Glaucio Alberto Faria de Souza
Doutor em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor da Faculdade de Filosofia e Teologia Paulo VI. Contato: gafsteologo@gmail.com
Resumo: Esta pesquisa tem como objetivo fazer uma simples homenagem ao teólogo e amigo José Maria Castillo. Seu pensamento, baseado na humanização de Deus, dialoga com muitos temas teológicos, mostrando-se profundamente atual e capaz de promover uma verdadeira interação da fé cristã com os dilemas enfrentados pela sociedade contemporânea. O tema desta reflexão, ser cristão é seguir à Jesus, tem como objetivo tocar a realidade de um modelo de cristianismo que cresce a cada dia, aquele focado nas práticas religiosas, nas piedades, na sacramentalização, oriundo de um tradicionalismo fundamentalista. A intenção não é a de analisar esse fenômeno, mas de indicar o Evangelho e a metáfora do seguimento como essência do cristianismo, baseado nas intuições do teólogo granadino.
Palavras-chave: Crise; tradicionalismo; Evangelho; Jesus; humanização.
Abstract: This research aims to pay a simple tribute to the theologian and friend José Maria Castillo. His thought, based on the humanization of God, touched on many theological themes, proving to be deeply current and capable of promoting a true interaction between the Christian faith and the dilemmas faced by society today. The theme of this reflection, being a Christian is following Jesus, aims to touch on the reality of a model of Christianity that grows every day, one focused on religious practices, pieties, sacramentalization, originating from fundamentalist traditionalism. The intention is not to analyze this phenomenon, but to indicate the Gospel and the metaphor of following as the essence of Christianity, based on the intuitions of the Granadan theologian.
Keywords: Crisis; traditionalism; Gospel; Jesus; humanization.
José Maria Castillo é considerado um dos profetas do nosso tempo, seu pensamento e sua vida se misturam, sua reflexão teológica sensível se mostra atual, deixando claro que a sua teologia não deve ser confundida com sistemas racionais abstratos, seu labor nasce das preocupações e esperanças do povo.
No entanto, o certo é que a cada dia tenho mais entusiasmo, mais esperança e também mais vontade de fazer algo (por pouco que seja) para que haja menos sofrimento neste mundo. E que, não só para aliviar (de alguma forma, pelo menos) aqueles que passam os piores momentos da vida, mas também porque, se acredito e acredito em Jesus e na sua mensagem, não entendo nem posso entender de outra maneira o que é fazer teologia. (CASTILLO apud BOSCH, 1999, p. 195-196, tradução nossa).
Definitivamente, Castillo é um homem do povo, de uma teologia popular, por isso, sua escolha epistemológica privilegiou a narratividade, com a intenção de relacionar a vida pulsante presente nas páginas do Evangelho com o intelecto e coração dos seus ouvintes, propiciando uma relação fundamental para os dias de hoje, a associação do ser cristão e ser cidadão, ou seja, da aplicabilidade da mensagem cristã nas questões da vida. Posto isto, Castillo priorizou os ensinamentos de Jesus contidos nos Evangelhos, que antes de serem textos religiosos, são textos sobre a vida.
Castillo exibe uma Teologia ancorada na pessoa de Jesus de Nazaré, ele pensa a partir da humanização de Deus, recuperando a memória de Jesus, sua ética desconcertante que inverteu a lógica do sistema religioso e político do seu tempo. O teólogo granadino abordou muitos temas teológicos como o da oração, os ministérios na Igreja, os sacramentos, o Reino de Deus, os direitos humanos, a ética entre outros. Nesta reflexão, o foco estará na metáfora do seguimento, pois somente na luminosidade do Evangelho e no mover-se de Jesus que encontramos o essencial do cristianismo.
As transformações sociais, econômicas e culturais desde o século XIX impuseram desafios às grandes tradições de pensamento. O cristianismo, configurado como religião de Tradição, é afetado por essas mudanças, especialmente pela modernidade e pós-modernidade. Embora, o conceito de pós-modernidade não seja de fácil assimilação, pode-se compreendê-lo como um processo de continuas transformações, marcado pelo fim das grandes narrativas e, por conseguinte, o enfraquecimento das instituições, inclusive das religiosas.
Além desse enfraquecimento, juntam-se uma série de adversidades sociais que o Papa Francisco nomeia como sombras de um mundo fechado (FT, 9).[1] Em sua visão, o pontífice argumenta que a sociedade não foi capaz de aprender com as tragédias do século XX, já que atualmente percebe-se uma regressão humana na capacidade de diálogo, convivência e solidariedade. Infelizmente, inaugurou-se um movimento global de nacionalismos fechados, ressentimentos e agressividades, resultado de uma perda da consciência histórica, de uma tentativa de alienação, baseado no apagamento de uma tradição, por conseguinte, de uma consciência moral e, por fim, de uma instrumentalização ideológica, econômica e política.
Neste cenário, os temas da justiça, da liberdade e da democracia são enfraquecidos, gerando desconfiança e enfraquecimento dos laços sociais, visto que, estão sendo utilizados para a manipulação da sociedade (FT, 14). Para a historiadora americana, Rosalind Williams (2015, p. 50-59. In CASTELLS; CARDOSO; CARAÇA), a sociedade está mergulhada num processo de crises contínuas, denominado como o “apocalipse incessante da história contemporânea”. Embora, o termo crise esteja saturado, faz se necessário compreendê-lo. Na obra A crise e seus efeitos: As culturas econômicas da mudança, conclui-se que a crise econômica gesta um processo evolucionário, que atinge as estruturas da sociedade, como se fosse, metaforicamente, uma infecção.
Uma vez imposta a lógica estrutural dessa economia global em rede, enraizada no mercado financeiro, os mecanismos econômicos foram responsáveis tanto pela sua expansão como pelo seu colapso. Contudo, as consequências da crise econômica afetaram profundamente a cultura e as instituições de todas as sociedades. De fato, no processo, a crise transformou-se de financeira em econômica, e de econômica numa crise institucional que ultimamente conduziu a uma crise cultural, caracterizada pelo fim da confiança e por uma crise social multidimensional que se manifestou com o fim da solidariedade social. (CASTELLS; CARDOSO; CARAÇA, 2015, p. 124).
Neste contexto de insegurança social e crescente desconfiança, o cristianismo católico manifesta um retorno ao tradicionalismo fundamentalista, vinculado à ascensão da ultradireita política. Para João Décio Passos (2020, p.239), a relação entre esses dois grupos é algo evidente, ambos estão ao lado de regimes autoritários, destilam violência e se autoproclamam como baluartes da verdade. Em virtude dessa relação, não é incomum, verificar o apoio de cristãos às pautas contrárias ao Evangelho, como a defesa de armas de fogo, a luta contra os direitos humanos, a idolatria do dinheiro e a defesa pública da mentira, por meio da proliferação das falsas notícias.
Embora, o tema do tradicionalismo mereça uma atenção especial, essa reflexão não se ocupará desta temática, a intenção é a de responder a seguinte questão: Será que o retorno às velhas práticas piedosas, os dogmatismos, a ritualização e a sacramentalização, são suficientes para estabelecer um verdadeiro diálogo com a sociedade? Será que esse tipo de cristianismo reflete o projeto de Jesus de Nazaré e é capaz de ajudar a construir uma sociedade samaritana? Não se trata de questionar o valor da piedade, dos sacramentos, dos ritos e dogmas, mas de pensar teologicamente, se esse modelo de retrocesso, está em consonância com o Evangelho e se é capaz de responder às demandas citadas acima.
Na perspectiva de José Maria Castillo, essa postura de retorno às práticas religiosas não é efetiva para o momento atual, pelo contrário, elas expressam a constatação de que há contradição em curso entre o cristianismo e o Evangelho. Para o teólogo granadino, o cristianismo será sempre atual se deixar a perspectiva do poder, fomentando uma existência baseada no estilo de vida de Jesus de Nazaré. Neste caso, e somente neste, o cristianismo cumprirá a sua missão de sedução, ou seja, de conclamar todas as pessoas a entrarem num modelo de vida, denominado como seguimento.
A fonte do seguimento de Jesus se encontra nos Evangelhos, por essa razão, faz-se necessário o retorno a boa nova, com a intenção de recuperar a memória de Jesus, para que “[...] nos leve a viver com o mesmo espírito com o qual Ele viveu sua humanidade, e assim nos ajude a encontrar-nos com o Deus vivo do Reino cujo serviço entregou sua vida inteira.” (LUCIANI, 2017, p. 8, tradução nossa). Voltar ao Evangelho, partindo da humanidade de Jesus como fonte de humanização, propiciará à Igreja manifestar-se como sacramento universal da salvação integral, por meio de um estilo de vida profético, e não somente como uma instituição religiosa, distanciando-se do rigorismo, do dogmatismo e das normas religiosas vazias. De acordo com Pagola (2022, p. 13):
O vazio interior do cristianismo de hoje é deplorável. A partir, principalmente, da Contrarreforma, e devido a vários fatores, a fé se reduziu, em grande parte, à aceitação de um conjunto de doutrinas. Muitos cristãos ainda pensam que a fé consiste simplesmente em acreditar em coisas difíceis de entender, mas que temos de aceitá-las para sermos cristãos e sermos salvos. Essa forma de entender e viver a fé está arruinando a vida cristã de muitos, esvaziando-a de toda a experiência interior de Deus.
Rafael Luciani, por sua vez, afirma:
[...] caímos na tentação de viver uma fé desfigurada, vazia, que permaneceu no culto e na devoção, como se estes fossem atos mágicos que substituem a relação pessoal com Deus e com o irmão. Uma religião sem religiosidade; um deus sem rosto. (LUCIANI, 2015, p. 6).
Para Maria Inês de Castro Millen, a recuperação da memória de Jesus previne contra o dogmatismo, o rigorismo e a tentação da rigidez dos sectários tradicionalistas. Visto que, o resgate da dignidade humana passa pelo viés da bondade, da esperança do cuidado e da hospitalidade sanadora. “Precisamos acreditar no caminho da bondade, que nos aproxima da humanidade e da divindade de Jesus, modelo para nossa melhor realização como pessoas. Com Jesus, a ideia da não violência está definitivamente inscrita na humanidade.” (MILLEN In: TRASFERETTI; COELHO; ZACHARIAS, 2021, p. 79).
Para Castillo, o cristianismo de verdade passa pela compreensão e vivência do Evangelho. Ele está seguro de que a proposta de Jesus é atual para toda humanidade, pois a boa nova, revela-se como a resposta de Deus aos dilemas humanos, portanto Jesus está distante de um religioso cumpridor de normas ou ritos. “A religião de Jesus é a religião das ‘boas pessoas’. [...] as pessoas que contagiam com respeito, a tolerância, a estima, o bem-estar, a paz, a felicidade e o carinho.” (CASTILLO, 2016, p. 36),
Na obra, a Boa-nova de Jesus, Castillo salienta que no começo dos sinóticos, mais especificamente na tradição do evangelista Marcos (1-15), percebe-se que a inauguração das ações de Jesus não aconteceu no templo e nem na cidade. O local escolhido foi o deserto, junto às pessoas, como alguém que pertence ao povo, ali o céu se abriu. No anúncio da chegada do Reino, vê-se a inauguração de um novo tempo, distante dos interesses dos poderosos, mas alinhado com o coração gracioso de Deus.
Portanto, quando Jesus dizia “o reino de Deus está próximo”, estava dando uma boa notícia, pois isso queria dizer que Deus vai estabelecer a justiça no mundo. Essa justiça significa que Deus vai defender os pobres e humildes; e vai colocar-se do lado daqueles que não podem defender-se por si mesmos, que isso é “fazer justiça” conforme as tradições do antigo Oriente. (CASTILLO, 2016, p. 50).
O retorno ao Evangelho significa regressar a Jesus de Nazaré, a sua humanidade, ao seu estilo de vida que se expressou por meio do amor solidário. Esse retorno está ligado ao projeto do Reino de Deus, já que, este, ocupa lugar central no Evangelho. Com essa afirmação, Castillo salienta que a mensagem de Jesus não está centralizada em Deus, nem numa doutrina, mas numa forma de atuar, capaz de responder aos anseios humanos, gerando esperança, por meio de uma vida comprometida com o perdão, a misericórdia e o amor. Embora, o Reino possui sua dimensão transcendental, ele só pode ser compreendido adequadamente junto às condições humanas mais básicas. Em outras palavras: “[..] o Reino de Deus se manifesta, primordialmente, em dar vida.” (CASTILLO, 2010b, p. 73, tradução nossa).
A centralidade do Evangelho na vida cristã é urgente, pois o Evangelho testemunha que Deus assumiu a condição humana até o ponto mais extremo e pleno. Portanto, a humanização de Deus refere-se à singularidade da humanidade de Jesus, que exprime uma nova forma de viver a condição humana, atenta aos gritos silenciosos daqueles que sofrem, como fez o samaritano no caminho de Jericó (Lc 10,25-37).
O resgate do sentido humanizador do Evangelho se faz necessário enquanto prática crítica (ética de mudança) neste momento de tantos desajustes, injustiças e perda dos laços que nos une como seres humanos. O Evangelho realça um projeto humanizador em razão da sua vinculação entre humanização e o Reino de Deus, que desvela uma nova experiência do sagrado [...]. (SOUZA, 2024, p. 147).
Para muitos cristãos, o tema do seguimento de Jesus ainda é um mistério. Percebe-se uma redução do cristianismo às práticas religiosas, em que a relação com Deus, normalmente, está ligada ao cumprimento de normas. Para Castillo (2021), essa confusão acontece quando se transforma o Evangelho em uma peça da religião, neste sentido, o teólogo espanhol é enfático: o “Evangelho não é religião.”
Essa questão é fundamental, uma vez que, o tradicionalismo emergente resgata muitos aspectos religiosos, desembocando nas mesmas práticas da época de Jesus, pautado por um universo religioso distante da realidade da vida. Esse contexto de religiosidade imóvel foi alvo das falas de Jesus: “[...] Misericórdia quero, e não sacrifício.” (Mt 9,13). Essa questão é relevante, pois a misericórdia não é uma prática religiosa, ela é fruto de uma relação profunda com Deus e expressão de fidelidade à aliança (CARTER, 2002, p. 292).
Jesus inverteu a lógica do contexto religioso do seu tempo, colocando a misericórdia no centro, dando prioridade a bondade e a restauração da esperança perdida. Tendo como pressuposto essa orientação evangélica, a metáfora do seguimento de Jesus expressa a fé autêntica, a permanência do discípulo junto ao mestre. Castillo afirma que a “fé se realiza em profundidade definitiva só mediante uma orientação total a Jesus” (CASTILLO, 1987, p. 16).
Mas, o que significa o seguimento? Em primeiro lugar, seguir refere-se à proximidade, por isso, o cristão deve colocar o Evangelho no centro da vida. Na língua grega, o verbo ákolouzein indica proximidade, amizade, relação baseada no amor. Nos Evangelhos, verifica-se o convite de Jesus aos seus discípulos a assumirem esse tipo de relacionamento (Mt 16,24; Mc 8,34; Lc 9,23). Já, a relação distante é compreendida como negação da fé, como no caso de Pedro (Mt 26,58).
Num segundo momento, o verbo seguir indica movimento orientado, no caso, pelas ações e palavras de Jesus. Trata-se de movimento, de não estar preso a lugares, a situações e a normatizações. Conforme o quarto Evangelho, Jesus é o caminho, não no sentido literal, mas, como modo de vida a ser assumido, caracterizado pela disponibilidade, capacidade de mudança, desinstalação e um movimento de saída. O contrário do seguimento de Jesus, mesmo que esteja repleto de práticas religiosas, é a imobilidade, ausência de movimento ou movimento apenas por interesses pessoais. A imobilidade torna-se um obstáculo ainda maior, quando se juntam os aspectos políticos aos religiosos, já que conservadorismo político e tradicionalismo são amigos íntimos, pois, “quem é conservador em política é também em religião” (CASTILLO, 1987, p. 21-23).
Sem dúvida, o mais difícil da vida é mudar os próprios critérios, os próprios valores e os próprios sistemas de interpretação. Acima de tudo, quando esses critérios, esses valores e esses sistemas de interpretação são vistos como "canonizados" e sacralizados pela religião. Porque então, o imobilista confunde a sua própria teimosia com os desígnios que ele pensa que vem de Deus. Daí, a enorme dificuldade de se converter ao evangelho uma pessoa profundamente religiosa. [...], muitas vezes, os mais incapazes para seguir a Jesus são aqueles que já sabem tudo o que precisavam saber em questões de religião. (CASTILLO, 1987, p. 27).
Portanto, a metáfora do seguimento, fundamentada nos Evangelhos, significa a adesão do cristão ao modelo de vida de Jesus e ao seu projeto do Reino de Deus, devendo ser compreendida como essência do cristianismo.[2] Por conseguinte, o seguir à Jesus, é o caminho para a superação dos fechamentos religiosos, manifestados por visões fundamentalistas e violentas. Para Castillo (2015, p. 426), a associação de Deus à violência é uma questão muito séria, podendo ser considerada como uma inversão diabólica da grafia de Deus. Em sintonia com esse pensamento o Papa Francisco (2022) afirma que:
Quando se usa violência, nada mais se sabe sobre Deus, que é Pai, nem sobre os outros, que são irmãos. Esquece-se a razão pela qual se está no mundo e chega-se a realizar absurdas crueldades. Vemo-lo na loucura da guerra, onde se torna a crucificar Cristo. Sim, Cristo é pregado na cruz mais uma vez nas mães que choram a morte injusta de maridos e filhos. É crucificado nos refugiados que fogem das bombas com os meninos no braço. É crucificado nos idosos deixados sozinhos a morrer, nos jovens privados de futuro, nos soldados mandados a matar os seus irmãos. Hoje, Cristo está crucificado aí.
A conexão de Jesus à violência é uma perversidade teológica e humana, nela, muitos cristãos, desinformados sobre o Evangelho, apoiam discursos políticos alinhados à defensores da tortura humana, se esquecendo que o próprio Jesus foi considerado inimigo e vítima de um sistema opressor. O apoio a esse tipo de prática, que visa destruir vidas, sonhos, dignidades e a esperança, é o oposto do mover-se de Jesus, escancarando-se como uma verdadeira contradição teológica. Essa contradição, para Castillo (1987, p. 73), mostra-se como alienação da fé, uma perda progressiva da consciência dos fundamentos e da percepção da realidade, impedindo o processo de maturidade humana, a tomada da consciência do ser cristão nos moldes do seguimento.
Uma questão importante emerge desta reflexão: Como superar essa alienação da fé e responder as demandas no século XXI? Como ultrapassar a falsa religiosidade que cultua a Deus no templo e desconsidera a vida dos mais frágeis da sociedade? Embora a questão seja complexa, José M. Castillo (1987, p. 79), aponta o caminho do seguimento de Jesus como forma de superação deste modelo de cristianismo mofado, marcado por uma mística sem compromisso. Para ele, o projeto vivido por Jesus aponta para outro caminho, algo muito mais profundo e exigente, coerente com a defesa da vida.
O verbo seguir aparece noventa vezes no Novo Testamento, sendo oitenta e nove nos Evangelhos e setenta e três vezes fazendo referência direta à pessoa de Jesus, ou seja, havendo uma verdadeira identificação entre o verbo seguir e a pessoa de Jesus. Por isso, seguir a Jesus não é a mesma coisa que seguir uma ideologia, seja ela qual for, pois todas as ideologias são princípios, normas e modelos teóricos, que podem estar alinhados há alguns pontos da prática de Cristo, no entanto, vale lembrar que o Evangelho possui a última palavra.
Como já foi dito anteriormente, o seguimento é uma adesão ao estilo de vida de Jesus, é mover-se no espírito que conduziu Jesus em sua vida, a esse mover-se a Teologia chama de espiritualidade. Na obra, La espiritualidad de los laicos, Juan Antonio Estrada (1992), diz que a espiritualidade é a vida guiada pelo Espírito de Cristo. Assim sendo, o seguimento é adesão pessoal à Jesus e ao seu projeto. Já, a espiritualidade é o mover-se na vida orientado pelo Espírito, o mesmo que guiou o mover-se de Jesus. Neste sentido, percebe-se uma profunda relação entre o seguimento, a espiritualidade e a ética.
Castillo (1987, p. 91), entende que o seguimento se transforma numa espiritualidade comprometida, em razão de que a “fidelidade a Jesus não consiste na fidelidade a uma teoria, nem na fidelidade a uma piedade intimista e subjetiva, sim na fidelidade a uma práxis [...].” Destarte, verifica-se uma relação do seguimento de Jesus com uma postura ética, não qualquer tipo de ética, mas aquela que desconcerta, provoca mudanças e desinstala ao ponto de escandalizar os mais religiosos.
No ambiente de crise trazida pelos ventos de uma mudança de época, num mundo preso a ditadura do capitalismo, dominado pelas forças econômicas mundiais, por ideologias que se apoiam somente num discurso de segregação e violência. O sociólogo Alain Touraine (2009), conclama a sociedade a pensar de outra forma, repensando o discurso interpretativo dominante, mudando o que deve ser mudado para que a vida floresça. Essa realidade é um espaço que o cristianismo deverá ocupar, baseado no seguimento de Jesus, na ética desconcertante do mestre de Nazaré.
A ética de Jesus “foi enormemente crítica quanto a muitas coisas que funcionavam mal em seu povo e em seu tempo” (CASTILLO, 2010a, p. 23). Não somente criticou, mas ofereceu resposta, ofertou os valores do Evangelho como resposta as cegueiras humanas. Sua ética visava se juntar ao clamor daqueles que sofrem, a construir respeito, tolerância, defesa da vida, “[...] de maneira que se torne insuportável para todos nós a dor das vítimas, a humilhação dos que andam pela vida sem rumo e sem esperança. Trata-se, definitivamente, de ser sensível ao que todos nós aspiramos: justiça, paz, esperança e alegria [...].” (CASTILLO, 2010a, p. 23-24).
Em última instância, seguir a Jesus, baseado na prática do mestre de Nazaré, é colocar a vida no centro e não a religião, conforme relata o texto de Mc 2,27: “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado.” Para Gnilka (1986, p. 14), não há dúvidas entre a observância religiosa e o amor ao ser humano, primeiro o amor! A vida está em primeiro lugar, seguir a Jesus é defender a vida dos seres humanos, independente da sua cor, raça, gênero, religião, não antepondo nada ao amor e ao cuidado, estendendo-se a todas as criaturas do planeta, rebaixando toda e qualquer diferença.
Pois bem, para tornar mais claro esse complicado assunto, o primeiro fator que se deve ter presente é que a diferença é um fato (político, econômico, social, cultural, religioso ...), ao passo que a igualdade é um valor ou, talvez mais exatamente, um direito. Por isso, a “diferença” é um termo descritivo, ao passo que a “igualdade” é considerada um termo normativo. (CASTILLO, 2010a, p. 119).
A crise em curso na sociedade global permite o ressurgimento de grupos de ultradireita e do crescimento do conservadorismo. Esses grupos reacionários estão presentes nas redes sociais, nas paróquias e em vários setores da sociedade, afinal estamos diante de um fenômeno social. Como já foi dito anteriormente, este texto não visa analisar este fenômeno, mas caracterizá-lo como contradição ao seguimento de Jesus, em razão de que esse tipo de conservadorismo reacionário, mostra-se como negação, estagnação do Evangelho, restrito ao cumprimento de normas, revelando um modelo eclesiológico centralizado na manutenção das estruturas e no reforço da instituição, por meio de códigos e leis rigorosas, não deixando muito espaço para a preocupação com os pobres, ao mesmo tempo que indica o esquecimento do Deus revelado por Jesus.
Como resposta ao desafio do fechamento do cristianismo, o texto propôs um retorno ao Evangelho, com a intenção de recuperar a memória de Jesus, para viver com o mesmo espírito com o qual Ele viveu sua humanidade, movendo-se na dinâmica do seguimento de Jesus. Num movimento de saída, de encontro, de diálogo com todos, com uma ética desconcertante e crítica, radicada no projeto do Reino de Deus na história, fundamentado na dinâmica do Espírito Santo, por meio do profetismo, e não somente como uma instituição religiosa, distanciando-se do rigorismo, do dogmatismo e das normas religiosas vazias e aproximando de uma prática amorosa e hospitaleira.
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[1] A Carta encíclica Fratelli Tutti. Sobre a fraternidade e a amizade social será citada pela sigla – FT.
[2] O desejo de retornar à essência do cristianismo é uma preocupação da teologia moderna e surge da percepção de que alguns elementos da fé originária não estão presentes de forma adequada na reflexão atual da Igreja. Seguem alguns exemplos deste esforço de retorno à fonte: GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Olegário. La entraña del cristianismo. Salamanca: Secretariado Trinitario, 1997; LAÍN ENTRALGO, P. El problema de ser cristiano. Barcelona: Galaxia Gutenberg, 1997; KÜNG, Hans. El cristianismo. Esencia e historia. Madrid: Trotta, 1997; FORTE, Bruno. La esencia del cristianismo. Sígueme, Salamanca 2002; LABOA, J. M. Cristianismo. Madrid: San Pablo, 2003; ARMENDÁRIZ, L. M. Ser cristiano. Madrid: San Pablo, 2003; MALDONADO, L. La esencia del cristianismo. Madrid: San Pablo, 2003; MALVIDO, E. Credo de un cristiano de hoy, Madrid: San Pablo, 2000; SESBOÜÉ B., Creer. San Pablo: Madrid 2000; GUARDINI, Romano. La esencia del cristianismo. Verbo Divino, Estella 1982; ADAM, Karl. La esencia del catolicismo. Barcelona: Editorial Litúrgica española, 1955; SCHMAUS, Michael. Sobre la esencia del cristianismo. Madrid: Rialp, 1952; RAHNER, Karl. Curso fundamental sobre la fe. Introducción al concepto de cristianismo. Barcelona: Herder, 1979.