Rosangela Florczak de Oliveira
Doutora em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professora e atual Decana da Escola de Comunicação, Artes e Design, da Graduação em Teologia e PPG em Teologia da da pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Contato: rosangela.florczak@pucrs.br
Juliana Vencato de Oliveira
Mestra em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Contato: juliana.vencato@edu.pucrs.br
Joel Sávio
Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Contato: Joel.savio@edu.pucrs.com
Resumo: O Concílio Vaticano II abriu caminho para uma profunda renovação eclesial. Um dos movimentos marcantes foi o reconhecimento da comunicação como um relevante elemento da missão evangelizadora da Igreja. Este artigo analisa os avanços inaugurados pelo Decreto Inter Mirifica do Concílio Vaticano II, conectando-os à reflexão contemporânea proposta pelo documento Rumo à Presença Plena. A análise explora os entendimentos de comunicação como expressão de uma cultura do cuidado, utilizando os pressupostos da ética do cuidado como referencial. Este estudo visa compreender a abertura proporcionada pelo Vaticano II e refletir sobre a necessidade de transcender os pressupostos de uma comunicação baseada nos meios para uma comunicação dialógico-relacional, especialmente diante dos desafios comunicacionais contemporâneos da ambiência digital.
Palavras-chave: Comunicação e Teologia; Concílio Vaticano II; Inter Mirifica; Cultura do Cuidado; Evangelização Digital.
Abstract: The Second Vatican Council paved the way for a profound ecclesial renewal. One of its significant movements was the recognition of communication as a relevant element in the Church’s evangelizing mission. This article analyzes the advances inaugurated by the Decree Inter Mirifica of the Second Vatican Council, connecting them to the contemporary reflection proposed by the document Towards Full Presence. The analysis explores the understanding of communication as an expression of a culture of care, using the assumptions of the ethics of care as a framework. This study aims to comprehend the openness provided by Vatican II and reflect on the need to transcend the assumptions of a media-based communication towards a dialogical-relational communication, especially in the face of contemporary communicational challenges within the digital environment.
Keywords: Communication and Theology; Second Vatican Council; Inter Mirifica; Culture of Care; Digital Evangelization.
O Concílio Vaticano II – vigésima primeira Assembleia dos Bispos na história da Igreja Católica – pode ser considerado um marco na construção do papel da Igreja no mundo contemporâneo, ao propor um diálogo aberto e dinâmico com a sociedade. Relembrado em suas diferentes datas comemorativas, encontra vozes ad intra que se diferenciam entre o louvar, lamentar, acusar ou até abafar o seu papel. Independentemente do posicionamento, são sempre tentativas de compreender a profundidade da mutação provocada pelas promessas carregadas por este Concílio (TORRES QUEIRUGA, 2015).
Entre as várias respostas conciliares ao tempo vivido, destaca-se a atenção à comunicação como dimensão integrante da evangelização, consolidada no Decreto Inter Mirifica[1]. Pela primeira vez um documento universal da Igreja assegura a obrigação e o direito de utilizar os meios de comunicação social, reconhecendo o seu potencial para influenciar valores e cultura (PUNTEL, 2012). O Concílio lançou as bases para um engajamento mais ativo da Igreja no campo da comunicação, embora com um olhar focado nos meios de comunicação.
É, pois, possível dizer que, simbolicamente, o Concílio Vaticano II reconheceu a comunicação como um pilar fundamental para a formação da consciência cristã e para o diálogo com a sociedade moderna. Nos 24 artigos que restaram da versão inicial com 114, o Decreto Inter Mirifica aprovado em 1963, na segunda sessão do Concílio, causou controvérsia e recebeu o maior número de votos contrários de todas as aprovações. Ao lugarizar os avanços tecnológicos como meios para anunciar o Evangelho, o documento também destacou a responsabilidade ética e pastoral dos agentes envolvidos em moldar uma comunicação que promova a dignidade humana e a solidariedade. Assim, a comunicação passa a ser reconhecida como via privilegiada para a construção do Reino de Deus no mundo (IM, 3).
Da publicação do Decreto Inter Mirifica até os dias atuais, inúmeros estudos e análises sobre a temática marcaram a reflexão teológica e comunicacional. Se do ponto de vista da Teologia, busca-se compreender os meios e as relações como espaços teológicos, do ponto de vista da comunicação, é possível ampliar o olhar para melhor compreender a relação organicamente imbricada entre a vivência da fé e a capacidade de construir sentidos compartilhados por meio da comunicação dentro e fora da comunidade cristã.
Para compreender a abertura proporcionada pelo Vaticano II e refletir sobre a necessidade de transcender os pressupostos de uma comunicação baseada nos meios para uma comunicação dialógico-relacional, especialmente diante dos desafios comunicacionais contemporâneos da ambiência digital, este artigo tem como objetivos: (1) identificar os conceitos de comunicação apresentados no Inter Mirifica; (2) interpretar esses conceitos sob a ótica da ética do cuidado; e (3) verificar a presença de marcadores de cuidado nos entendimentos comunicacionais dos documentos analisados.
No movimento hermenêutico que realizamos, adotamos perspectivas teóricas não hegemônicas e emergentes tanto no entendimento de comunicação como de cuidado. No primeiro, adotamos a perspectiva dialógico-relacional e o entendimento complexo que definem comunicação para além da dimensão informacional e instrumental. Comunicar é uma constante negociação de sentidos entre sujeitos com lógicas e interesses distintos (WOLTON, 2011, 2023), em permanente diálogo dialógico (OLIVEIRA, 2016). Já a ética do cuidado é compreendida como a vocação para renovar o laço social por meio da preocupação com os outros, da solicitude e da preocupação com os demais (TRONTO, 1993; BRUGÈRE, 2023).
A mudança no espírito do tempo também precisa ser considerada na reflexão, especialmente, no que diz respeito à profunda transformação da plataforma midiática. Se na década de 1960 prevaleciam os meios analógicos tradicionais, marcados pela comunicação de uma fonte (jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão) para muitos – a massa, atualmente, a migração para a ambiência digital muda a relação com a base tecnológica e estabelece novos comportamentos comunicacionais que já são percebidos como riscos globais.
Um império digital está emergindo, com caraterísticas muito distinta dos impérios históricos que já conhecemos. É um império que não necessita de violência militar, mas que exerce um controle amplo e intenso, profundo e de vasto alcance sobre os sentidos e significados compartilhados que configuram a subjetividade social (BECK, 2018). Diante desse império, as instituições operantes correm o risco de fracassar por não estarem concebidas para uma realidade cosmopolita e não atenderem os desafios lançados pela atual sociedade de risco global (Beck, 2018). A infraestrutura técnica construída inclui assimetrias fundamentais produzindo zonas de opacidade entre usuários e sistema algorítmicos, entre plataformas e aparato regulatório democrático, entre outras assimetrias (CESARINO, 2022).
É, pois, necessária uma interpretação complexa do tema que articule os fundamentos da Evangelização, o contexto da ambiência midiática dos diferentes tempos acionados e dos desafios sociais que o caracterizam, juntamente com uma visão não reducionista da comunicação, que pode, assumir um lugar social significativo a partir dos princípios do cuidado.
Desde os primeiros séculos, a comunicação ocupa lugar central na vida e missão da Igreja. Das cartas de São Paulo aos atos missionários dos primeiros cristãos, comunicar era sinônimo de evangelizar. A comunicação, no contexto da fé cristã, transcende a simples transmissão de informações. Desde os primeiros cristãos, é expressão do mandato evangélico de proclamar a Boa Nova e de construir pontes de comunhão.
A prática comunicativa é essencial à identidade e missão da Igreja Católica, que, desde sua origem, utiliza-se de diversos meios para dar sentido à sua mensagem. A comunicação não é apenas instrumental; ela é constitutiva da evangelização e da interação comunitária, elemento indispensável para a edificação de relações interpessoais e sociais no âmbito eclesial (EVANGELII NUNTIANDI, 1975).
A comunicação autêntica é marcada pelo encontro e pela escuta, refletindo o próprio modelo trinitário de relação entre Pai, Filho e Espírito Santo. No coração da fé cristã, a comunicação está profundamente enraizada na Palavra que se fez carne (Jo 1,14), revelando o chamado da Igreja para ser testemunha viva em cada espaço cultural e tecnológico. Assim, a comunicação articula a mensagem cristã com os desafios do mundo contemporâneo.
A relação entre fé e comunicação não é meramente circunstancial; ela é inerente à experiência cristã, pois é pela palavra e pelo testemunho que a Igreja anuncia o Reino (REDEMPTORIS MISSIO, 1990). Na perspectiva de Puntel, a comunicação é vista como um processo simbólico que constrói relações sociais, permitindo que a mensagem cristã alcance as transformações culturais e sociais do mundo contemporâneo. A prática comunicativa eclesial transcende a simples transmissão de conteúdos, sendo um espaço de encontro e comunhão (Puntel, 2020).
Pois foi justamente esse mundo contemporâneo o grande provocador do Concílio Vaticano II (1962-1965), um dos eventos mais significativos na história contemporânea da Igreja Católica, aqui entendido como um marco na virada epistemológica em sua relação com o mundo moderno. Em um cenário de profundas transformações sociopolíticas, a Igreja enfrentava os desafios de um mundo que emergia da devastação da Segunda Guerra Mundial e adentrava a era da Guerra Fria, do desenvolvimento tecnológico acelerado e do pluralismo cultural e religioso.
No bojo do contexto histórico externo que influenciou profundamente o Concílio está a ascensão dos meios de comunicação de massa, que trouxe novas questões éticas e pastorais. Esse cenário inspirou debates que culminaram no Decreto Inter Mirifica e os entendimentos que prevaleceram no documento.
Durante boa parte de sua história, a Igreja demonstrou alguma resistência quanto ao uso de novas tecnologias de comunicação, muitas vezes percebidas como ameaças ao controle narrativo ou incompatíveis com os valores cristãos. No entanto, o Decreto Conciliar Inter Mirifica marcou uma mudança de postura, reconhecendo os meios de comunicação como ferramentas legítimas para a propagação da fé (IM, 3). De acordo com o documento, “o uso reto [dos meios] exige que a informação seja objetivamente verdadeira e íntegra” (IM, 5). A interpretação do documento, no entanto, permite muitas leituras adicionais para além de um regramento do uso dos meios (Quadro 1)
Quadro 1 – Contribuições do Decreto Inter Mirifica
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Categoria |
Descrição |
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Comunicação como instrumento moral e social |
Os meios de comunicação são reconhecidos como poderosos veículos para informar, educar e propagar valores espirituais e éticos. A Igreja enfatiza que seu uso deve ser norteado por princípios morais que respeitem a dignidade humana e promovam o bem comum. |
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Responsabilidade no uso dos meios de comunicação |
É atribuído um papel crucial aos autores, produtores e usuários de mídia, destacando-se a importância de promover conteúdos que respeitem valores morais. Especial atenção é dada à influência dos meios sobre os jovens, com a recomendação de que pais e educadores monitorem cuidadosamente o que é consumido. |
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Direito à informação |
O documento reconhece o direito dos indivíduos à informação verdadeira e íntegra. Entretanto, sublinha que a obtenção e divulgação de notícias devem obedecer à justiça, caridade e às normas da moralidade. |
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Formação ética e técnica |
A necessidade de formação adequada de comunicadores é destacada, com a proposta de instituir escolas e faculdades que ofereçam instrução técnica e valores cristãos aos jornalistas, cineastas, radialistas e outros profissionais. |
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A comunicação como parte do apostolado |
Os meios de comunicação são vistos como ferramentas fundamentais para a evangelização e o apostolado, sendo responsabilidade dos pastores e leigos utilizá-los para promover os valores cristãos e alcançar uma audiência mais ampla. |
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Colaboração e coordenação global |
A Igreja reconhece que os meios de comunicação transcendem fronteiras nacionais e, por isso, encoraja iniciativas internacionais que promovam a cooperação para um uso benéfico e ético desses recursos. |
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Intersecção entre arte e moral |
O texto aborda a relação entre as expressões artísticas e as normas éticas, reafirmando a primazia da ordem moral como princípio orientador para evitar que conteúdos artísticos se desviem de valores que promovam o bem humano e espiritual. |
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Opinião pública e justiça social |
Reconhecendo o impacto da comunicação na formação da opinião pública, o documento incentiva o uso responsável dos meios para fomentar uma opinião pública informada e guiada por justiça e caridade. |
Fonte: Adaptado de Inter Mirifica – Decreto sobre os Meios de Comunicação Social (1963)
Embora com proposições ancoradas nos meios de comunicação, o Concílio Vaticano II não apenas reconheceu o papel central da comunicação na vida e missão da Igreja, mas também destacou sua dimensão ética e pastoral. No Inter Mirifica, a comunicação é vista como uma oportunidade para promover o bem comum, a verdade e a justiça. Essa visão se articula à noção de cuidado, pois envolve um compromisso ético com o respeito à dignidade humana e à construção de relacionamentos baseados na solidariedade e na comunhão.
O Decreto Inter Mirifica trazia junto de seus mandatos para todos os agentes envolvidos na comunicação da fé, a definição de uma estrutura responsável pelo tema na Santa Sé. A abertura aprovada pelos conciliares para que o então Secretariado para a Imprensa e para a orientação dos Espetáculos, estendesse suas obrigações e competências a todos os meios de comunicação social sem excluir a imprensa, associando a ele especialistas das diferentes nações, entre os quais também leigos, rendeu frutos nas décadas seguintes ao Concílio.
Atualmente, a criação de dicastérios e secretariados específicos para comunicação, como a Secretaria para a Comunicação instituída pelo Papa Francisco em 2015, demonstram o compromisso da Igreja em refletir continuamente sobre o papel da mídia na evangelização. Também no Brasil, o Diretório de Comunicação da Igreja no Brasil (2014) ressalta a necessidade de formação dos agentes pastorais e o uso estratégico dos meios de comunicação na ação evangelizadora, reafirmando o compromisso com a ética e a verdade (CNBB, 2014).
A consolidação da ambiência midiática digital representa um novo paradigma para a comunicação eclesial. A rapidez das interações, a fragmentação das audiências e a polarização social desafiam a Igreja a reinventar sua mensagem sem comprometer seus valores fundamentais. Conforme destaca o Papa Bento XVI, os meios de comunicação não são apenas ferramentas, mas também “instrumentos a serviço de um mundo mais justo e solidário” (Mensagem para a XLII Jornada Mundial das Comunicações Sociais, 2008).
O ciberespaço, com suas complexas dinâmicas de interação, exige da Igreja não apenas presença, mas também competência em dialogar com uma geração hiper conectada. De acordo com Quintero Gómez (2008), o Documento de Aparecida (2007) introduziu uma dimensão transversal à comunicação, reconhecendo-a como essencial à missão evangelizadora na América Latina (GÓMEZ, 2012).
O Papa Francisco reforça a centralidade da comunicação no serviço da comunhão, destacando que ela deve ser uma ponte, e não um muro (Mensagem para o XLVIII Dia Mundial das Comunicações Sociais, 2014). Segundo ele, uma boa comunicação aproxima as pessoas e promove o encontro, algo essencial em um mundo cada vez mais interligado, mas paradoxalmente dividido.
O Diretório de Comunicação da Igreja no Brasil também reforça a ideia de que a comunicação deve ser um espaço de diálogo, pautado na promoção do bem comum e no fortalecimento dos laços comunitários (CNBB, 2014). Como aponta o Documento Comunidade de Comunidades: uma nova paróquia (2014), “a ausência da Igreja nesses espaços virtuais é inconcebível” (CNBB, 2014, p. 312).
A transformação social proporcionada pela cibercultura exige respostas claras e eficazes da Igreja, que deve articular sua mensagem em plataformas digitais sem perder a profundidade teológica que a caracteriza. Como sugere o Documento de Aparecida, a comunicação deve ser otimizada como “eficaz púlpito” para anunciar o Evangelho em uma sociedade em constante mudança (DAp, 2007, 486).
A pergunta que permanece é se a Igreja está preparada para enfrentar os desafios da era digital e oferecer uma resposta pastoral que vá ao encontro das necessidades do “homem” contemporâneo. Esse desafio não apenas reafirma a importância da comunicação, mas também coloca em evidência a necessidade de um diálogo permanente entre fé, cultura e tecnologia. A compreensão complexa da comunicação a partir dos pressupostos do cuidado pode ser uma chave de leitura importante para encontrar as respostas exigidas pelo tempo.
A perspectiva do cuidado com a comunicação proposta pelo Concílio está enraizada na teologia do diálogo, que permeia outros documentos conciliares, como a Constituição Pastoral Gaudium et Spes. Nela, a Igreja é chamada a ler os sinais dos tempos e a participar ativamente das transformações culturais, promovendo uma comunicação que construa pontes em vez de divisões.
A comunicação, nesse sentido, é mais do que um meio de transmissão de informações; é um ato de cuidado que reflete o chamado evangélico de amar e acolher o outro. Essa abordagem pastoral continua a guiar a Igreja na era digital, destacando a necessidade de um uso responsável e ético dos meios de comunicação para promover a dignidade humana e a paz.
Como já enfatizamos anteriormente, Concílio Vaticano II inaugurou um espaço oficial para a reflexão sobre a comunicação na Igreja Católica, reconhecendo sua relevância pastoral e teológica. A partir dos documentos produzidos no período pós-conciliar, observa-se a continuidade desse diálogo, especialmente frente às transformações tecnológicas e comportamentais que moldaram as relações sociais. Essas mudanças intensificaram a necessidade de um diálogo permanente e de orientações claras sobre os usos éticos e pastorais da comunicação, reafirmando sua centralidade na missão da Igreja.
Como enfatiza o Papa Francisco em seu magistério recente, o cuidado com a comunicação é essencial para a cultura do encontro, onde o diálogo autêntico e a escuta profunda geram um ambiente de reconciliação e acolhimento. O cuidado abrange nosso olhar para o todo e para a integralidade do ser e da criação. “O cuidado não se esgota num ato que começa e acaba em si mesmo. É uma atitude, fonte permanente de atos, atitude que deriva da natureza do ser humano” (BOFF, 2013, p.28). Nessa perspectiva de olhar para as práticas de cuidado na vida cotidiana, nos lugares de cuidado individual (cuidar de si) e coletivo (cuidar do outro), entendemos como relevante mencionarmos os estudos de pesquisadoras como a filósofa e psicóloga Carol Gilligan e a cientista política Joan Tronto que começaram a conceituar, a partir da década de 1980, o que chamaram de ética do cuidado.
Na visão de Gilligan (1982, 2011), a ética do cuidado aplicada nas relações mostra-se como transformadora do espaço social e, por conseguinte, da própria moralidade. Para Tronto (1993, 2007), as relações, a responsabilidade coletiva e as políticas públicas voltadas para o cuidado contribuem para a construção de uma sociedade mais justa e equitativa.
É possível vislumbrar a construção de uma cultura do cuidado como projeto coletivo que valoriza a integralidade do pensamento que vem sendo desenvolvido no magistério do Papa Francisco: a cultura do cuidado, que tem sido reforçada por meio de cartas e encíclicas, nos quais, o Pontífice apresenta uma destacada preocupação em abrir espaços de diálogos para a inclusão e participação de todas as pessoas nas pautas sociais emergentes.
Neste escopo, o Papa utilizou pela primeira vez, em 2015, o termo cultura do cuidado na encíclica Laudato Si’ que trata sobre o cuidado com a Casa Comum. “Neste contexto, juntamente com a importância dos pequenos gestos diários, o amor social impele-nos a pensar em grandes estratégias que detenham eficazmente a degradação ambiental e incentivem uma cultura do cuidado que permeie toda a sociedade” (FRANCISCO, 2015, p. 231).
Na visão de Francisco, a cultura do cuidado é o olhar zeloso, responsável e integral que devemos ter para toda a criação, incluindo os seres humanos, a natureza e todas as fontes de recursos naturais que fazem parte do planeta terra. O Pontífice afirma que a cultura do cuidado requer um processo educativo que deve ser interconectado entre diversos entes sociais como a família, as instituições educativas, os governantes, os espaços de comunicação, as religiões, entre outros. Afirma o Pontífice, “a cultura do cuidado, enquanto compromisso comum, solidário e participativo para proteger e promover a dignidade e o bem de todos, enquanto disposição a interessar-se, a prestar atenção, disposição à compaixão, à reconciliação e à cura, ao respeito mútuo e ao acolhimento recíproco, constitui uma via privilegiada para a construção da paz” (FRANCISCO, 2020, p.7).
O filósofo e teólogo Leonardo Boff (2013) reforça essa visão de cuidado integral ao refletir sobre nossa eco dependência enquanto seres que integram o planeta terra e que devemos entender a ética do cuidado como um ato de responsabilidade individual e coletivo, “uma relação amorosa, respeitosa e não agressiva para com a realidade e, por isso, não destrutiva” (BOFF, 2013, p.20). Ou seja, o cuidado é entendido como uma forma de constituir relacionamentos entre seres humanos e com a natureza.
Trazendo uma visão atual sobre o conceito de ética do cuidado ganha sentido a visão do cuidado a partir da integralidade. “[...] os fundamentos dessa ética se apoiam na necessidade de considerar os seres humanos como seres de carne e osso, relacionais, em contraposição a qualquer tentação objetivante da moral” (BRUGÈRE, 2023, p.9)[2].
O documento Rumo à Presença Plena: uma reflexão pastoral sobre a participação nas redes sociais (Dicastério para a Comunicação, 2023) é a mais recente publicação da Santa Sé sobre a comunicação. Lançado em 28 de maio de 2023 pelo Dicastério para a Comunicação, ele rompe um período de mais de 20 anos de distância entre os dois últimos escritos pontifícios relacionados ao comportamento e à evangelização nos meios digitais: Igreja e Internet (2002a) e Ética na Internet (2002b) (CAMINADA, 2023).
Dividido em quatro capítulos, Rumo à Presença Plena é uma reflexão pastoral sobre a presença e participação dos cristãos na ambiência digital (Quadro 2). “O documento traz em cada seção uma série de questionamentos, tendo como foco a humanização das relações na esfera digital e a promoção de uma verdadeira cultura do encontro” (CAMINADA, 2023, p.7).
Quadro 2: Conceitos de Comunicação no documento Rumo à Presença Plena
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Categoria |
Descrição |
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Comunicação como instrumento moral e social |
As redes sociais são espaços que transcendem sua natureza instrumental, tornando-se ambientes de encontro e diálogo. A ênfase recai sobre o papel ético de promover a inclusão, a solidariedade e a verdade nesses espaços digitais. A digitalização é vista como uma oportunidade para criar comunidades virtuais que integrem valores éticos e espirituais. |
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Responsabilidade no uso dos meios de comunicação |
Os usuários devem adotar práticas éticas nas redes sociais, evitando comportamentos polarizadores, discursos de ódio e a cultura do descarte digital. A presença online exige atenção às consequências de ações impulsivas e busca-se incentivar uma postura reflexiva, orientada pela compaixão e pelo diálogo. |
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Direito à informação |
Embora as redes sociais ampliem o acesso à informação, alerta-se para desafios como desinformação, bolhas de filtro e manipulação algorítmica. O direito à informação deve ser exercido de maneira responsável, garantindo que os dados sejam verdadeiros, completos e respeitem a dignidade humana. |
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Formação ética e técnica |
Ressalta-se a importância de preparar indivíduos e comunidades para participarem de forma responsável no ambiente digital, combinando habilidades técnicas com um compromisso moral. Destaca-se a ideia de "escuta com o ouvido do coração" como prática que humaniza as interações online. |
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A Comunicação como parte do apostolado |
As redes sociais são vistas como campos férteis para o apostolado, usados para evangelizar e criar comunidades baseadas no amor e na solidariedade. Durante a pandemia, mídias digitais foram utilizadas para unir os fiéis e oferecer consolo espiritual. |
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Colaboração e coordenação global |
Destaca-se a necessidade de trabalhar em conjunto para transformar as redes sociais em espaços mais humanos, promovendo valores universais como igualdade, inclusão e transparência. Parcerias entre comunidades de fé, empresas de tecnologia e usuários são incentivadas para alcançar mudanças positivas. |
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Intersecção entre arte e moral |
As redes sociais são apresentadas como veículos para a criatividade ética e para a narração de histórias que inspirem o bem. A comunicação deve refletir o "estilo de Deus", caracterizado por proximidade, compaixão e ternura. |
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Opinião pública e justiça social |
As redes sociais desempenham um papel importante na formação de uma opinião pública orientada pela justiça, chamando os cristãos a serem "tecelões de comunhão" ao invés de "influenciadores individuais". Propõe-se que esses espaços amplifiquem as vozes dos marginalizados e promovam ações de impacto social. |
Fonte: Adaptado de Rumo à Presença Plena: Uma reflexão pastoral sobre a participação nas redes sociais. Vaticano, 2023.
Embora de natureza institucional distinta, uma vez que o Decreto Inter Mirifica é um documento universal da Igreja e o Documento Rumo à Presença Plena, é uma orientação reflexiva do Dicastério de Comunicação, ambos respondem ao espírito do tempo na dimensão midiática que abarca em si uma visão da relação comunicacional da sociedade. Ambos podem ser entendidos na perspectiva do cuidado da Igreja com a integralidade dos sujeitos envolvidos na missão evangelizadora.
Quadro Comparativo: Inter Mirifica x Rumo à Presença Plena
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Categoria |
Inter Mirifica |
Rumo à Presença Plena |
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Comunicação como Instrumento Moral e Social |
Reconhece os meios de comunicação como veículos para a disseminação de valores morais e espirituais |
Destaca as redes sociais como ambientes de encontro e diálogo que promovem inclusão e solidariedade |
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Responsabilidade no Uso |
Enfatiza o uso responsável dos meios, destacando seu impacto no bem-estar espiritual e moral da sociedade |
Aponta para práticas reflexivas e compassivas nas redes sociais, evitando discursos polarizadores e reativos |
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Direito à Informação |
Afirma o direito à informação verdadeira, íntegra e moralmente fundamentada |
Alerta sobre desinformação e manipulação algorítmica, destacando a necessidade de responsabilidade na partilha de dados |
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Formação Ética e Técnica |
Destaca a necessidade de formação em ética cristã para comunicadores, com foco na responsabilidade moral |
Propõe uma "escuta com o ouvido do coração" como prática que humaniza e aprimora a interação online |
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Comunicação como Parte do Apostolado |
Usa os meios de comunicação para evangelizar e educar na fé cristã |
Enxerga as redes sociais como campo fértil para o apostolado e para a promoção do amor e da solidariedade |
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Colaboração e Coordenação Global |
Incentiva iniciativas globais para o uso ético e construtivo dos meios de comunicação |
Defende parcerias para transformar as redes em espaços mais humanos e promover inclusão e transparência |
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Arte e Moral |
Reitera que expressões artísticas devem respeitar a ordem moral objetiva |
Apresenta as redes como espaços criativos que podem narrar histórias inspiradoras, alinhadas ao "estilo de Deus" |
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Opinião Pública e Justiça Social |
Destaca o papel dos meios na formação de uma opinião pública guiada por justiça e caridade |
Propõe ações nas redes que amplifiquem as vozes marginalizadas e promovam mudanças sociais positivas |
Fonte: Adaptado de Inter Mirifica – Decreto sobre os Meios de Comunicação Social (1963); e Rumo à Presença Plena: Uma reflexão pastoral sobre a participação nas redes sociais (2023).
O documento Rumo à presença plena pode ser interpretado como um avanço na compreensão conceitual da comunicação – que passa a ser menos associada à transmissão de informação e destaca o encontro e a solidariedade, assim como na inclusão da perspectiva ética do cuidado. O documento que responde à era do risco digital quer, justamente, motivar a criação de redes de apoio e cuidado mútuos, que não se desenvolvem apenas em um espaço físico ou digital, mas que se complementam e potencializam a partir das vivências desenvolvidas pelos indivíduos que dela fazem parte.
Os documentos Inter Mirifica e Rumo à Presença Plena evidenciam uma evolução na compreensão da comunicação pela Igreja, passando de uma abordagem mais normativa para uma perspectiva dialógica e relacional. Essa transição reflete o compromisso com uma cultura do cuidado que valoriza a dignidade humana e a solidariedade, mesmo em contextos digitais.
A cultura do cuidado tem o olhar voltado para a integralidade do ser, valorizando sentimentos como o altruísmo, a autonomia, a capacidade relacional e a conexão do indivíduo com o todo e do todo com o indivíduo, em um movimento recursivo. É cuidar de forma responsável de si, dos outros e do todo que nos cerca, requerendo assim, a comunicação, uma vez que ela promove e materializa os esforços tendo o potencial de estabelecer os diálogos fundamentais para a aprendizagem entre todos os sujeitos envolvidos na missão de evangelizar.
A análise realizada revela que os princípios do Vaticano II continuam relevantes, inspirando a Igreja a atuar de forma ética e inclusiva nos desafios comunicacionais do presente e abrem possibilidade para a esperança de uma visão mais complexa do comunicar para além do transmitir e da perspectiva tecnicista e instrumental. Pesquisas futuras podem explorar como esses princípios são aplicados em práticas locais de evangelização e comunicação pastoral.
Referências
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BOFF, Leonardo. O Cuidado Necessário. Editora Vozes, 2013.
BRUGERÈ, Fabienne. A ética do cuidado. São Paulo: Editora Contracorrente, 2023.
CAMINADA, Thiago Amorim. Reflexão pastoral sobre as redes sociais digitais e a centralidade da Cultura do Encontro para o Magistério do Papa Francisco. Teocomunicação. Porto Alegre, v. 53, n. 1, p. 1-14, jan.-dez. 2023. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/teo/article/view/44955/28162. Acesso em: 6 nov. 2024.
CELAM – Conselho Episcopal Latino-Americano. Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. São Paulo/Brasília: Paulus, Paulinas, CNBB, 2007.
CESARINO, Letícia. O mundo do avesso: verdade e política na era digital. Ubu Editora, 2022.
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DICASTÉRIO PARA A COMUNICAÇÃO. Rumo à presença plena: uma reflexão pastoral sobre a participação nas redes sociais. Vaticano, Cidade do Vaticano, 2023. Disponível em: https://www.vatican.va/roman_curia/dpc/documents/20230528_dpc-verso-piena-presenza_pt.html. Acesso em: 6 nov. 2024.
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QUINTERO GOMÉZ, Carlos Arturo. A comunicação. Brasília: Edições CNBB, 2008.
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WOLTON, Dominique. Communiquer, c'est vivre. Paris: CNRS Éditions, 2023.
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[1] A tradução livre do título “Inter Merífica” do latim para a língua portuguesa reflete o objetivo final do documento conciliar: aceitação oficial da comunicação.
[2] Vale recordar, em tempo, o relevante trabalho de estudos antropológicos realizados pelo teólogo hispano-brasileiro Alfonso Garcia Rúbio. Embora não seja objeto de estudo desse artigo, as contribuições de Rúbio são destacadas para compreender a dinâmica intregalizante da pessoa humana.