O homem, um ser vocacionado a plenitude: diálogo sobre aspectos antropológicos da Gaudium et Spes

Man, a being called to plenitude: dialogue on anthropological aspects of Gaudium et Spes

Evilázio Francisco Borges Teixeira
Doutor em Teologia pela Pontificia Università Gregoriana (PUG, Itália. Professor do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Contato: vila@pucrs.br

Everton Ricardo Berny Machado
Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Contato: bernyeverton@gmail.com


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Resumo: O Concílio Vaticano II foi o maior evento eclesial dos últimos séculos, nele a Igreja assume uma atitude de diálogo com a Modernidade. Neste diálogo a Igreja tem uma palavra qualificada sobre o homem, pois ela anuncia o Homem em plenitude, Cristo Jesus. Em consonância com o pensamento filosófico este artigo resgata alguns postulados sobre o homem presentes na Gaudium et Spes. O homem é um projeto a realizar, ao mesmo tempo que permanece um mistério para si mesmo. Diante da sua finitude o homem se pergunta pelo sentido da sua vida e se descobre como um ser de comunhão, que se realiza na relação com o outro. No entanto, o homem, chamado a grandeza experimenta o pecado como um limitador. Esta realidade dura da miséria humana não elimina o chamado que traz dentro de si para unir-se com o seu Criador, este é o aspecto mais sublime da sua vocação humana. O caminho do deserto, a semelhança do povo de Israel será a oportunidade de purificar o homem para chegar a sua plenitude. Portanto, a antropologia conciliar aponta para um ser humano que se pergunta sobre a sua existência e que descobre a sua dignidade na relação com Deus, deste modo a vida humana enche-se de esperança e de um futuro ao qual também é chamado a construir por meio de princípios éticos e evangélicos.

Palavras-chave: Gaudium et Spes; antropologia; homem; vocação; plenitude

Abstract: The Second Vatican Council was the most significant ecclesial event of recent centuries, during which the Church adopted an attitude of dialogue with Modernity. In this dialogue, the Church offers a qualified perspective on humanity, as it declares Christ Jesus, the human being in fullness. In harmony with philosophical thought, this article revisits some of the key anthropological principles found in Gaudium et Spes. The journey through the desert, following the example to the experience of the people of Israel, becomes an opportunity for purification, guiding the human person toward the fullness of existence. Thus, conciliar anthropology points to a human being who, by questioning its own existence, discovers its dignity in the relationship with God. In this way, human life becomes filled with hope and oriented toward a future that each person is called to build through ethical and evangelical principles.

Keywords: Gaudium et Spes; anthropology; man; vocation; plenitude

Introdução 

O ser humano é um ser histórico, pois todas as suas ações ocorrem num tempo e num espaço determinado. A sua existência se dá numa saudável tensão entre o passado já realizado e o futuro com novas possibilidades a serem realizadas. O risco de optar por um dos polos levaria ou a um saudosismo estéril ou a um protagonismo infantil. A saudável relação entre passado e futuro se encontra no termo judaico-cristão memória, fazer memória significa bem mais do que recordar um evento passado, significa atualizá-lo no presente como fonte de inspiração para o futuro. 

O intuito deste artigo é fazer memória do maior evento eclesial do século XX: o Concílio Vaticano II, cujo 60 anos do seu encerramento estamos celebrando. Ao mesmo tempo queremos resgatar alguns postulados antropológicos da Gaudium et Spes que apontam para uma compreensão do ser humano chamado a plenitude. O Vaticano II foi um novo Pentecostes na Igreja, ele renovou todas as suas estruturas e expressões de comunicação da fé. A busca por aggiornamento levou a Igreja a uma revolução copernicana, passando da suspeita em relação ao mundo a uma atitude de diálogo e serviço. Emblemática neste sentido é a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, que reflete sobre a Igreja no mundo de hoje. Ela é chamada de “Carta Magna do Humanismo Cristão” (SECO, 2005, p. 375), pois trata de forma crítica assuntos pertinentes à modernidade, tais como: o diálogo, a liberdade, o espírito crítico, o progresso científico e tecnológico, a autoconsciência e a autonomia das realidades terrenas. Embora se possa encontrar elementos antropológicos nos outros documentos conciliares, no entanto, na Gaudium et Spes temos uma antropologia explícita, localizada no início do documento, como ponto de partida para o diálogo entre a Igreja e a humanidade sobre os problemas atuais.

O objetivo do artigo não é fazer uma análise detalhada de todo o documento, mas destacar alguns temas antropológicos presentes na Gaudium et Spes e estabelecer aproximações com diversos autores. O artigo é formado por oito seções, a saber: a Igreja e a solidariedade para com toda a família humana; o homem, um projeto a realizar; um mistério para si mesmo; o homem diante da existência e da finitude; o ser humano, escravo do pecado; o ser humano, um vocacionado por excelência; a sublimidade da vocação humana e deixar-se conduzir pelo deserto 

1. A Igreja e a solidariedade para com toda a família humana

João XXIII, após três meses da sua eleição para o ministério petrino, anunciou a celebração de um Concílio Ecumênico. Este anúncio foi para a Igreja o ponto de partida de um profundo questionamento, que desencadeou a transformação de suas estruturas. Na convocação ao Concílio, o Papa expressa o desejo de “pôr em contato o mundo moderno com as energias vivificadoras e perenes do Evangelho” (CONCÍLIO VATICANO, 1997, p. 10), pois acreditava que desta forma se poderia “dar à Igreja a possibilidade de colaborar mais eficazmente nas soluções dos problemas dos nossos tempos” (CONCÍLIO VATICANO, 1997, p. 12). Opondo-se aos “profetas das desventuras”, João XXIII, interpreta os acontecimentos presentes à luz do desígnio providente de Deus que tudo conduz para o bem maior da Igreja. 

Desse modo, a Igreja assume uma atitude de solidariedade com o gênero humano e dá passos na superação do pessimismo frente ao mundo moderno. Um texto fundamental para percebermos essa nova postura da Igreja frente a humanidade se encontra no discurso de inauguração do Concílio, nele o Papa afirma, “A Igreja sempre se opôs a estes erros; muitas vezes até os condenou com a maior severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais do remédio da misericórdia do que o da severidade. Julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina do que renovando condenações” (CONCÍLIO VATICANO, 1997, p. 28).

Para López (2013, p. 62), “se há algum documento que reflete melhor o espírito do Papa João XXIII e do Concílio Vaticano II, esse é Gaudium et Spes”. De fato, desde o início desta Constituição Pastoral o objetivo principal é manifestar a solidariedade com o gênero humano, ao ponto de afirmar magistralmente que, “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo”. E acrescenta, “Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração” (GS 1). Tal afirmação manifesta uma nova concepção, onde o dualismo entre sagrado e profano é superado. Ao assumir a realidade terrena como teológica, a Igreja se fundamenta na Encarnação do Verbo Divino, que ao assumir a condição humana, redimiu-a e levou-a a plenitude. 

Numa atitude de diálogo universal, o Concílio se dirige não apenas aos “filhos da Igreja”, mas a “todos os homens” (GS 2). Não se trata apenas de um gesto de aproximação, mas de coerência com a sua catolicidade. Iluminada pelo Evangelho, a Igreja, assume a atitude de serviço, como paradigma de toda a sua ação pastoral, a exemplo de Jesus, que “não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos” (Mc 10,45). No intuito de fazer-se solidária e colocar-se a serviço, a Igreja oferece o diálogo como instrumento de comunhão. 

A Igreja parte do conceito do ser humano criado a imagem e semelhança de Deus. Ela acredita que possui uma palavra singular na compreensão do ser humano, pois, ela anuncia o Homem em Plenitude, Cristo Jesus, como fonte de Salvação para todo o gênero humano. Nas sessões seguintes traremos algumas questões filosóficas que servirão como pano de fundo para expor o pensamento conciliar sobre o homem, frisando que as indagações e questionamentos são comuns.

2. O homem, um projeto a realizar 

O homem é um ser a caminho, ao contrário de todos os outros seres, ele tem uma história, um passado, um presente, um futuro.  É feito, mas também se faz. Ele é mais por aquilo que é chamado a ser do que por aquilo que já é. E enquanto caminha dando nome e sentido a tudo, ele também se realiza. Mas o homem também caminha com outros, com os quais é chamado a viver em fraternidade. Dentro de uma perspectiva antropológica, pode-se dizer que o ser humano é um projeto a realizar, recebeu a vida como dom, e como tal, é convidado a desenvolvê-la e torná-la dádiva de amor.

Quando o homem entender que Deus é amor (1 Jo 4,8) e que Jesus é o amor com que Deus nos ama, então entenderá a vocação e se porá a caminho. Perceberá que deve fazer uma caminhada no sentido de se tornar senhor do mundo a serviço de todos para humanizar-se desencadear todos os seus valores harmonicamente para personalizar-se, relacionar-se com os outros como irmão para irmão para socializar-se e especialmente, assemelhar-se sempre mais com o modelo de Jesus de Nazaré para cristificar-se.

O ser humano, porém, é o ser da incompletude, nunca estará pronto, mas sempre em busca de seu amadurecimento e crescimento humano e cristão. É um peregrino permanente e é nesta dinâmica de peregrino que ele é chamado a ser filho de um mesmo Pai, irmão de todos os homens e senhor do mundo. Para viver integralmente esse legado do Pai, necessita viver uma certa liberdade interior, isto é, a sua relação consigo mesmo seja tal que conheça e reconheça as suas potencialidades e limitações, percebendo-se pobre abandona-se em Deus como o único necessário de sua vida.

3. O homem, um mistério para si mesmo

A Gaudium et Spes recorda que o ser humano carrega em si profundos questionamentos sobre a sua existência, tais como: “Que é o homem? Qual o sentido da dor, do mal, e da morte? (...) Que pode o homem dar à sociedade, e que coisa pode dela receber? Que há para além da vida terrena?” (GS 10). A Igreja acredita que “a chave, o centro e o fim de toda a história humana se encontram no seu Senhor e Mestre” (GS 10). Deste modo o mistério do ser humano pode ser iluminado por Jesus Cristo, “imagem do Deus invisível e primogênito de toda a Criatura” (Col 1,15). 

Batista Mondin, em sua obra O homem quem, é ele? (1980, p. 7), referindo-se a T. H. Huxley, fala da interrogação que acompanha toda a humanidade em todos os tempos e que subjaz como problema que suscita o interesse de todos, qual seja, o lugar que o ser humano ocupa na natureza, e das suas relações com o universo. A pergunta de base que nos acompanha, qual o lugar que ocupamos na natureza, e qual o poder desta mesma natureza sobre nós mesmos, qual é o fim último para onde caminhamos? Em última análise a vida de cada ser humano girará em torno da resposta a essas perguntas.

O ser humano faz a experiência de existir, percebendo-se como criatura junto com outras milhares. Faz, ainda a experiência de não ser só no mundo, aliás seria impossível viver só. “Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer-lhe uma auxiliar que lhe corresponda” (Gn 2,18). Corroborando com isso, afirma a Gaudium et Spes

Deus não criou o homem solitário. Desde o início, ‘Deus os criou varão e mulher’ (Gn 1,27). Esta união constituiu a primeira forma de comunhão de pessoas. O homem é, com efeito, por sua natureza íntima, um ser social. Sem relações com os outros, não pode nem viver nem desenvolver seus dotes (GS 12). 

Aqui se manifesta a dimensão da alteridade, que encontra no diálogo o seu sentido. A minha personalidade se delineia na medida em que eu a comparo com o outro, a minha liberdade se define, quando considero a liberdade das pessoas com as quais convivo.

Martin Heidegger (2000), um dos eminentes expoentes do existencialismo, na sua obra sobre Kant e o problema da metafísica: 

Nenhuma época teve noções tão variadas e numerosas sobre o homem como a atual. Nenhuma época conseguiu como a nossa, apresentar o seu conhecimento acerca do homem de um modo tão eficaz e fascinante, nem comunicá-lo de um modo tão fácil e rápido. Mas também é verdade que nenhuma época soube menos que a nossa o que é o homem (Heidegger, 2000, p. 181, tradução nossa). 

Como se uma certa problemática trágica rondasse o homem nestes tempos sombrios. Desse modo, o homem, continua sendo um mistério para si mesmo, sobretudo, quando se coloca diante da questão da finitude da sua existência terrena. 

4. O homem diante da existência e da finitude

A vida se constitui, portanto, a propriedade mais evidente. Somos humanos enquanto vivos; Além deste princípio vital que chamamos vida, o ser humano também é um ser de inteligência, de afeto, também dotado de vontade que orientam e da qual brotam suas ações. Lamentavelmente há concepções equivocadas sobre a vida, reduzindo-se a um materialismo sem saída e infecundo. Nem tão mecanicista, nem vitalista. Neste sentido na concepção de Mondin (1983, p. 43): 

Conceber a vida de modo mecanicista ou vitalista significa iniciar a própria existência segundo regras éticas e religiosas diametralmente opostas. Por isso o estudo da vida dificilmente pode ser conduzido de modo frio, fragmentado desapaixonado - muito alta é a aposta em jogo. 

Daqui decorre que um discurso que devolva a vida a sua plenitude e originalidade implicará que a vida seja vivida, sentida e percebida na sua integralidade.

Muitos se equivocam quando pensam que as diversas explicações do mundo que se reduzem ao reino do homem com suas extravagâncias bastam, e que o mero gozar das coisas e dos bens materiais trará paz e a satisfação plena. A experiencia humana vai além do inebriamento e do aproveitar da matéria. É inspiradora a abordagem da Gaudium et Spes quando afirma que “Todas as conquistas da técnica, ainda que muitíssimas, não conseguem acalmar a angústia do homem. Pois a longevidade que a biologia lhe consegue não satisfaz o desejo de seu coração” (GS 18). O documento do Concílio sobre a esperança ainda aborda que “Diante da morte, o enigma da condição humana atinge seu ponto alto o homem não se aflige somente com a dor e a dissolução do corpo, mas muito mais com o temor da destruição perpétua” (GS 18). 

Há uma tendência bem difundida, que beira à insensatez, de que o homem não passa de um produto mais perfeito da matéria, levando a considerar que o incremento da técnica, seja suficiente para conceder à civilização hodierna o seu caráter. Na visão de Batista Mondin: 

O progresso da ciência, os regimes políticos, os sistemas filosóficos, todos contribuíram para criar esta mentalidade, à qual o homem é levado também por um forte instinto de negar qualquer valor aos indícios de uma realidade metafísica, para poder deixar-se levar mais tranquilamente ao gozo da realidade física (Mondin 1980, p. 19). 

O documento conciliar apregoa que: “O mundo moderno se apresenta ao mesmo tempo poderoso e débil, capaz de realizar o ótimo e o péssimo, por quanto se lhe abre o caminho da liberdade ou da escravidão do progresso ou do regresso da fraternidade ou do ódio” (GS 18). 

5. O ser humano, escravo do pecado

O homem é a obra-prima da criação, criado a imagem e semelhança de Deus, formado para partilhar de sua liberdade e felicidade, chamado a desenvolver-se como pessoa e a se realizar como ser humano. Entretanto, este ser tão maravilhoso, rico em potencialidades, capaz de fazer imaginar coisas grandiosas, capaz de relacionar-se, pensar o universo e transcender-se para o absoluto faz também a experiência de possuir uma dimensão “de não ser”, de lacuna, de fraqueza, de limitação e de escuridão capaz de afastar o homem de seus ideais mais caros, sonhos de felicidade, e especialmente capaz de abafar o ardente desejo que o homem tem de conhecer e relacionar-se com o seu Criador. Essa dimensão inerente a vida de todo homem nós a chamamos de pecado. Como afirma o apóstolo Paulo, “sabemos que a lei é espiritual, mas eu sou carnal, vendido como escravo ao pecado. Realmente não consigo entender o que faço: pois não pratico o que quero, mas faço o que detesto. Na realidade, não sou eu que pratico a ação, mas o pecado que habita em mim” (Rm 7,14-17).

Sesboüé, em sua obra, “O homem, maravilha de Deus”, destaca a irracionalidade do pecado, pois é uma destruição do desígnio de Deus. Segundo o autor, o pecado 

[...] não é criado por Deus. De certo modo, é não-ser, mas um não-ser que é a ausência do que deveria ser normalmente. Não é uma substância, quer dizer, uma realidade autônoma que vem de um princípio [...]. Ele é essencialmente perversão: desordem, desarticulação, deficiência, trevas (SESBOÜÉ, 2021, p. 184). 

O pecado é um obstáculo para o ser humano chegar a sua plenitude, pois é uma degradação da sua vocação mais sublime. 

O pecado quebra o homem em si mesmo. O pecado do homem fere o coração de Deus e fere o próprio homem, tornando-o agressivo, perverso e mau em todas as suas relações (Gn 6,5-6). O pecado e o mal habitam em todo e qualquer ser humano. Ser pecador é ser necessitado de Deus. Sentir-se pecador é uma graça. Deus retoma e restaura o coração na sinceridade arrependido (Lc 15,11).

O homem olhando seu coração, descobre-se inclinado para o mal e mergulhado em múltiplos males que não podem provir de seu Criador que é bom [...]. O homem destruiu a devida ordem em relação ao fim último e, ao mesmo tempo, toda a sua harmonia consigo mesmo, com os outros homens e as coisas criadas. Por isso o homem está dividido em si mesmo. Por isso toda a vida humana individual e coletiva, apresenta-se como uma luta dramática entre o bem e o mal (GS 13).

6. O ser humano, um vocacionado por excelência

Quando a bíblia fala da criação do homem e dá a mensagem de que Deus o fez a sua imagem e semelhança, aponta para a dignidade do homem e para o modo de viver do homem. Isso implica em dizer que a razão principal da sua dignidade consiste na vocação fundamental do homem para a comunhão com seu criador (GS 19). “Cremos que Deus nos escolheu antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis diante dele no amor” (Ef. 1,4).

O homem é um vocacionado por excelência. A vocação à vida religiosa é um chamado de Deus que exige uma resposta do homem. Deus é livre e fiel, entretanto, o homem é parcialmente livre e parcialmente fiel. Todo ato de salvação é uma opção humana. Há uma dimensão na nossa vocação que só nós podemos responder. Existe uma dimensão da vocação que depende totalmente do homem.

A qualidade da minha resposta vai depender do meu relacionamento como pessoa. Todos nós temos lacunas, temos que nos trabalhar seriamente, é um trabalho constante para toda vida. Todos nós temos a obrigação e a responsabilidade de fazer com que o Reino de Deus aconteça.

Se queremos assumir o Evangelho em profundidade devemos trabalhar a dimensão humana. A vida espiritual não pode ser desenvolvida desvinculada de uma base humana consistente, pessoal e diária.

Segundo Rulla (1987), a vocação cristã é o encontro de duas liberdades, aquela de Deus que chama, e a resposta do homem que responde sim ou não ao chamado. É o apelo de Deus ao homem para que coopere com sua aliança. Trata-se de um dom de Deus que possibilita ao homem responder por meio da ação vivificante do Espírito. O que Deus oferece não é imposição de uma lei, mas o seu encontro com a liberdade do homem, de maneira que este último possa caminhar para um mais pleno desenvolvimento de sua personalidade. Se Deus é que toma a iniciativa, logo temos que fazer a experiência de deixarmo-nos guiar por Ele. Permitir que Deus me experimente, viver uma certa insegurança inerente ao chamado, fazer a experiência de solidão de sentir-me abandonado, permitir que Deus nos conduza pelo “deserto”. “Eu mesmo conduzi-la-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração” (Os 2,16).

7. A sublimidade da vocação humana 

A Gaudium et Spes, antes de adentrar ao tema que se propõe, dedica o primeiro capítulo a dignidade da pessoa humana. Neste capítulo recorda a sublimidade da vocação humana e a semente divina que cada ser humano traz em si. A Igreja recorda ao ser humano a sua vocação universal a comunhão com Deus e fundamenta neste desígnio divino a sua dignidade. Ela afirma:

A razão mais sublime da dignidade do homem consiste na sua vocação à união com Deus. É desde o começo da sua existência que o homem é convidado a dialogar com Deus: pois, se existe, é só porque, criado por Deus por amor, e por ele, por amor, constantemente conservado; nem pode viver plenamente segundo a verdade, se não reconhecer livremente esse amor e se entregar ao seu Criador (GS 19).

Este parágrafo condensa diversos elementos antropológicos e teológicos, os quais queremos esmiuçar e colocar em diálogo com o místico espanhol. O tema da dignidade da pessoa humana aparece em João da Cruz envolto em sua teologia, para ele Deus é o “engrandecedor do ser humano”. Na sua obra Cântico Espiritual, se referindo ao desejo de Deus, afirma, “Nada deseja ele para si de tudo quanto fazemos ou sofremos, pois de nada precisa; e se de alguma coisa é servido é de que a alma seja engrandecida” (CB 27,1) [1]. Mas, no que consiste engrandecer o ser humano? Como isso é possível? João da Cruz explica, “Ora, não há maior grandeza para a alma do que ser igualada a Deus. Por isto, ele se serve somente do amor da alma, pois é próprio do amor igualar o que ama com o objeto amado” (CB 27,1). Portanto, a vivência do amor é a melhor expressão da dignidade humana. 

Na Oração da Alma Enamorada, o místico espanhol, exalta a ação divina como protagonista da grandeza do ser humano, pois ele não pode elevar-se por si mesmo. “Quem se poderá libertar dos modos e termos baixos se não o levantas tu a ti em pureza de amor, Deus meu? Como se levantará a ti o homem, gerado e criado em baixezas, se não o levantas tu, Senhor, com a mão com que o fizeste?” Esse protagonismo divino obtém a sua plenitude na Encarnação de Jesus Cristo, de onde tudo nos é dado. Para João da Cruz, em Cristo, tudo nos é dado. Então pode afirmar: 

Meus são os céus e minha é a terra; minhas são as gentes, os justos são meus, e meus os pecadores; os anjos são meus e a Mãe de Deus e todas as coisas são minhas; e o mesmo Deus é meu e para mim, porque Cristo é meu e todo para mim. Que pedes pois e buscas, alma minha? Tudo isto é teu e tudo para ti (D 26). 

Daí o convite a viver desde a dignidade que recebeu de Deus, “Não te rebaixes nem repares nas migalhas que caem da mesa de teu Pai. Sai para fora de ti e gloria-te da tua glória, esconde-te nela e goza, e alcançarás as petições do teu coração” (D 26). Neste pequeno escrito, o místico carmelita, ressalta que a dignidade do ser humano não é fruto do seu protagonismo pessoal, mas lhe é dada na relação com o seu Criador. O ser humano não pode elevar-se por si mesmo. É na relação com Deus que resplandece a verdadeira dignidade humana. O ser humano experimenta a Deus como um ser para si. 

O documento conciliar fundamenta a dignidade humana no chamado à comunhão com Deus. No magistério do Doutor Místico o tema ocupa um lugar central e aparece com expressões diversas, sempre indicando a plenitude da vida cristã: “união com Deus” (1S 1,3), “matrimônio espiritual” (CB 12,8), “via unitiva” (CB arg 2). O tema da união com Deus encontra-se em todas as obras sanjuanistas, como podemos verificar; Em Subida do Monte Carmelo afirma: “este livro trata de como poderá a alma dispor-se para chegar em breve à divina união” (S rot). Na obra Noite Escura, “explicação das canções que descrevem o modo que tem a alma no caminho espiritual, para chegar à perfeita união de amor com Deus, tanto quanto é possível nesta vida” (N rot). No Cântico Espiritual, “explicação das canções que tratam do exercício de amor entre a alma e Cristo, seu Esposo” (C rot). Na Chama Viva de Amor, “Explicação das canções que tratam da mais íntima e subida união e transformação da alma em Deus” (Ch rot). 

Como facilmente se faz notar a antropologia sanjuanista e a antropologia presente na Gaudium et Spes têm o mesmo horizonte. O objetivo da Gaudium est Spes não é apresentar uma reflexão apurada sobre o tema da comunhão com Deus. Aliás, aborda o tema quando trata das formas e causas do ateísmo moderno. Com isso, a Igreja defende que todo e qualquer ser humano traz em si um chamado para uma relação com o seu Criador. O coração humano continuará inquieto longe de Deus. Mais elementos para propor uma antropologia teológica podemos encontrar no místico carmelita. 

Na pedagogia sanjuanista é importante ter presente a meta para a qual nos destinamos, após esse dado central, então, podemos estabelecer o caminho a ser percorrido. Se a meta é a comunhão com Deus não podemos esquecer que em relação ao ser humano, Deus é totalmente outro. Assim, “Deus é o totalmente transcendente e, portanto, inabarcável para a linguagem e a capacidade humana” (ALVAREZ-SUAREZ, 2009, p. 1195). 

8. Deixar-se conduzir pelo deserto

Uma autêntica experiencia de Deus nos abriga continuamente a ultrapassar a porta de nossa inteligência e da pretensão de entender tudo, de se ter o controle da situação e de agir apenas quando temos certeza absoluta, do que é certo e evidente. Temos que superar os entraves que colocamos em nosso caminho espiritual. Cencini (1989) fala de uma “fase subliminal”. O termo subliminal, embora de difícil explicação, significa superamento implica em “[...] aceitar aquela grande purificação necessária para o encontro com Deus renunciando aos falsos deuses [...] nenhuma experiencia do divino é possível sem a experiência da subliminalidade” (CENCINI, 1989, p. 105). 

Ainda, nas palavras de Cencini (1989, p. 110): “Encontramo-nos todos num deserto e caminhamos para Deus” e no deserto o protagonista é Deus e não um homem, é Deus quem procura o homem, afasta-se de seus cálculos, de seus costumes, sonhos, prepotência. No deserto não é o homem que faz experiências de Deus antes é Deus que faz a experiência do homem, busca-o, prescruta-o, põe-no à prova. Porém, insiste Amedeo Cencini (1989) que precisa ficar bem claro onde colocamos nossa confiança, e qual o verdadeiro “[...] sentido de nossas expectativas, porque o deserto é um lugar desalmado que manda de volta quem nele entrou sem se ter preparado, ou se entrou com falsas esperanças” (CENCINI, 1989, p. 110). “Agradeçamos ao senhor que nos põe à prova como a nossos pais” (Jt 8, 25).

Somos convidados a fazer a experiência de Moisés em nossas vidas. A figura de Moisés é emblemática dentro da perspectiva do itinerário. Ele viveu uma história de salvação, e percorreu ele mesmo o itinerário junto com seu povo. Itinerário esse que todos percorremos na noite de Páscoa que é a noite da igreja, a noite do cristão, a noite em que passamos o mar vermelho.  Nas palavras de Martini (1985, p. 12), Moisés é

[...] o homem que passou de uma experiência a outra em sua vida, entre grandes, dolorosos, e verdadeiramente perturbadores acontecimentos; o homem que passou e fez seu povo passar de uma experiência outra, o homem que está ligado com toda a sua vida à iniciativa da passagem de Deus, da Páscoa de Deus.

No deserto Moisés aprendeu que não se pode impor a Deus o próprio passo, sob pena de fracassar. A questão fundamental é que na disponibilidade ao mistério de Deus não se pode entrar marchando triunfalmente - quem quiser ganhar inicialmente deve aprender a entregar e essa dinâmica do perder e perder-se leva o homem a experimentar a crise e a provação. Com efeito, nos diz ainda Cencini (1989, p. 113): 

[...] é na provação que vem à tona o que realmente temos no coração, o que é e o que não é autêntico. Ou seja, a provação revela nossa verdadeira fisionomia: nossos apegos a nós mesmos, ao nosso bom nome, aos sucessos, as pessoas e as coisas. [...] Não existe verdadeiro conhecimento de Deus que não nasça da solidão de um deserto e não amadureça entre as dificuldades da provação. 

Para o Cardeal Martini (1985, p. 54):

Moisés representa aquela insegurança do seguimento de Jesus que se refere aos que aceitam o desafio de uma vida evangélica, visto que esta como vida evangélica é uma bofetada para o mundo e uma bofetada para todas as nossas tentativas de salvar-nos – construindo-nos recantos de tranquilidade. 

Na verdade, o que as pessoas querem é estarem bem, gozando da maior quantidade possível de bens de toda ordem para seu próprio prazer e consumo.

João da Cruz chama essa dimensão da vida espiritual de “noite escura da alma”. A noite escura pode ser entendida como o caminho de purificação que nos permite “sair da casa da escravidão” para chegar à “terra prometida”. A noite escura é uma ação de Deus que desestabiliza o homem para que ele desperte para uma realidade maior. Desse modo deixa de viver uma existência egoísta, centrada em seus instintos e desejos, para uma dimensão altruísta, capaz de amar e se deixar amar. 

Considerações finais

Muitas são as pessoas que desejam fazer uma caminhada profunda na vivência do Evangelho, mas não poucas, apesar dos ingentes esforços e das múltiplas tentativas, não conseguem, e por quê? Não trabalham suficientemente a sua dimensão humana. Se a pessoa não se conhece tende a concentrar-se somente em si mesma e não é capaz de transcender-se. Aqui se coloca o desafio de superação de uma transcendência egocêntrica, que saindo de si busca a si mesmo. Ou, ainda de uma transcendência filantrópico-social, que ao sair de si restringe-se ao grupo, para uma transcendência teocêntrica, onde Deus é o centro, encontrar-se com ele e a sua bondade.

O seguimento de Jesus Cristo exige viver valores auto transcendentes teocêntricos e não permanecer apenas na autotranscedência egocêntrica ou filantrópico-social. E como chegar a autotranscedência teocêntrica sem evangelizar meus mecanismos humanos (ou desumanos) para poder perceber a real dimensão do amor gratuito e incondicional de Deus para cada um de nós? Portanto, o caminho será aquele de conhecer minha realidade humana pessoal com seus condicionamentos; aceitá-la em sua realidade factual (na minha história), sem negá-la e nem exorbitar suas reais dimensões; assumi-la de forma positiva e decidida para poder transformá-la.

Os seres humanos possuem a capacidade e o poder de apoderar-se das coisas da natureza, subtraindo-as dos dados dos sentidos. O homem pode chegar a usar símbolos e a linguagem simbólica - que também são e sempre serão impossíveis para os animais. Neste nível entra a dimensão do pensar, raciocinar, necessidade de relação com o absoluto. É neste nível que as pessoas serão capazes de viver os valores do Evangelho. Nós somos levados pelas motivações. As motivações fazem misérias de nossa vida: nós só caminhamos se temos motivos para caminhar; nós só mudamos se temos motivos para mudar; nós só nos convertemos se temos motivos para convertermos.

Aqui também se coloca a categoria do desejo em nossa vida. Os desejos possuem o papel de dilatar a alma e abrir o coração, por isso, o cristão é um ser desejante. Não somos medidos apenas pelo nosso passado, e suas conquistas, mas também, e, sobretudo, pelos nossos desejos e projetos. Junto com o desejo, se coloca ao lado a irmã esperança, enquanto a mola da vida, e por isso não nos cansamos de desejar e esperar. Porém, não se trata de qualquer desejo, mas aquele que plenifica a pessoa. Somos um oceano de desejos, porém, nãos se trata de qualquer desejo, que de modo tumultuado e desordenado, pode nos arruinar e nos destruir. Neste sentido, a autenticidade, nossa capacidade de amar passa pela ordenação de nossos desejos, sentimentos e emoções. Na dimensão cristã e de fé, uma das formas privilegiadas de ordenação e purificação dos desejos é a oração. Ela desempenha um papel fundamental também na iluminação e no discernimento. A oração não apaga os desejos, mas os purifica e os eleva.

A esperança teologal é um dom divino, pois é Deus quem suscita no homem a tendência ativa e o desejo ardente de tender para Ele. Além disso, o objeto da esperança é o próprio Deus, supremo bem do homem. Deste modo a esperança capacita o homem para amar e buscar a Deus pela fé e caridade. Essas três virtudes ao mesmo tempo que expressam o dinamismo teologal da vida cristã, permitem ao homem uma abertura ao Transcendente, as realidades futuras e aos outros seres, salvando-o de um ensimesmamento estéril. 

Referências

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[1] Para as obras de João da Cruz utilizamos a seguintes abreviaturas: S (Subida do Monte Carmelo); N (Noite Escura); CA (Cântico Espiritual A); CB (Cântico Espiritual B) e Ch (Chama Viva de Amor), D (Ditos de Luz e Amor); rot (rótulo ou título explicativo da obra).