae de Mysterio Trinitatis e afirma que “toda criatura traz em si uma estrutura propriamente trinitária”, sendo papel da teologia o ato de desvelar como cada ser testemunha a realidade do Deus Uno e Trino.
2) O segundo critério para renovação dos estudos eclesiásticos é consequência lógica do primeiro: o “diálogo sem reservas”. Sendo a trama histórica das relações religiosas e cultuais o lugar marcado pelo dinamismo relacional trinitário, evidentemente a teologia precisa partir do diálogo com o mundo, tanto que a referência fundante citada neste ponto da VG, n. 4, é a Gaudium et spes (GS), n. 62, que tem por subtítulo “harmonia entre a cultura humana e a formação cristã”.
A renovação dos estudos eclesiásticos e, portanto, da teologia, precisa partir da revisão e da atualização do método empregado nos currículos de estudos dos sistemas de estudos eclesiásticos. Na VG, há o imperativo de uma “cultura do encontro”, de modo que a renovação teológica não pode se furtar, em sua investigação epistêmica, de criar uma mentalidade, uma cultura, que privilegie o diálogo (EG, n. 239). Este, não em termos pragmáticos, mas como exigência intrínseca do próprio fazer teologia, garante o intercâmbio recíproco de saberes entre as diferentes culturas, Igrejas, religiões e pensamentos humanísticos.
No empenho concreto de renovação metódica da teologia, a ATP, n. 5, também partindo da dimensão relacional trinitária, entende que esta precisa definir o estatuto epistêmico da teologia, sendo contrário à própria natureza teológica o enclausurar-se em um autorreferenciamento, devendo necessariamente abrir-se ao diálogo sem reservas com outros saberes, o que é chamado de “transdisciplinaridade”. Trata-se da investigação teológica de um determinado objeto sob diversos pontos de vista, garantindo a devida articulação entre diversos saberes “científicos, filosóficos, humanísticos e artísticos, com crentes e não crentes, com homens e mulheres de diferentes religiões” (ATP, n. 9). Em decorrência disso, a comunidade acadêmica precisa garantir esse espaço polifônico e o engendramento de uma “rede de relações com outras instituições formativas, educativas e culturais” (ATP, n. 5). Somente assim, em relação dialógica sem fronteiras, poder-se-á atingir categorias novas e uma linguagem original e contemporânea, que garantam a eficácia da comunicação sobre as verdades da fé e manifeste melhor um conhecimento sobre Deus ao homem contemporâneo (GS, n. 62).
3) O terceiro critério é a “interdisciplinaridade e transdisciplinaridade” (VG, n. 4; ATP, n.5). O Papa Francisco as difere da multidisciplinaridade. Em ambos os casos, existe uma distinção de conteúdo e de método. A abordagem multidisciplinar possibilita que um determinado tema seja estudado, comumente, por diferentes áreas do conhecimento, de modo que cada uma delas produza especificamente conhecimento sobre o tema comum. Já na abordagem metodológica transdisciplinar no estudo de um determinado conteúdo, as diferentes áreas do conhecimento se relacionam, se integram e se complementam, possibilitando a resolução de assuntos e dilemas complexos (BRUSTOLIN, 2014).
Em teologia, trata-se de uma pluralidade de saberes que oferecem uma riqueza multiforme da realidade patenteada pelo evento da Revelação, e tal pluralidade é harmoniosa, dinâmica e reconduz a uma unidade encontrada na Revelação em Cristo, rompendo o binômio teoria e prática, ao associar ciência e santidade e, nessa unidade, está a “doutrina destinada a salvar o mundo” (VG, n. 4), o que incentiva o diálogo teológico com as diferentes mediações hermenêuticas na busca da compreensão da totalidade.
Essa totalidade é categorizada pelo Papa Francisco como “unidade de conteúdo” (VG, n. 4) e é contraposta à fragmentação dos estudos universitários e ao “pluralismo incerto, conflitual ou relativista das convicções e opções culturais” (VG, n. 4). No fundo disso, está a crítica já feita na Carta Encíclica Evangelii Gaudium (EG) nos n. 94-95, utilizando o conceito de mundanismo. Trata-se de uma postura que, infelizmente, pode ser assumida pelo estudo teológico, de fascínio gnóstico ou de neopelagianismo, que expressam a realidade de uma fé fechada, subjetiva e autorreferencial. Sendo a teologia fides quaerens intellectum, se desvinculada do princípio de transdisciplinaridade, pode perder-se na retórica estética de interesses pessoais escusos, que, na realidade, não são os interesses de Cristo (EG, n. 93).
4) O quarto critério para a renovação dos estudos eclesiásticos e, consequentemente, também do modo de fazer teologia é “criar redes”. Isso significa estabelecer sinergia entre as instituições acadêmicas. Trata-se de uma tomada de consciência de nossa interdependência e de fomento da “unidade na diversidade”, sabendo que o cristianismo não tem um modelo cultural único e que as “polaridades”, quando mantidas, conservam em si preciosas potencialidades, justamente pelo seu contraste (VG, n. 4).
Corrobora essa perspectiva a noção de que “o todo é superior a parte”, princípio polar apresentado pelo Papa Francisco na EG, n. 234-237. Embora esse princípio trate da tensão entre o global e o local, pode aqui ser transposto para a necessária renovação da teologia e da missão da teologia. Na EG, n. 234, há a crítica ao “universalismo abstrato e globalizante”, aos “museus folclóricos de ‘eremitas’ localistas [...] incapazes de se deixar interpelar pelo que é diverso”. Nessa esteira, na ATP, n. 9, é feito o apelo para que a atenção à cientificidade da reflexão teológica abarque o diálogo transdisciplinar com os saberes científico, filosófico, humanístico, artístico, ecumênico e inter-religioso.
Tais polaridades, tensões, sempre à luz da Revelação, no que se refere à produção de conhecimento, não são de modelo esférico, equidistantes/equivalentes de seu centro (a verdade em Cristo), porém poliédricas, mantendo sua originalidade e confluência em relação ao centro (a verdade em Cristo) (EG, 236). O diálogo com os diferentes saberes evidencia a necessária dimensão sinodal do fazer teologia (ATP, n. 6), o que deve acontecer na “escuta, diálogo, discernimento e integrar a multiplicidade e variedade de instâncias e contribuições” (ATP, n. 6).
Além disso, na ATP, n. 6, há ainda a solicitação de que existam lugares institucionais nos quais se faça essa experiência de “colegialidade e fraternidade teológica”.[3] Efetiva-se, assim, a missão da própria teologia, que, ao produzir conhecimento “em rede”, contando com diferentes teólogos de diferentes instituições do país, colabora formativamente com o povo de Deus, que deseja conhecer o processo sinodal, seu significado para a constituição eclesial atual, e, com isso, também assumir seu protagonismo na renovação eclesial e teológico-pastoral.
A presença da filosofia na produção de teologia cristã é um acontecimento que predomina desde a teologia realizada pelos padres da Igreja, propiciando a sistematização, a dogmatização e o aprofundamento da fé cristã revelada, passando pelos pensadores cristãos medievais que levaram a cabo escolas teológicas e colocaram a teologia como “Regina” da Universidade, na qual vigorava o espírito de universitas de todas as ciências. Mesmo que a era moderna tenha trazido e consolidado o espírito da modernidade antropocêntrica e cientificista, a filosofia esteve presente como partner da teologia, seja para filosofar questões de teologia – como, por exemplo, fê-lo Hegel em seu sistema filosófico marcado por sua original dialética – seja para compreender o humanum e o mundo, conforme o fizeram teólogos tomistas, tais como Suarez e Molina. Essa consolidação do tomismo encontrou na carta encíclica Aeterni Patris, de 1879, a retomada do tomasianismo e do tomismo – profundamente justificados por Leão XIII, ao afirmar que o Aquinate foi contemporâneo de sua época histórica em efetuar uma virada epistemológica na teologia medieval, deixando um grande edifício teológico – e as condições para se conviver com as filosofias da modernidade e com a densidade da Formengeschichte utilizada nas teologias protestantes. Dessa maneira, a filosofia continuava também a ser mantida como partner da teologia em uma era da ciência moderna. Por isso, ainda que a ciência moderna tenha feito seus questionamentos e sua incisão epistêmica, a teologia contemporânea – marcadamente plural em seu modo de ser produzida[4] – não deixou de ter a filosofia como saber de compreensão do humanum e do mundo, para que, em seu exercício científico, não deixasse de pensar Deus, que é o assunto fundamental da ciência teológica.
A filosofia como partner para a realização de uma “teologia em saída”, marcadamente “sinodal”, com hegemonia de um método indutivo, há de ser compreendida desde a sentença nietzschiana da “morte de Deus”, em que se tem a crítica de uma metafísica objetivista, que possui a marca epistêmica de construir e impor conceitos desvinculados da realidade do ser humano e do mundo, propiciando uma concepção de Deus abstrata e pouco incisiva na vida. No entanto, essa crítica, por mais que acentue que “Deus morreu” e foi morto pelo ser humano, indicando a possibilidade de uma nova vida humana, com novos conceitos a respeito do mundo, não despreza que essa metafísica amparava histórica e culturalmente o ser humano. Nesse sentido, o projeto heideggeriano de “superação da metafísica”, passível de articulação com a “morte de Deus” (VATTIMO, 2002), reconhece que a metafísica é uma “cadeia de montanhas irremovíveis” (VON HERMANN, 2004, p. 15). Dessa forma, a metafísica não foi descartada ou destruída, mas redimensionada em diversas maneiras de filosofar,[5] dentre as quais se destacam em teologia: a metafísica do ser, a metafísica realista, a fenomenologia, a ontologia hermenêutica e a filosofia social.
A metafísica do ser teve grande destaque com o neotomismo, amparado na recomendação leonina presente em sua carta encíclica supracitada, e com uma filosofia transcendental,[6] emergindo uma metafísica capaz de pensar o ser em uma totalidade, que abarca Deus, o ser humano e o mundo. Destaca-se aqui que, na própria essência do ser humano, está sua historicidade, sua liberdade, sua transcendência denotativa do homo religiosus, que, na imanência da história, faz a experiência de encontro com Deus, semper maior e transcendente (GONÇALVES, 2015).
A metafísica realista desenvolvida por Xavier Zubiri (1898-1983) ocupa-se do conceito de “realidade”, tanto no que se refere ao ser humano quanto ao que se refere ao mundo, para então compreender Deus. A realidade é “real” à medida que não se fixa à mera superfície das coisas e do homem, mas abarca o mais profundo, constituído de ultimidade, possibilidade e imponência. Por isso, a realidade possui inteligência capaz de se manifestar e de ser apreendida pelo homem, mediante uma inteligência que é fiel e honra a própria “realidade real” do humanum e do mundo. Resulta dessa concepção a religación, conceito que corresponde ao entrelaçamento do ser humano com as coisas, sua situação histórica no mundo e diversidade de experiências, incluindo a deidade, que lhe permite conceber Deus nas diversas experiências religiosas. Essa metafísica tem sido utilizada para a elaboração de uma teologia da libertação que é um intellectus amoris et misericordiae (SOBRINO, 1992), para levar a cabo a iustitiae e a paz, visando compreender a “realidade de real” dos pobres, que constituem um povo crucificado (ELLACURRÍA, 1990).
Por sua vez, a fenomenologia sistematizada por Edmund Husserl (1859-1938), também adjetivada de “transcendental”, atenta à manifestação das “coisas mesmas” e aos atos da consciência que dão significação ao que foi manifestado, ganhou campo em uma fenomenologia da transcendência do humanum e da sua consequente relação com Deus, elaborada por Edith Stein, e em uma fenomenologia alargada da religião, elaborada por Gerard Van der Leuwn, em que a história e antropologia se uniram à análise propriamente fenomenológica (ALES BELLO, 2014).
A ontologia hermenêutica emerge de Martin Heidegger (1889-1976), que concebia ter a metafísica se esquecido do ser e se apropriado do ente, principalmente do ente supremo, vindo a se constituir como uma ontoteologia. Visando recuperar a história do ser, Heidegger trilhou o percurso de uma ontologia hermenêutica, identificando fenomenologia e ontologia e assumindo a hermenêutica com perspectiva dessa identificação. Nesse sentido, elaborou uma fenomenologia ontológica hermenêutica que teve as fases da faktische Lebenserfahrung, da analítica existencial e da Ereignis – acontecimento apropriação –, vindo a mostrar o sagrado da relação entre o ser e o homem na linguagem, denominada de “casa do ser”, sendo o homem o “pastor do ser”, para efetivar o cuidado com o ser presente na vida humana (HEIDEGGER, 2008). Na esteira heideggeriana, Hans Georg Gadamer (1900-2002) levou a cabo o seu programa filosófico de hermenêutica, incidindo-a na estética, na história e na ontologia da linguagem, para mostrar que a verdade, em hermenêutica, apresenta-se mediante um processo de “fusão de horizontes” e diálogo entre os sujeitos envolvidos na busca da verdade. Apropriando-se dessa ontologia hermenêutica, o filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005) também assumiu a hermenêutica em sua filosofia, tripartindo-a em texto, símbolo e ação – ética –, realizando um processo de compreensão e intepretação que incide na decifração conceitual do ser humano e do mundo.
A filosofia social corresponde à crítica social feita por Karl Marx e por neomarxistas – que possibilitaram visualizar o conflito social e, por consequência, as desigualdades sociais –, por filósofos da escola de Frankfurt – cuja crítica se expandiu para o âmbito da cultura e da política – e por filósofos de uma escatologia política – tais como Zizek e Mezaros – denotativa de novos horizontes de vida. Essa filosofia tem sido utilizada em teologias políticas, dentre as quais se destaca a teologia política elaborada por Johannes Baptist Metz (2007), como uma teologia fundamental, concebida como memória, narrativa e solidariedade/compaixão.
Ao considerarmos a filosofia como partner da teologia, destacando essas formas de fazer filosofia, cabe então pontuarmos de que modo a filosofia contribui com essa aliança epistêmica ao se efetivar filosoficamente na produção de uma “teologia em saída” e efetivamente sinodal. A primeira contribuição corresponde à filosofia apropriar-se do ser humano e do mundo como “realidades reais” para a compreensão de sua respectiva estrutura fundamental e de sua condição de espaços para a revelação de Deus. Assim sendo, Deus não está fora nem da realidade humana nem da realidade do mundo, porém se situa na existência humana, concebida na pessoalidade de cada ser humano e nas relações inter-humanas. Trata-se de uma contribuição que aponta a profundidade do ser humano em sua condição de pessoa (ZUBIRI, 2017), marcadamente relacional, que indaga a si mesmo sobre o sentido de sua vida, que possui condições para decidir e realizar opções fundamentais, que se angustia diante das possibilidades e desafios que a vida lhe traz, e da condição de finitude e limite histórico e antropológico, tão próprio do humanum. Na condição de pessoa, o ser humano se relaciona com outros seres humanos, com as coisas outras do mundo e, por ser transcendente, relaciona-se com Deus. Possibilita também explicitar que o mundo em que habitamos é a “casa comum”, que necessita ser cuidada na perspectiva de uma “ecologia integral”, em que todos os seus habitantes estejam interconectados, interdependentes e inter-relacionados. Por ser integral, a ecologia é constituída das dimensões ambiental, social, mental e espiritual, superando um reducionismo do conceito de ecologia a “meio ambiente” e ampliando para que seja abarcado em uma globalidade que possibilita que, ao refletir sobre a criação, a teologia a conceba em sua tríplice dimensão – original, contínua e nova –, de modo a tanto visualizar a afirmação de que o ser humano, os vegetais, os minerais e o outros animais são criaturas de Deus, quanto explicitar a responsabilidade humana e a vivacidade de todos os entes na continuidade da criação, e apontar a habitação de Deus em sua criação, cujo fim é de índole escatológica e, por conseguinte, gloriosa (MOLTMANN, 1997).
A segunda contribuição é que a filosofia hermenêutica possui duas dimensões pertinentes e relevantes epistemologicamente para a teologia. A primeira é que se trata de filosofia que se constitui como ontologia e, consequentemente, pensa o ser em constante processo de compreensão e interpretação, em todos os seus âmbitos – texto, símbolo, ação –, levando a cabo uma operação hermenêutica que inclui a fusão de horizontes e o diálogo, em que vige uma comunicação das pessoas envolvidas nesse processo, tendo o consenso como resultado. A segunda é que a hermenêutica é também uma luz para pensar, um elemento de transversalidade de todo o processo de compreensão e intepretação, possibilitando abertura e propriamente uma clareira – lichtung na expressão de Heidegger –, de modo a fazer com que a expressão de verdade seja aperfeiçoada para mostrar a verdade manifestada em linguagem apropriada e inserida no mundo em que esse processo se efetiva. Nesse sentido, a decifração hermenêutica de textos bíblicos, de textos dogmáticos, de prescrições morais remete ao “mundo do texto” para, ao examinar o texto, compreender o seu contexto, decifrar a sua letra e articulá-la com o espírito do próprio texto, para que seja atualizado à contemporaneidade histórica. Na mundanidade dos textos, situam-se também símbolos, que “dão o que pensar” à medida que possuem linguagem e autonomia comunicativa próprias em suas expressões, denotando acontecimentos e conotando sentidos. Nesse processo de compreensão dos textos, também se situa a ética, denotativa de ação realizada visando à communitas e ao bem comum dos seres humanos, algo que é tão próprio da dimensão ética da teologia. Há também os símbolos que se situam fora dos supracitados textos, que possuem sua mundanidade própria, principalmente os religiosos, denotativos de experiência religiosa e conotativos de sentido da experiência do sacro (ALES BELLO, 2014). Ainda há também uma operação hermenêutica acerca da ação, ou propriamente a ética, constituída de um ethos comunitário, correspondente à práxis histórica, em que a alteridade se torna um elemento imprescindível na efetividade da hermenêutica da ação. A alteridade – ou autrement na perspectiva ricoeuriana – remete ao outro que possui um rosto próprio e interpelativo para que o encontro aconteça. A alteridade denotativa do rosto interpelativo do outro é provocadora da sensibilidade de quem se encontra para experimentar a alteridade e dispor-se para o encontro transformador de vida (SCANNONE, 1990). Eis aqui a hermenêutica da ação, efetivada em um constante movimento de compreensão e de interpretação da autrement, a fim de que a experiência de uma “cultura do encontro” se efetiva pela via da ética ou propriamente da hermenêutica da ação.
A terceira contribuição se situa na realização de uma “escavação arqueológica” das diversas religiões, especialmente as autóctones, própria de uma fenomenologia da religião que vise alcançar e acolher a manifestação religiosa em sua arché, para gerar sentido em seu singular e respectivo modus vivendi. Desse modo, a filosofia rompe com preconceitos e discriminações religiosas, põe-se a caminho para escavar as experiências religiosas, enquanto são experiências que geram sentido de vida, inclusive que possibilitam organizações sociais, rituais e símbolos de esperança e ânimo de vida. Nessa contribuição, a filosofia acolhe as manifestações religiosas diversas, favorecendo a clarividência do pluralismo religioso, possibilitando que apontem o que têm de verdadeiro e o seu potencial de levar a cabo um projeto de justiça, fraternidade e paz, tão próprio da revelação cristã. Ao realizar essa “escavação arqueológica”, a filosofia convoca outras ciências para o âmbito da análise fenomenológica, especialmente a história e a antropologia, para que contribuam para a compreensão das religiões em suas manifestações do humanum, com contribuições epistêmicas próprias, abertas ao diálogo epistêmico, propício à interdisciplinaridade. O uso da fenomenologia da religião, enquanto efetividade de um método indutivo, possibilita uma teologia cristã das religiões (DUPUIS, 1997), que supere uma apologética que favoreça o proselitismo religioso e apresente um complexo teórico que possibilite acolher o que há de verdadeiro nas religiões, fermentar o diálogo inter-religioso e ampliar a compreensão do que seja a revelação divina, em sua universalidade, incidente nas singularidades contextuais e efetiva nas contemporaneidades históricas.
A quarta contribuição é referente ao caráter de crítica que a filosofia há de fazer ao refletir sobre a sociedade, concebida em seu ordenamento jurídico, em sua configuração social e produção cultural. A crítica é algo intrínseco à própria natureza da filosofia, e sua reflexão sobre a sociedade é vocação e tarefa descritiva, analítica e prospectiva. Ao realizar sua reflexão sobre a sociedade, concebida na sua globalidade, a filosofia poderá refletir criticamente as estruturas sociais e verificar a medida do assento da justiça, analisar a configuração da política como bem comum, avaliar a configuração cultural em relação ao convívio humano, tanto no âmbito interpessoal quanto na relação entre os povos, ao caráter híbrido da vida, ao modo como o ser humano se relaciona com as coisas que constituem o mundo, envolvendo consumo e uso da tecnologia. A reflexão filosófica de caráter crítico possibilita compreender não apenas as crises e as tensões na sociedade, mas também as possibilidades da respectiva superação e da construção de novos horizontes de vida em sociedade. Resulta importante recuperar as utopias filosóficas, que serviram tanto para a compreensão das realidades sociais quanto para a projeção de novas possibilidades de vida. As utopias não se confundem com horizontes de impassível alcance, mas com possibilidades que estimulam a busca e a construção da realização daquilo que se idealizou como horizonte de vida. Elas possibilitam inclusive uma configuração poética que impulsiona o novum social, não como ilusão, mas como possibilidade real de construção histórica da justiça, da fraternidade e da paz nas diversas configurações sociais. Dessa contribuição filosófica, há a possibilidade de a teologia aprofundar a dimensão social da revelação e da fé, para que esteja em consonância com os contextos que essa filosofia permite analisar, constituindo-se como uma teologia em contexto social, capaz de afirmar um Deus da vida, compassivo, libertador e que provoca o ser humano à comunhão em efetiva dignidade do humanum (GUTIÉRREZ, 1990).
Diante do exposto, a filosofia é partner da teologia, que possibilita a análise do ser humano e do mundo, que são os espaços da revelação de Deus, que gratuitamente encontra-se com o ser humano, constituindo-se em sua diversidade propriamente filosófica, mas sempre capaz de dar à teologia a referida análise, para que a teologia esteja “em saída”, efetivamente ocupada com o humanum e com toda a “casa comum”.
A relação entre fé cristã e ciência é fundamentalmente uma relação entre teologia e ciência, dado que a fé, em sua tríplice dimensão – doxológica, intelectual e prática –, tem na teologia o intellectus fidei, que é norteado pela professio fidei e incisivo na martyria cristã. Por essa tríplice dimensão da fé estar presente na teologia, com a preponderância do intellectus fidei, a teologia é também concebida com scientia fidei ou scientia Dei. Historicamente, essa relação nem sempre foi marcada por tensões, pois, na antiguidade, ainda que em configurações históricas diversas, a teologia encontrou o seu espaço entre os diversos saberes, sobretudo na relação com a filosofia, conforme se mostrou acima. No período medieval, com as configurações das “escolas teológicas”, originadas ainda na antiguidade, a teologia adquiriu o status de scientia fidei e “rainha das ciências” nas universidades, de modo a concentrar assuntos que entrariam nas quaestiones disputatae elaboradas e debatidas in universitas. Nesse sentido, a teologia não só adquiriu o status científico e a responsabilidade de ser regente das ciências, articulando a fé com a razão – sem que as tensões pudessem significar violência epistêmica das ciências para com a teologia e vice-versa –, mas também o núcleo fundamental de pensar o ser humano, o mundo e Deus.
Com advento da modernidade (marcadamente antropocêntrica – à medida que encontra o seu ápice no cogito ergo sum de Descartes, o qual encontrou contraposição, em termos de teoria do conhecimento, no empirismo de David Hume, e tem em Kant a síntese fundamental de exaltação da razão moderna – e cientificista, em que o empirismo se tornou o núcleo principal de sua articulação, investindo sua força na utopia científica de Francis Bacon e nas formulações de Galileu Galilei e Copérnico, que configuraram a ciência moderna, imbuída de um método tripartido em hipótese, observação e verificação de resultados), é com Augusto Comte, em seu curso de filosofia positiva, que a ciência moderna encontrou o seu ápice e adquiriu um caráter messiânico, por se constituir na realização do derradeiro estágio da humanidade, que já havia passado pelos estágios religioso e filosófico – respectivamente o estágio de crenças em seres sobrenaturais e de contemplação do saber meramente especulativo – para desenvolver a ordem e o progresso da humanidade.
O caráter messiânico da ciência e sua centralidade na empiria propiciou tensões com a teologia, que perdeu o seu título de “rainha das ciências” para ocupar um lugar – junto com direito e medicina – nas “faculdades superiores”, que eram aquelas tuteladas pelo Estado. Por sua vez, as “faculdades inferiores”, a saber, a filosofia, as artes e as letras eram consideradas inferiores por não serem tuteladas pelo Estado e por terem a marca da liberdade epistêmica, sendo a filosofia a mais livre de todas as ciências. A configuração da ciência moderna em sua centralidade na empiria propiciou sua independência da teologia e, muitas vezes, sua contraposição à scientia Dei. O exemplo da teoria do evolucionismo de Charles Darwin evidencia não apenas o conflito entre ciência moderna e teologia, mas também a ruptura entre ambas e o caminho epistemológico próprio de cada uma. Contudo a ciência também tinha a pretensão de ser absoluta, de emitir a sentença final e, por conseguinte, foi configurada como “nova religião”, colocando em xeque o teísmo, possibilitando novas formas de ateísmo e propiciando espaço para a emergência de deísmos filosóficos. Por isso, a própria sentença nietzschiana acerca da “morte Deus”, que filosoficamente é compreendida como expressão forte da crise da metafísica, foi recepcionada paradoxalmente como expressão de ateísmo substancialista, de efetiva negação da existência de Deus e como crise de uma metafísica objetivista (GONÇALVES, 2015b).
Com os debates entre ciência moderna e teologia, tem-se a configuração epistêmica das ciências em três grandes áreas: as ciências naturais, as ciências lógico-formais e as ciências humanas ou ciências do espírito. Essa divisão denota também duas concepções de experiência, elaboradas por Wilhelm Dilthey, ao distinguir Erfahrung, colocada como sinonímia de empiria, que serviu de fundamentação para as ciências naturais, e Erlebnis, equiparada à vivência ou experiência de vida vivida, que foi concebida para a fundamentação das ciências humanas ou ciências do espírito (DILTHEY). As ciências lógico-formais também se concentram no conceito de empiria, porém se configuram como as ciências da razão calculista. Essas configurações diversificadas possibilitam distinguir as ciências em duas dimensões: a ontológica e a ôntica. A dimensão ontológica é constituída de uma única ciência, a filosofia, por se preocupar em refletir e meditar sobre o ser. A dimensão ôntica refere-se às demais ciências, por conceber que a ciência é o desvelamento fundante de uma região do ente, fechada em si mesma, em virtude de o próprio ter sido desvelado. Conforme o caráter objetivo e o modo de ser de seus objetos, cada região de objetos possui um modo específico de possível desvelamento, demonstração, fundamentação e cunhagem de conceitos que dão forma ao conhecimento daí emergente. Por isso, toda ciência possui um caráter ôntico, uma vez que o ente previamente dado é tomado como tema. A onticicidade denota a presença de um positum a ser desvelado, de uma região do ente a ser descoberta, ainda que possa haver algo mais a ser desvelado. Por isso, a ciência, por mais exata que se apresente, deixa de desvelar algo, que continua a ser velado e possui potencialidade de ser desvelado (HEIDEGGER, 2008).
Ao ser colocada como ciência ontológica, a filosofia não apenas se distingue das ciências, concebidas em sua onticidade e, por conseguinte, em conformidade com o seu positum, mas, por possuir identidade ontológica, subjaz no interior das ciências, sustentando-as epistemologicamente para garantir a sua respectiva singularidade. Nesse sentido, as ciências possuem um substrato em que a filosofia lhes é epistemologicamente intrínseca, de modo que podem levar a cabo a relação entre elas, de modo a promover a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade. No âmbito das ciências, encontra-se a teologia, que é concebida como scientia Dei, em que a scientia está identificada com a theoria sobre Deus, cujo acesso é possível mediante o ser humano e o mundo (RAHNER, 1973). Por isso, como scientia, a teologia há de se concentrar no seu objeto ou assunto, que é Deus, que é também o seu sujeito por excelência, já que a revelação divina em Cristo é o núcleo fundamental de toda forma de fazer teologia cristã. A revelação é um movimento de autocomunicação de Deus ao ser humano e ao mundo, em que Deus se insere livre e responsavelmente no mundo em que está situado o ser humano. Essa inserção se efetiva estando Deus in mundi, provocando o ser humano a uma relação em que ambos são parceiros na realização da continuidade da creatio. Por isso, ainda que seja afirmada a autonomia do mundo e do ser humano, de alguma forma, Deus não deixa de agir com o ser humano e com o mundo, cujo movimento é in mundi.
Para que a teologia possa teorizar essa presença de Deus in mundi, agindo em parceria com o ser humano e as coisas do mundo, a sua hermenêutica propriamente teológica necessita compreender as estruturas da vida do mundo e do ser humano. Por isso, a teologia terá nas ciências, sempre compreendidas em sua onticidade, as mediações para a compreensão regional do ser humano e dos outros entes que constituem o mundo. Resulta, então, que, ao constituírem mediações analíticas do fazer teológico, as ciências se põem em movimento de compreensão ôntica do ser humano e do mundo, própria de sua identidade epistêmica. Nesse sentido, após o concílio Vaticano II, a teologia tem assumido as ciências como mediações para a compreensão do humanum e do mundus, em sua dramática situação, na qual subjaz “alegrias e tristezas, angústias e esperanças” (GS, n.1)
Ao serem utilizadas como mediações em teologia, as ciências efetivam um conjunto de contribuições que possibilitam a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade, no processo de compreensão da realidade humana e do mundo. A primeira contribuição das ciências é a humildade epistêmica, que supera o messianismo positivista e a soberba de que a ciência pode resolver todos os problemas do mundo e dos seres humanos. Nessa humildade, as ciências se colocam ao lado umas das outras, para compreender o ser humano e o mundo, conforme o seu respectivo positum. Não se trata de um trabalho paralelo das ciências nem de assento à fragmentação, mas, pela mediação da filosofia, as ciências podem dialogar entre si, promover a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade na compreensão do ser humano e do mundo. Dessa forma, a humildade epistêmica promove a cooperação entre as ciências no próprio fazer teológico, de modo que a teologia tem nas mediações científicas um momento de análise dos entes em sua regionalidade, na elaboração de seu complexo teórico. Com a humildade epistêmica das ciências e com a abertura epistemológica da teologia, tem-se, no diálogo entre ciências e teologia, uma teologia elaborada em diálogo com as ciências (LIBÂNIO, 2011).
A segunda contribuição é referente à análise científica da vida dos seres humanos em sua constituição social, tanto no âmbito da organização social e institucional quanto nos dramas e nas potencialidades da humanidade. Assim sendo, as ciências humanas e as ciências sociais aplicadas podem prover a análise da convivência humana no mundo urbano, concebido tanto no âmbito dos grandes centros quanto nas periferias, nas zonas agrárias, e também nas relações entre os povos, visando compreender suas tensões, seus dramas, suas dádivas e suas potencialidades de um novum que possam superar as tristezas humanas, a “morte prematura” dos pobres, a corrupção em todas as suas dimensões, os problemas sanitários, a violência em suas diversas formas, as discriminações e os preconceitos diversos, as guerras, a alienação do povo e tantas atrocidades que ameaçam a existência humana. No entanto, essas ciências, com fundamentação na orientação filosófica acerca da concepção de ser humano como pessoa, também hão de apontar para alternativas que salvaguardem os direitos fundamentais da pessoa, para a busca de equidade econômico-social, para a política do bem comum, para processos históricos que garantam as identidades culturais, que respeitem as etnias, que acolham os imigrantes, refugiados e migrantes, e que indiquem caminhos próprios para a paz e a fraternidade universal. Com a contribuição dessas ciências na análise da dimensão social dos seres humanos, tem-se uma teologia capaz de afirmar Deus, tendo as questões sociais como locus para fazer teologia e, por conseguinte, uma teologia que tem como ponto de partida uma dimensão real da vida humana (ELLACURÍA, 2000).
A terceira contribuição das ciências à teologia se refere à análise da “crise ecológica” apontada pela filosofia, em suas especificidades científicas e técnicas, de modo que se busque compreender os efeitos dessa crise em termos climáticos, de produção de diversos vírus pandêmicos, de ausência de sintonia entre a natureza e o humanum, gerando catástrofes ambientais, sociais e propriamente vitais, pois a vida sofre ameaças de destruição e extinção. Em suas análises, essas ciências superam fatalismos científicos ao apontarem caminhos de superação da “crise ecológica”, mediante a decifração do conceito de ecologia, frisando o entrelaçamento e interdependência dos entes, a articulação entre o todo e as partes, realçando os sistemas ecológicos e o próprio ecossistema em sua totalidade. Ao realizar suas análises referentes à ecologia, as ciências contribuem para que a teologia aprofunde a creatio Dei, formulando teologia ecológica, imbuída de uma espiritualidade ecológica e mística propiciadora de uma “ecologia integral” (MOLTMANN, 1993).
A quarta contribuição das ciências à teologia é referente à tecnologia que permeia a vida humana, tanto no âmbito propriamente pessoal, quanto no cultural e social. A tecnologia se tornou necessária para a comunicação inter-humana e interinstitucional, cujos espaço e tempo estão modificados, tornando processos mais ágeis e relações híbridas. Com uma comunicação virtual e híbrida, a vida se tornou acelerada, ágil e impessoal, dado que as relações de trabalho estão marcadas pela eficiência produtivista e pela eficácia tecnológica. Ao habitar a vida humana, essa marca híbrida da tecnologia tem instigado também as relações híbridas, efetivamente impessoais, estabelecendo surpreendentemente marcas afetivas. Essa tecnologia que propicia a vida híbrida possui uma cultura de redes – sociais – a qual finca novos lugares – virtuais – de encontro, de exibição estética e espetáculo (MORRA, 1992). Em suas diversas formas, o narcisismo se manifesta social e culturalmente, de modo a intensificar o consumismo, o individualismo e, por conseguinte, a insensibilidade à alteridade e seus desdobramentos. Em um movimento de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, por envolver várias áreas, as ciências sociais, do psiquismo e da comunicação hão de analisar criticamente esse quadro comunicacional e tecnológico da vida humana, com todos os seus desdobramentos e consequências, possibilitando à teologia obter elementos de compreensão dessa realidade, para que a hermenêutica teológica seja realizada a partir de uma situação concreta que vivem os seres humanos. Assim sendo, a teologia poderá pensar Deus nesse contexto social e cultural, trazendo à tona a necessidade de um ethos que esteja fundado em uma antropologia teológica que apresente o ser humano como imagem e semelhança de Deus, visando superar o modelo do ser humano híbrido e restabelecer o modelo de um ser humano, que é criatura e parceiro do Deus criador (GONÇALVES, 2011b).
Ao ter as ciências como mediações analíticas, a teologia se consolida como scientia fidei ou scientia Dei, elaborada em diálogo epistêmico, aberta às contribuições de outras ciências, que assume o método indutivo, estando atenta aos reais acontecimentos dos seres humanos e do mundo, concebidos respectivamente como parceiros do encontro com Deus e como espaço da revelação divina.
Ao final deste artigo, urge a necessidade de sintetizar o que se realizou e lançar determinados elementos prospectivos, para que a conclusão se abra às outras possibilidades epistemológicas de pensar uma “teologia em saída”.
Objetivou-se neste artigo pensar epistemologicamente uma “teologia em saída”, propícia aos estudos eclesiásticos, conforme a orientação do Papa Francisco, tanto em sua Constituição Apostólica Veritatis Gaudium quanto na carta apostólica Ad Theologiam Promovendam. Justifica-se esse objetivo a necessidade de a teologia ser uma scientia Dei que apresenta a revelação de Deus in mundi, encontrando-se com os seres humanos, em suas diversas épocas históricas. Para isso, a teologia não pode ter consigo soberba nem arrogância epistêmica, mas, constituindo-se como sapientia, ter capacidade de superar o mundanismo torna sua eclesialidade e sua fé voltadas para dentro de si, isenta de alteridade, de diálogo e efetiva inserção na realidade do ser humano e do mundo. Por isso, o Papa Francisco tem orientado a constituição de uma “teologia em saída”, capaz de não enclausurar em si mesma e de dialogar com a filosofia e com as ciências para compreender a realidade dos seres humanos e do mundo, o quais se tornam o ponto de partida para o fazer teológico. Assim sendo, uma “teologia em saída” é uma scientia Dei ou scientia fidei que pensa Deus revelando-se in mundi, habitando a sua criação e se encontrando com os seres humanos, a partir de um locus histórico concreto.
A “teologia em saída” supera o mundanismo, próprio de uma teologia que se distancia da realidade fundamental do locus em que é produzida, pois é uma teologia feita desde o mundo do ser humano em sua “realidade real” e, por conseguinte, possui um método indutivo para se apresentar como scientia Dei. O ponto de partida desse método em teologia é a análise da “realidade real” do ser humano e do mundo, de modo que as mediações da filosofia e das ciências são necessárias à teologia à medida que propiciam conhecer tal realidade. São mediações distintas, mas não separadas e necessárias para que a teologia se constitua como “em saída”, efetivamente missionária e sinodal. Pela mediação da filosofia, a teologia terá uma análise global, de iluminação ontológica e fundamental da realidade do ser e do humano, possibilitando à teologia ser um scientia profunda e aberta ao novum. Com a mediação das ciências, caracterizadas por sua onticidade, será possível à teologia ter consigo a realidade regional do ser humano e do mundo, de modo a poder pensar Deus desde a conjuntura própria oferecida pelas ciências.
A afirmação de que a “teologia em saída” é efetivamente missionária significa que não é um complexo teórico que assenta em conceitos isentos do dinamismo histórico, tão próprio de uma teologia que possui a hermenêutica como luz epistemológica transversal. Com a hermenêutica em sua transversalidade, a teologia tem, nos seus conceitos e respetiva argumentação, expressões linguísticas da verdade da revelação, que servem à revelação divina, porém que não a esgotam e provocam a emergência de outras expressões que explicitem ainda mais fielmente a verdade revelada e são efetivamente incisivas à “realidade real” do locus humano e histórico em que é elaborada a teologia. Por isso, a “teologia em saída” é também uma teologia sinodal, capaz de escutar as vozes do locus a partir do qual é produzida, de ser compassiva ao sentir as dores do sofrimento e de produzir esperança ao mostrar os novos horizontes de vida que a revelação divina em Cristo aponta para a humanidade e para o mundo.
Enfim, uma “teologia em saída” é uma teologia missionária e sinodal por estar imbuída de uma pobreza espiritual, em que vigora a humildade epistêmica para escutar os diversos loci em sua respectiva “realidade real”, apropriando-se das mediações da filosofia e das ciências, e constituindo-se como scientia Dei que explicita um Deus que tem o ser humano como partner, que se revela e atua in mundi, de forma compassiva e solidária, impulsionando a fraternidade universal e fazendo-se ecologicamente presente na vida. Uma teologia que assim se faz, saindo de si, é uma teologia feita em diálogo, aberta à alteridade, imbuída da esperança da plenitude da vida.
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[1] Na EG o Papa Francisco apresenta quatro princípios, em termos de paradigmas hermenêuticos, que possibilitam a colaboração para “o desenvolvimento da convivência social e a construção de um povo onde as diferenças se harmonizam dentro de um projeto comum” (EG, n. 221). São eles: “o tempo é superior ao espaço” (EG, n. 222-225), “a unidade prevalece sobre o conflito” (EG, n. 226-230), “a realidade é mais importante do que a ideia” (EG, n. 231-233), “o todo é superior à parte” (EG, n. 234-237).
[2] O método tomista, na medida em que parte dos casos simples e concretos para chegar à análise dos complexos e abstratos, é chamado de indutivo. Tal método gnosiológico utiliza-se da lógica aristotélica em sua argumentação e demonstração, constituindo-se em substrato filosófico à teologia sintética formulada no contexto universitário medieval (FAITANIN, 2007).
[3] Na prática, isso vem sendo feito pelos Institutos de Teologia afiliados à Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, de São Paulo. São eles: Instituto de Teologia da PUC-Campinas; Centro de Estudos da Arquidiocese de Ribeirão Preto (CEARP); Instituto de Teologia João Paulo II – Sorocaba; Faculdade João Paulo II (FAJOPA) – Marília; Instituto Teológico João Paulo II (ITEO) – Campo Grande; Faculdade Paulo VI (Mogi das Cruzes); Instituto Arquidiocesano de Filosofia e Teologia São João Paulo II (IFITEO). Essas instituições eclesiais, inspiradas pelo empenho de “criar redes” para promover a reflexão teológica, criaram o projeto “Teologia em Missão”. Tal projeto consiste na confecção de breves vídeos, publicados no YouTube, nos quais teólogos e teólogas apresentam estudos relacionados ao Sínodo sobre a Sinodalidade (2021-2024), abarcando desde a análise minuciosa do Instrumentum laboris até a própria dinâmica de debates da Assembleia Sinodal, bem como o conteúdo apresentado por ela.
[4] Conforme o volumoso trabalho de GIBELLINI (1990), a era contemporânea é marcada por um profundo pluralismo teológico, tendo diversas formulações, dentre as quais se destacam: a teologia transcendental de Karla Rahner; as teologias da história do movimento nouvelle théologie – Marie-Dominique Chenu, Yves Congar, Henri de Lubac e Jean Daniélou –; a teologia querigmática de Rudolf Bultmann; as teologias hermenêuticas de Fuchs e Ebeling; a teologia da palavra de Karl Barth; a teologia da experiência de Edward Schillebeeckx; a teologia da esperança de Jürgen Moltmann; a teologia política de Johannes Baptist Metz; a teologia da libertação, que teve como pioneiro Gustavo Gutiérrez; a teologia negra de James Cone. Todas se utilizaram da filosofia como partner, em suas diversas vertentes, possibilitando que a filosofia assumisse a condição de um momento do próprio fazer teológico e como luz transversal de todo o fazer teológico.
[5] Na obra Metafísica contemporânea (2007), os organizadores pensam a metafísica dividindo a obra em quatro partes: críticas à metafísica; a metafísica como totalidade do ser; as categorias do ser; e as teorias dos mundos possíveis. Na primeira parte, têm-se as críticas de Nietzsche para dar início à pós-modernidade, do neopositivismo, da filosofia heideggeriana, e a afirmação da ontologia analítica de Quine. Na segunda parte, a totalidade do ser é concebida na lógica, na ontologia, na epistemologia, na tematização da totalidade do ser na relação entre o Absoluto e Deus, nos universais particulares e no problema das predicações singulares da inexistência. Na terceira parte, o ser é categorizado no âmbito da substância e suas alternativas, na ontologia do processo e na mereologia correspondente à relação entre o todo e suas partes. Na quarta parte, os mundos possíveis são analisados nas teorias histórico-filosófica, realista extrema, atualismo e essencialismo.
[6] Joseph Maréchal foi o responsável por dar início a uma filosofia transcendental que sintetizava Tomás de Aquino e Kant. No entanto, foi Karl Rahner que, apropriando-se dessa filosofia, utilizou-a como metafísica do ser para conceituar o transcendental como o a priori infinito presente no espírito finito, para articular teologia e antropologia, com fundamentação filosófica, para elaborar a sua teologia transcendental, em que Deus é mistério santo e inefável que autocomunica com o ser humano, que, por sua vez, é o “ouvinte da palavra” que responde livre e com responsabilidade às interpelações divinas.