Revisitando a Gaudium et Spes para olhar o hoje

Visiting again the Gaudium et Spes to look at today

Antonio Lisboa
Doutorado em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: allopes@pucsp.br

 

Voltar ao Sumário


Resumo: 

O presente artigo busca analisar a importância da Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II, destacando sua inovação ao propor um diálogo mais profundo entre a Igreja e o mundo contemporâneo. Na primeira parte, o foco está na redefinição do papel da Igreja, que passa a enfatizar a dignidade intrínseca da pessoa humana, a centralidade da liberdade de consciência e a promoção do bem comum. A Igreja se apresenta não apenas como uma instituição religiosa, mas como uma entidade que deve estar engajada com as questões sociais, políticas e econômicas, sempre com o objetivo de defender a justiça e a paz. Na segunda parte, o artigo explora o conceito de "sinais dos tempos," indicando que a Igreja deve estar atenta aos desafios e mudanças da modernidade, utilizando esses sinais como guias para a sua ação pastoral. A interpretação desses sinais, que incluem tanto avanços tecnológicos quanto crises sociais, é vista como fundamental para a missão evangelizadora. A última parte do artigo aborda a missão da Igreja de colaborar na construção de uma sociedade mais justa e solidária, reafirmando seu compromisso com a transformação social à luz do Evangelho. A Gaudium et Spes, assim, não é apenas um documento teológico, mas um convite para a ação concreta da Igreja no mundo, buscando sempre a promoção da dignidade humana e a criação de uma comunidade global mais fraterna e equitativa.

Palavras-Chaves:  Gaudium et Spes; Concílio Vaticano II; Igreja no Mundo; Papa Francisco

 

Abstract: 

This article seeks to analyze the importance of the Pastoral Constitution Gaudium et Spes of the Second Vatican Council, highlighting its innovation in proposing a deeper dialogue between the Church and the contemporary world. In the first part, the focus is on the redefinition of the role of the Church, which begins to emphasize the intrinsic dignity of the human person, the centrality of freedom of conscience and the promotion of the common good. The Church presents itself not only as a religious institution, but as an entity that must be engaged with social, political and economic issues, always with the aim of defending justice and peace. In the second part, the article explores the concept of "signs of the times," indicating that the Church must be attentive to the challenges and changes of modernity, using these signs as guides for its pastoral action. The interpretation of these signs, which include both technological advances and social crises, is seen as fundamental to the evangelizing mission. The last part of the article addresses the Church's mission to collaborate in the construction of a more just and supportive society, reaffirming its commitment to social transformation in the light of the Gospel. Gaudium et Spes is thus not only a theological document, but an invitation to concrete action by the Church in the world, always seeking to promote human dignity and create a more fraternal and equitable global community.

Keywords: Gaudium et Spes; Second Vatican Council; Church in the World; Pope Francis

Introdução

A Gaudium et Spes, um dos documentos centrais do Concílio Vaticano II, é única por sua origem e importância dentro do contexto conciliar. Diferentemente de outros textos que foram elaborados a partir de esquemas anteriores, discutidos por episcopados e comissões, a Gaudium et Spes nasceu diretamente das discussões conciliares. Mas esses debates nem sempre foram consensuais, refletindo a diversidade de vozes dentro da Igreja. O que leva a aceder à expressão de Balthasar de que o Vaticano II é uma "configuração sinfônica", onde diferentes perspectivas eclesiais foram articuladas (Cf. BALTHASAR, 2016). Vale reforçar: enquanto outros documentos conciliares seguiam esquemas predefinidos, a Gaudium et Spes não possuía uma estrutura preparatória. Ela surgiu do próprio cerne do Concílio, resultado de intensos debates que refletiam as questões cruciais discutidas nas sessões. Esse caráter singular faz dela um documento profundamente conectado ao momento histórico em que foi produzido.  

Outro aspecto crucial para a compreensão da Gaudium et Spes é a influência de Paulo VI. Se o Concílio Vaticano II é frequentemente associado ao perfil pastoral de João XXIII, é Paulo VI quem traz a profundidade teológica e diplomática que também marcou esse período. Ele contribuiu significativamente para a configuração final da Constituição Pastoral. Sua capacidade de diálogo e sua visão teológica permitiram que ele influenciasse o documento de maneira sutil, mas decisiva. Montini insistiu que a Igreja não poderia esquecer o contexto em que se encontra. Mais do que isso, defendeu que a Igreja precisa ser um sujeito de fala, engajada no mundo contemporâneo. Por isto, a constituição pastoral conciliar carrega as marcas de debates profundos entre os padres conciliares, além de controversas, resultando em um texto dialético que busca situar a Igreja em seu tempo, buscando superar a visão de separação entre Igreja e mundo.

Até o Concílio Vaticano II, a Igreja era vista como uma realidade completa em si mesma (sociedade perfeita), enquanto o mundo era considerado uma entidade distinta, quase como duas mônadas isoladas, sem comunicação entre si. A visão prevalente era de que o mundo precisava ser transformado e cristianizado, enquanto a Igreja deveria evitar "mundanizar-se" para não perder sua identidade.

O Concílio propõe uma nova perspectiva, reconhecendo a necessidade de diálogo entre Igreja e mundo, situando a Igreja como um agente ativo na história e não como uma entidade isolada. Assim, vale repetir, a Constituição Pastoral se destaca como um marco no pensamento da Igreja, refletindo tanto as tensões quanto às esperanças do Concílio Vaticano II.

1.Há salvação fora da igreja?

Ao refletir sobre a relação entre Igreja e mundo, pretendemos trazer à tona uma importante questão: são esses dois conceitos realidades justapostas, ou o mundo é, na verdade, uma criação divina, na qual a Igreja atua como sinal do amor de Deus? Esse questionamento levou os padres conciliares a explorarem profundamente uma verdade central da fé: Deus criou o mundo, ama sua criação, e age constantemente para preservá-la.

Dentro dessa visão, a Igreja se apresenta, segundo a Lumen Gentium, como um sinal da salvação divina no mundo (LG 1). O antigo axioma, “fora da Igreja não há salvação,” que foi amplamente debatido e repetido até o Vaticano II, não foi negado pelo Concílio, mas, sim, reinterpretado. O que o Concílio Vaticano II afirma é que, de fato, há salvação na Igreja, pois, sem isso, ela não seria a verdadeira Igreja de Cristo. A Igreja, assim, é definida como um mistério de comunhão, visualizado no Povo de Deus e, nessa relação, se torna o sacramento universal da salvação.

Contudo, a pergunta persiste: há salvação fora da Igreja? A resposta reside no reconhecimento de que Deus, sendo onipotente, possui o poder de salvar independentemente das limitações humanas. Ele não pode ser mapeado ou condicionado; o que conhecemos Dele é porque Ele se revelou a nós. A Igreja, portanto, é constituída por vontade divina para ser um grupo de homens e mulheres de fé que, ao experimentar os dons da salvação, se tornam, no mundo, um sinal visível dessa salvação.

1.1 A Gaudium et Spes e a questão da fé?

Essa perspectiva reafirma que a Igreja não é a dona da salvação; ela não a retém de maneira exclusiva. Contudo, dentro dela, necessariamente, a salvação está presente. Nesse sentido, a Constituição centra-se em uma questão fundamental: a questão da fé. Discute como a fé em Deus se manifesta no mundo e como esse mundo, ao se confrontar com a fé e os crentes, é impactado pela Boa Nova do Senhor, o Evangelho. Podemos afirmar que a Gaudium et Spes representa uma fé que dialoga com o tempo. Isso porque estamos diante de uma realidade com um substrato humano essencial. A fé, antes de ser direcionada a Deus, é uma capacidade inerente ao ser humano de estabelecer relações de credibilidade. 

Em contextos pastorais, como em paróquias, ao lidarmos com adolescentes e jovens, é comum ouvir a afirmação "não tenho fé." No entanto, essa declaração revela uma compreensão limitada da fé, que, em seu sentido mais amplo, é um componente intrínseco das relações humanas, essencial para a convivência e a construção de laços de confiança. Dessa forma, a Gaudium et Spes convida a uma reflexão mais profunda sobre o papel da fé não apenas como um ato religioso, mas como uma característica fundamental da existência humana.

A fé é um elemento intrínseco à vida cotidiana, mesmo que muitas vezes não a reconheçamos como tal. A afirmação genérica “não tenho fé” demonstra ignorar o fato de que a fé permeia as ações mais básicas e as relações mais simples de nossa existência. Um exemplo claro é o ato de confiar na comida preparada por uma outra pessoa, como, por exemplo, uma mãe, uma tia ou uma avó. Essa confiança, revela, uma fé implícita, uma crença de que essas pessoas não fariam nada que nos prejudicasse.

Da mesma forma, ao confiar no motorista da perua escolar para transportar uma criança com segurança, há uma manifestação de fé. Essa confiança, mesmo em ações rotineiras, demonstra que a fé não é algo reservado apenas à esfera religiosa, mas está presente em todas as interações humanas. A vida em sociedade depende dessa fé natural, dessa confiança mútua que permite a convivência e a construção de laços de credibilidade.

Essa visão nos leva a inferir que a ausência total de fé é impossível no contexto humano. A existência e as relações sociais se sustentam na fé, seja ela explícita ou implícita. Todo ser humano crê de algum modo, e essa crença é confrontada em situações-limite, nas quais a razão e o entendimento falham em oferecer explicações satisfatórias.

Um exemplo extremo disso é a tragédia de pais que perdem um filho jovem, uma experiência que desafia a lógica e parece inverter a ordem natural das coisas. Nesses momentos, quando a dor é imensa e o sofrimento avassalador, a fé surge como uma força misteriosa que impede que essas pessoas se desesperem completamente. A fé, nesses casos, não elimina a dor, mas oferece a força necessária para não sucumbir a ela, permitindo que a vida continue a ter algum sentido, mesmo diante da adversidade.

Portanto, a fé, tanto no aspecto religioso quanto no humano, revela-se essencial para enfrentar os desafios da vida. Ela não nos isenta de sofrer, mas nos dá a resiliência para seguir em frente, apesar das dificuldades. A Gaudium et Spes destaca essa interação entre fé e realidade, reconhecendo que, no fundo, a fé é o que nos mantém conectados com o que há de mais profundo em nossa humanidade.

O Concílio Vaticano II em sua Constituição Pastoral não apenas se propôs a dialogar com o mundo, mas também a refletir sobre o futuro da fé em um mundo marcado por incertezas e questionamentos. A grande questão que surge é se ainda há perspectiva para a fé religiosa e se o crer em Deus ainda encontra espaço no mundo moderno. Aqui emerge a necessidade de discernimento. Em outras palavras, como a Igreja pode expressar sua fé de forma autêntica no mundo em que vive?

Christoph Theobald, um jesuíta que dedicou extensos e intensos estudos sobre o Concílio Vaticano II, define isso como as "potencialidades de futuro" da Gaudium et Spes. Segundo essa perspectiva, a fé não é apenas uma crença estática, mas um modo de agir no mundo, um estilo de vida que se baseia no discernimento. Esta primeira potencialidade, esse estilo, que se tornou explícito durante o Concílio, tem como fundamento o discernimento, que se manifesta como um método, uma maneira de ler os sinais dos tempos. Isso significa que a Igreja não deve se posicionar como uma entidade que já possui todas as respostas, mas como uma interlocutora atenta à voz de Deus no mundo. O discernimento envolve perceber os apelos e interpelações de Deus presentes nas realidades do mundo.

Jesus, no Evangelho, questiona a capacidade das pessoas de prever o tempo e as mudanças climáticas, enquanto não conseguem perceber os sinais de Deus no tempo em que vivem (Mt 16,3). Essa crítica ecoa na reflexão conciliar, onde os bispos e padres conciliares são chamados a prestar atenção aos sinais de Deus em meio às complexidades do mundo.

1.2. A Gaudium et Spes e a conversação com o tempo 

Uma segunda potencialidade de futuro é a conversação com o tempo. A Igreja, conforme descrito na Constituição Pastoral Conciliar, assume um compromisso de ser uma voz ativa no mundo, não para impor regras, mas para dialogar com o tempo presente. Esse diálogo não é unilateral, mas sim uma troca onde a Igreja se abre para entender o que Deus está dizendo ao mundo e, ao mesmo tempo, oferece uma leitura do tempo à luz da fé.

A Gaudium et Spes esboça um retrato de conversação que se reflete nos textos relacionados ao Sínodo sobre a Sinodalidade e na Assembleia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Em todos esses momentos, a conversação espiritual se destaca como uma atitude de abertura e escuta, onde a Igreja busca compreender a direção de Deus no tempo presente. A Constituição Pastoral conciliar nos ensina que a fé não é uma relíquia do passado, mas uma força viva que se adapta, dialoga e discerne o mundo em constante mudança. Ela nos convida a sermos interlocutores atentos, capazes de perceber os sinais de Deus no nosso tempo e a responder a eles com sabedoria e ação.

O Concílio, ao refletir sobre a presença de Deus no mundo, afirma que o ser humano é chamado a ser interlocutor de Deus, não apenas como indivíduo, mas como representante de toda a criação. Essa ideia se desdobra em duas atitudes fundamentais na relação entre a Igreja e o mundo: a recepção e a reescritura.

A primeira atitude, a recepção, refere-se ao esforço da Igreja em retomar sua própria fé, diagnosticar suas práticas e propor ações que respondam às demandas do mundo. Isso inclui a recepção dos textos conciliares, os quais foram elaborados com o objetivo de orientar a presença e a ação da Igreja no contexto contemporâneo. No entanto, a recepção não deve ser entendida como uma atitude passiva. Não se trata apenas de absorver os textos, mas de vivê-los, de integrá-los à realidade pastoral concreta.

É nesse ponto que entra a segunda atitude: a reescritura. A recepção, por sua vez, se torna uma reescritura do Concílio. O que isso significa? Significa que as reflexões e debates conciliares não devem ser apenas reproduzidos, mas adaptados às realidades concretas das comunidades. A reescritura envolve o esforço contínuo de traduzir o espírito do Concílio para as necessidades pastorais e espirituais do tempo presente.

Christoph Theobald, ao abordar o Concílio Vaticano II, faz uma distinção importante entre a constelação histórico-teológica da época do Concílio e a constelação atual. O que isso implica? Implica que os debates conciliares estavam profundamente enraizados no contexto específico de sua época. A Gaudium et Spes, por exemplo, foi escrita em um momento em que a modernidade ocidental estava marcada por um ateísmo predominante e por um humanismo que negava a transcendência divina.

A modernidade enfrentada então era caracterizada por uma ruptura com a normatização heterônoma – as regras externas que, até então, orientavam o comportamento humano. Com o advento da modernidade, surgia uma nova racionalidade, que enfatizava a autonomia do ser humano, rejeitando as regras externas e se proclamando como a própria medida de todas as coisas.

A modernidade que vivenciamos hoje é diferente. Embora estejamos ainda sob os efeitos da modernidade vivida lá, aqui enfrentamos novos desafios. Se o ateísmo era o grande desafio naquela época, hoje nos deparamos com a idolatria. Não é mais a negação de Deus que predomina, mas a pretensão de ser Deus. O ser humano contemporâneo, muitas vezes, busca ocupar o lugar de Deus, seja por meio de pessoas, eventos ou objetos que são idolatrados.

Essa prática de idolatria remete à narrativa bíblica do Gênesis, quando a serpente persuadiu a mulher a comer do fruto, prometendo que, ao fazê-lo, ela e o homem seriam como deuses (Gn 3,5). O pecado original, portanto, estava enraizado na pretensão de ser Deus – uma realidade que continua a assombrar a humanidade.

O Concílio nos convida a estarmos atentos ao nosso tempo, a discernir os sinais de Deus no mundo, a dialogar com a realidade presente, mas também a reconhecer que a fé não é algo estático. Ela exige recepção, reescritura e, acima de tudo, uma profunda humildade diante da tentação de ocupar o lugar de Deus. A modernidade que enfrentamos hoje é marcada não apenas pela ausência de Deus, mas pela tentativa de substituir Deus. A Igreja, em sua missão de ser sinal de salvação, é chamada a resistir a essa tentação e a testemunhar, com fidelidade, a verdade da fé.

Na modernidade atual, nos deparamos com uma realidade muito mais plural e simbólica do que no passado, caracterizada por uma diversidade cultural e religiosa significativa. O desafio da Igreja hoje não se limita ao ateísmo clássico ou àqueles que negam a existência de Deus. O cenário contemporâneo inclui uma vasta gama de pessoas que, embora afirmem acreditar em Deus, moldam essa crença de acordo com suas próprias conveniências, criando versões personalizadas de divindade, numa efetiva customização da fé.

Quando falamos de ateísmo, podemos nos referir tanto à rejeição espontânea da ideia de um mistério transcendente quanto à abordagem científica que descarta tudo o que não pode ser empiricamente comprovado. O ateísmo científico, em particular, adota uma visão de mundo que exclui Deus, limitando-se a investigar apenas o que é verificável. No contexto conciliar, o grande desafio para a Igreja era precisamente essa ascensão do ateísmo científico e a modernidade marcada por essa visão de mundo.

Apesar dos desafios, a Gaudium et Spes revela um otimismo em relação ao mundo moderno. O Concílio reconhece a existência de um humanismo que, embora ateu, ainda valoriza a dignidade humana e as aspirações por justiça, paz e solidariedade. 

2. A Gaudium et Spes e a questão pastoral fundamental 

A pergunta pastoral que surge é: como a Igreja pode falar de um Deus que se fez homem, que se humanizou, para uma sociedade que adota um humanismo sem Deus? Esse dilema é central para a Constituição Pastoral que busca um diálogo com essa modernidade, sem negar a realidade do humanismo ateu, mas buscando formas de apresentar a mensagem cristã de maneira relevante. A questão pastoral se desdobra em três perguntas fundamentais: Que Evangelho estamos pregando? Que sociedade é essa na qual a Igreja está inserida? E que Igreja é essa que dialoga com essa sociedade?

O texto pastoral conciliar reflete sobre o dilema da condição humana, considerando tanto aqueles que creem quanto os que não creem. Joseph Ratzinger e Karl Rahner, teólogos de grande influência durante o Concílio, enfatizaram que a Igreja não pode ignorar a complexidade dessa condição humana. Entre os crentes pode haver práticas que não correspondem à fé professada, enquanto entre os não-crentes, podem existir atitudes que se alinham com os ensinamentos cristãos, mesmo sem a adesão explícita à fé (Cf. RAHNER, p. 09).

Essa tensão revela a existência de um cristianismo explícito, vivido e confessado, e de um cristianismo implícito, presente nas atitudes de pessoas que, embora não professem a fé, agem de acordo com princípios cristãos. A Gaudium et Spes nos lembra que a Igreja deve estar atenta a essa realidade contraditória, buscando sempre o diálogo e a compreensão, sem perder de vista o Evangelho que proclama.

Aqui vemos que, no desenrolar das práticas cristãs, os valores evangélicos nem sempre se manifestam de maneira plena. Muitas vezes, o que Jesus ensinou para não ser feito entre os seus seguidores parece ser invertido, sendo praticado até de forma mais acentuada. Se em outras nações há disputas de poder, rivalidades e hostilidades, essas questões podem aparecer, de forma ainda mais grave, entre os crentes.

Ratzinger e Rahner destacam que a ação do crente, por si só, nem sempre reflete a totalidade da fé. Em outras palavras, a fé pode não ser visível nas ações daqueles que acreditam, e o Evangelho pode não ser vivido de maneira efetiva. Ao mesmo tempo, não é justo demonizar o não-crente, como se a falta de fé necessariamente tornasse alguém menos digno. Pelo contrário, muitos não-crentes podem realizar ações humanizadoras, cheias de ternura e bondade, mostrando que a bondade não está restrita aos que professam a fé.

Assim, o dilema da condição humana deve ser abordado de maneira dialética, reconhecendo que sempre será necessário questionar a verdade e a autenticidade das experiências e ações. Christoph Theobald, em sua análise da Gaudium et Spes, introduz o conceito de gramática gerativa, um termo originalmente cunhado por Noam Chomsky, que sugere que a gramática é gerada pelas falas e contextos de fala, mas, mais importante, pelos sujeitos falantes. Em outras palavras, as pessoas, ao falar, criam uma forma particular de discurso e de diálogo (THEOBALD, p.06).

2.1. As várias línguas da Gaudium et Spes

A Constituição Pastoral parece dotada dessa gramática gerativa, pois traz em seu texto expressões cunhadas a partir do contexto conciliar. A pergunta que surge, então, é: quais são essas línguas faladas na Gaudium et Spes e quem são os sujeitos falantes?

A língua fundamental da Gaudium et Spes é a linguagem da fé, uma fé centrada no Evangelho de Jesus. Os sujeitos falantes são os homens e mulheres de fé que constituem a Igreja, formando o único Povo de Deus. O Papa Francisco, ao relembrar a Gaudium et Spes na Evangelii Gaudium, enfatiza que o que há de eminentemente infalível no cristianismo e na Igreja Católica é o povo de Deus quando crê (sensus fidei) (EG n. 119).

A infalibilidade do Povo de Deus não é uma qualidade intrínseca, mas sim uma consequência da ação do Espírito Santo. Na festa de Pentecostes, a liturgia nos lembra que "nada é possível sem o Espírito Santo". Mesmo a capacidade de pronunciar o nome de Deus nos é dada pelo Espírito (...). Portanto, o povo que fala, e fala a partir da sua fé, torna-se infalível, não porque é infalível por si mesmo, mas porque o Espírito Santo atua nele no ato de crer. Este é o verdadeiro sentido da fé do povo, o sensus fidei.

Hoje, ao analisarmos a característica de gramática gerativa dentro da Gaudium et Spes, vemos um fenômeno atual: a tentativa de digitalizar a mente e a humanidade por meio das inteligências artificiais. O software apache, utilizado em UTIs, exemplifica isso. Ele é capaz de avaliar e tomar decisões sobre a continuidade do tratamento de pacientes com base em dados, desativando aparelhos quando a perspectiva de vida é considerada nula.

Esse processo revela uma substituição do julgamento humano pela máquina. A inteligência artificial, apesar de sua sofisticação, não possui moralidade ou consciência. A moralidade é uma característica exclusivamente humana, que a máquina não pode replicar. Portanto, a expansão da humanidade oferecida pela IA não é verdadeira expansão, mas uma artificialização, onde a consciência e a responsabilidade são eliminadas do processo decisório.

Embora a IA possa ser vista como uma extensão da capacidade humana, ela apenas executa ações baseadas em dados e programação, sem significado ou sentido profundo. Essa abordagem leva à desumanização, onde a responsabilidade moral e ética é deslocada da pessoa para a máquina.

O cenário atual, com uma humanidade marcada por tentativas de digitalização e artificialização, levanta a questão sobre o verdadeiro significado da humanidade. Antes o foco estava em uma humanidade sem Deus e desencantada. Hoje, enfrentamos um dilema similar, mas em vez de uma ausência de Deus, lidamos com uma ausência de significado e responsabilidade devido ao domínio das tecnologias digitais.

Portanto, a questão não é apenas sobre o avanço tecnológico, mas sobre como essas inovações afetam nossa compreensão do ser humano e dos valores essenciais, como moralidade e responsabilidade. A Gaudium et Spes continua relevante ao nos desafiar a refletir sobre como nossa modernidade, marcada por novas formas de artificialização e expansão tecnológica, lida com essas questões fundamentais.

Hoje, temos uma humanidade inflacionada de deus, mas não o Deus de Jesus; é o deus de si próprio, o deus do lucro, do avanço tecnológico e do poder. A ausência de Deus tipifica o ateísmo, e a inflação de divindade caracteriza a idolatria. Enfrentamos uma constelação histórico-teológica onde a Igreja busca responder a desafios contemporâneos: uma humanidade que artificializa a mente e tenta expandir sua própria humanidade, mas que deixa a responsabilidade e a consciência de significados aquém da expansão. Também há uma humanidade expropriada de sua espiritualidade, buscando significados básicos de pertença e sentido além da materialidade da vida.

A teologia da fé na Constituição Pastoral é marcada por um otimismo cristão, visualizando um cristianismo explícito e implícito. A Igreja, ao dialogar com o mundo, por vezes se encantou mais com o que o mundo oferecia do que com o divino. A racionalidade e o prestígio do mundo podem influenciar, mas há um excesso de otimismo cristão. Hoje, a questão é se a humanidade expandida tecnologicamente consegue se afirmar coletivamente como humana e livre. A Igreja ainda percebe e considera o dado natural da fé que fundamenta as convenções humanas e sociais? Ou a fé é desconsiderada? Mesmo que as pessoas não creiam em Cristo ou em Deus, elas ainda pautam suas relações pela credibilidade.

No contexto tecnológico atual, surge a pergunta sobre a responsabilidade ética e moral relacionada ao avanço das inteligências artificiais, como o software apache. Esse software, ao tomar decisões automatizadas sobre pacientes em UTIs, desloca a responsabilidade moral para a máquina. Isso levanta questões sobre a consciência e os princípios dos criadores do software e sobre como lidamos com a responsabilidade da ação.

A Gaudium et Spes introduz a ideia de que nada do que é humano é alheio à Igreja. A Igreja deve estar envolvida com as realidades humanas, incluindo a alegria, esperança, angústia e sofrimento. O cristianismo não é uma ideia vaga, mas uma pessoa – Cristo – que revela tanto Deus quanto o ser humano. A fé é uma relação, e Deus se faz humano para revelar a humanidade a si mesma (DCE n. 01).

Portanto, a Igreja deve estar atenta às realidades contemporâneas, incluindo a complexidade e a diversidade das situações. A escuta dos sinais dos tempos e o discernimento sobre como criar liberdade e comunhão em meio a rupturas e violências são desafios constantes. O sujeito do discernimento dos sinais dos tempos hoje é a comunidade de fé, a Igreja, que deve interpretar e responder às exigências e aspirações da humanidade.

Hoje, a humanidade contemporânea prospera no individualismo e no isolamento. Isso cria uma dificuldade em se reconhecer como um todo, em todas as suas gerações humanas. Este desejo de coletividade, que é fundamental para a fé e a esperança, enfrenta um desafio significativo em um mundo onde a interação coletiva e a inclusão dos últimos são frequentemente negligenciadas. A questão crucial é como a Igreja pode reconhecer e responder a essa humanidade que, ao se fechar em si mesma, se desvia de um verdadeiro sentido de humanidade. Como pode a Igreja, cuja missão primordial é formar e fortalecer a comunidade, lidar com essa realidade?

3. A intertextualidade da Gaudium et Spes 

Quando discutimos os sinais dos tempos, frequentemente nos voltamos para o Concílio Vaticano II, especialmente para a Constituição Pastoral Gaudium et Spes. Contudo, é importante considerar que esses textos conciliares têm uma intertextualidade significativa. Theobald ressalta que temas fundamentais da fé não são tratados exclusivamente em um único documento, mas atravessam vários textos do Concílio. Assim, para compreender plenamente um tema, é necessário analisar como ele é abordado em diferentes documentos, como a Dei Verbum, a Lumen Gentium, a Dignitatis Humanae, o Ad Gentes e a Sacrosanctum Concilium, etc.

A Declaração Dignitatis Humanae oferece uma perspectiva importante sobre a vocação fundamental da humanidade ao desenvolvimento. Em consonância com isto, Bento XVI afirma na encíclica Caritas in Veritate que todo ser humano tem a vocação de se desenvolver plenamente (CV n. 11). Qualquer perspectiva que limite ou negue esse desenvolvimento humano é vista como pecaminosa, pois impede a realização do potencial dado por Deus.

Essa vocação ao desenvolvimento humano é uma forma da revelação divina, presente em vários textos conciliares, e supera a ideia de uma separação entre Igreja e mundo. Deus se revela ao homem no mundo, e, portanto, o mundo é também o lugar da revelação de Deus e da ação pastoral. Esta busca comunicar e compartilhar a experiência de Deus, acontece dentro das realidades do mundo.

O conceito de sinais dos tempos, ancorado no Evangelho de Mateus 16,3, desafia a Igreja a perceber os sinais de Deus na vida cotidiana. Deus se revelou em Cristo, e, como Bento XVI destaca na Verbum Domini, Jesus é a palavra de Deus resumida, expressando tudo o que Deus tinha para dizer. Jesus revelou Deus plenamente até o silêncio da cruz. A revelação se realiza e se consolida em Cristo, que continua a falar à humanidade (VD n. 11-13).

Através do encontro com Jesus, a humanidade é convidada a viver com o dinamismo de Cristo. A vida cristã deve refletir o esvaziamento (kénosis), a encarnação, o sacrifício na cruz e a plenitude da ressurreição. Em Cristo, está tudo o que podemos saber e viver de Deus. Cristo é o caminho para encontrar e viver com Deus, e a resposta da fé deve seguir esse modelo.

A Constituição Pastoral ressalta que, no mundo onde Deus se revela, também se manifestou a plenitude da revelação que é o Deus humanizado, Jesus de Nazaré. Ele, vivo, morto e ressuscitado, expressa inteiramente o ser de Deus para o mundo e continua, de modo ininterrupto, a interpelar essa humanidade ao encontro com Deus. O espaço-tempo do encontro inicial até o término da vida é onde se manifestam os sinais dos tempos. Não se deve confundir sinais dos tempos com tragédias naturais, como a Covid-19 ou as enchentes no Rio Grande do Sul em 2024. Se Deus precisasse de tais tragédias para falar à humanidade, isso seria absurdo sadismo. 

O critério fundamental para entender os sinais dos tempos é que nada do que é de Deus prescinde de Cristo, e nada do que é de Cristo prescinde do humano. Tudo que é humano, no esforço de responder a Deus como expressão de vivência da fé, pode se constituir em sinal dos tempos. Estes sinais emergem na vida da humanidade por meio das ações de pessoas tocadas direta ou indiretamente pelo Evangelho, que tentam responder a Deus.

Quando se forma uma comunidade em um ambiente dominado pelo individualismo e isolamento, essa comunidade, que se forma naquele lugar, é um sinal dos tempos. Quando, mesmo em meio à morte e falta de perspectiva, começa a surgir uma ação de promoção da vida, restaurando e reconstruindo a vida através da fé, isso também é um sinal dos tempos.

Devemos superar a ideia casuística de que sinais dos tempos estão associados a interpelações materiais e exteriores. O sinal dos tempos passa pela humanidade crente, pela humanidade que crê em Deus. É a ação realizada por causa da fé e de Deus que constitui o sinal. Mesmo quem não tem fé em Deus pode realizar ações significativas. O Concílio responde que, embora a Igreja contenha os sinais da salvação e seja sacramento universal de salvação, Deus não está preso à Igreja. Ele é infinitamente maior do que ela. A salvação oferecida é um dom de Deus e pode ser concedida a quem Ele desejar. As sementes do Verbo podem ser encontradas também fora dos espaços explicitamente cristãos católicos (AG n. 15).

O critério fundamental é Cristo. Se a Igreja deseja dialogar com o tempo, o ponto de partida deste diálogo é a fé. Ela não vai dialogar com o tempo a partir de análises sociológicas da realidade; essa não é a sua especialidade. Ela dialoga com o tempo a partir da sua experiência de fé em Deus, mesmo que possa ser subsidiada por outros campos epistemológicos.

A comunidade eclesial busca ir ao encontro das pessoas para ajudá-las a superar suas dificuldades e viver uma experiência de humanização, não porque elas merecem ou porque a Igreja conclui logicamente que são vítimas de injustiças sociais, mas porque ama a Deus. O encontro com Deus motiva a Igreja a encontrar os irmãos, especialmente os mais necessitados. O imperativo é de fé. A ação é primordialmente por causa da fé. A leitura dos sinais dos tempos ocorre a partir da fé.

O Deus em quem a Igreja crê não é um Deus metafísico ou aristotélico. O Deus proclamado na Constituição Pastoral é um Deus que assumiu a carne humana para ajudar a humanidade a ser humanizada. Ele assumiu a carne humana para humanizar a humanidade com a sua divindade. Cristo, que revela Deus à humanidade, revela também a humanidade à própria humanidade. Nesse sentido, os sinais irrompem na vida a partir das ações humanas. Podemos perceber que Deus continua a interpelar, se nos dispusermos, como comunidade, a prestar atenção nesses sinais.

Assim, nas nossas comunidades, no dia a dia, nas paróquias, em comunidades pequenas, médias ou grandes, nas ações de nossas comunidades, tudo isso é onde irrompem os sinais dos tempos. Não precisa ser algo grandioso e extraordinário para ser percebido como sinal dos tempos. Deus continua a se manifestar continuamente. Admitir a existência de sinais dos tempos é reconhecer que Deus não se deteve inerte; Ele continua vivo e agindo. A forma de Deus agir é na ação dos crentes. A ação de Deus se dá na ação dos que creem. Jesus nos possibilitou isso e nos incorporou nessa missão. Por isso, a missão da Igreja nasce da missão de Jesus. A missão é maior do que a Igreja, e a Igreja surge dentro dessa missão.

Conclusão

A Gaudium et Spes é um texto que, do ponto de vista pastoral, ainda não foi suficientemente recebido. Por isto, também não foi suficientemente reescrito. Toda recepção implica em reescritura, e se não houver recepção, não haverá reescritura. Portanto, é ainda necessário viver o seu dinamismo metodológico. Ela não é apenas um conjunto de conteúdos pastorais ou pistas pastorais, mas um estilo metodológico de ação pastoral, que mostra, na proximidade com a realidade, a ação fundamental da Igreja. A Igreja se esforça em dialogar com o tempo e com o mundo a partir da percepção e do reconhecimento dos sinais dos tempos, ou seja, daquilo que Deus continua a dizer à humanidade através daquilo que a humanidade faz, em resposta à fé em Deus.

Podemos ver que Papa Francisco tem no rosto e no coração a Gaudium et Spes. Ele está reescrevendo, ou retraduzindo para nós, essa esperança e alegria que o mundo e a Igreja precisam. Seus textos trazem uma ênfase em misericórdia e tolerância. A Igreja sinodal é essa atitude perante o mundo, mesmo quando nem sempre temos resposta. Esse homem, manco, pastor limitado, ainda peregrinando em cadeira de rodas, é uma página de reescritura da Gaudium et Spes, sem deixar de lado os aspectos mais importantes. Isso significa que ele é mais performático do que propriamente locucionário, mais de demonstrar nas suas ações uma densidade comunicativa do que formular proposições de efeito. A Gaudium et Spes é performática, não é um conjunto de teses. 

Então, Francisco é um indivíduo, um interagente pastoral, que no concreto da experiência pastoral dele, se esforçou para viver o aspecto concreto da Gaudium et Spes, dialogar com o mundo, enquanto Igreja, viver a conversação espiritual.

 

Referências

BALTHASAR, Hans Urs Von. A Verdade é Sinfônica: aspectos do pluralismo cristão. São Paulo: Paulus, 2016

BENTO XVI. Carta Encíclica Deus Caritas Est, sobre o Amor cristão. São Paulo: Paulus, 2006. 

___________ Exortação Apostólica Pós sinodal: Verbum Domini, sobre a palavra de Deus na

vida e na missão da Igreja. São Paulo : Paulus, 2010.

___________ Carta Encíclica Caritas in Veritate, sobre o desenvolvimento humano integral na caridade na verdade. São Paulo : Paulus, 2009 

DOCUMENTOS DO CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II [col. Documentos da Igreja]. 7ª reimpressão. São Paulo: Paulus, 2017  

FRANCISCO, Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, sobre o anúncio do Evangelho no

mundo atual. São Paulo: Paulus, 2013

RAHNER, Karl. Nature and Grace. Dilemmas in the Modern Church. New York (NY): Sheed

and Ward, 1964.

THEOBALD, Christoph. As grandes intuições de futuro do Concílio Vaticano II: a favor de uma “gramática gerativa” das relações entre Evangelho, sociedade e Igreja. [Cadernos Teologia Pública Ano X – Nº 77 – 2013]. São Leopoldo: Instituto Humanitas Unisinos, 2013. Disponível on line em:

https://www.ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/teopublica/077_cadernosteologiapublica.pdf. Acesso em 28.10.2024