O diálogo do ser humano com a natureza em Buber e Papa Francisco: Conexões & linguagem

The dialogue between human beings and nature in Buber and Pope Francis: Connections & Language

Marcial Maçaneiro
Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG-Roma). Professor de Teologia no Programa de Pós-graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. (PUCPR). Contato: marcialscj@gmail.com

Maycon Renan da Silva Santos Boni
Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Contato: mayconrenan2@hotmail.com

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Resumo: Martin Buber, em sua filosofia do diálogo, destaca que o ser humano pode estabelecer relação com a natureza. Papa Francisco na Laudato si’ infere que o ser humano pode estabelecer diálogo com a terra (Criação). Neste sentido, o presente artigo procura desenvolver conexões existentes entre ambos os autores nos seguintes pontos: 1) existe a revelação divina na Criação; 2) é preciso o reconhecimento do valor intrínseco de cada criatura; 3) é importante a capacidade de contemplação da natureza que gera apreço e encontro; 4) é urgente a correção de um antropocentrismo unilateral que reduz as criaturas como um Isso (objeto); 5) é necessário ter a vida virtuosa em relação à natureza que é a capacidade invocar os afetos e a consciência diante do outro; 6) é imprescindível a capacidade de escuta da palavra proferida pela própria natureza que se comunica mesmo através do silêncio; 7) a linguagem da fraternidade e da beleza; tal linguagem é criadora de relação, é educativa e com poder transformador.

Palavras-chave: Diálogo. Relação; Natureza; Criação; Martin Buber; Papa Francisco

Abstract: Martin Buber, in his philosophy of dialogue, highlights that human beings can establish a relationship with nature. Pope Francis in Laudato si’ infers that human beings can establish dialogue with the earth (Creation). In this sense, this article seeks to develop existing connections between both authors on the following points: 1) there is divine revelation in Creation; 2) recognition of the intrinsic value of each creature is necessary; 3) the ability to contemplate nature is important, which generates appreciation and encounter; 4) it is urgent to correct a unilateral anthropocentrism that reduces creatures as an It (object); 5) it is necessary to have a virtuous life in relation to nature, which is the ability to invoke affections and conscience in front of others; 6) the ability to listen to the word spoken by nature itself, which communicates even through silence, is essential; 7) the language of fraternity and beauty; Such language creates relationships, is educational and has transformative power.

Keywords: Dialogue; Relationship; Nature; Creation; Martin Buber; Pope Francis

Introdução

O livro do Gênesis narra que Deus, ao criar todas as coisas, viu que tudo era bom e belo: tov – como dito em hebraico (Gn 1,4.10.12.18.21.25). O Gênesis narra ainda que dentre muitas criaturas, Deus modelou o ser humano e o dotou de sopro vivente (Gn 2,7); depois o abençoou e estabeleceu como jardineiro da criação (Gn 2,15); o ser humano deve zelar pelas criaturas, pois todas são boas e pertencem em sentido último a Deus: “Do Senhor é a terra e a sua plenitude, todo o orbe e os que nele habitam” (Sl 24,1). 

Entretanto, a leitura instrumental desta fonte bíblica, aliada às tecnologias de exploração, levantou indagações sobre a responsabilidade cristã na crise ecológica, como apontou Lynn White (1967). A cosmovisão cristã ocidental, especialmente a partir da Modernidade, tem sido marcada por uma cisão entre ser humano e natureza, de moldes mais gregos do que judaicos. Isto nutriu uma visão antropocêntrica muitas vezes unilateral, com o ser humano definido racionalmente em contraste com a natureza, tratada como recurso objetivo a ser explorado, em total benefício dos humanos – como se tal conduta derivasse de uma ordem do Criador. Como sabemos, esta percepção tornou-se usual na Primeira Modernidade, até a emergência de uma nova hermenêutica à luz do propósito igualmente bíblico de “guardar e cultivar” a Terra (Gn 2,15).

Foi à luz desta hermenêutica que muitos biblistas, teólogos, antropólogos e educadores somaram esforços para revisar a relação humanidade-natureza, enfrentando questões teóricas e práticas em atenção ao meio-ambiente, resultando no que hoje entendemos como ecoteologia. Opera-se uma releitura da teologia clássica da Criação, em diálogo com as Ciências, em face da recente crise social, ambiental e climática. Como observa Murad (2013, p. 140), “a ecoteologia amplia a ética cristã e a espiritualidade, ao incluir o cuidado com o ecossistema e a contemplação da natureza”. Vários trabalhos foram e têm sido propostos a respeito da questão ecológica, que despontou inclusive como tema do magistério pontifício, gerando um capítulo próprio do pensamento social católico (cf. PCJP, 2004, n. 466-487) – até a encíclica Laudato Si’ de Papa Francisco (LS, 2015), com seu recente adendo Laudate Deum (LD, 2023). Com esta encíclica, o tema se estabelece oficialmente como um capítulo da Doutrina Social da Igreja. O Papa denuncia as agressões feitas ao meio ambiente, e salienta que tudo aquilo que agrega para a construção de uma ecologia integral, não deve ser deixado de lado. De modo propositivo, Francisco afirma o valor do planeta como Casa Comum, conclamando as religiões, os governos e as ciências ao “diálogo interdisciplinar” sobre a “complexa crise socioambiental” de nossos dias (LS, 197 e 139 respectivamente). 

No horizonte desse encontro de religiões e saberes (cf. LS,14, 144-190 e 201) Francisco assevera que “a Igreja Católica está aberta ao diálogo com o pensamento filosófico – o que lhe permite produzir várias sínteses entre fé e razão” (LS, 63). A partir dessa afirmação, decidimos revisitar o pensamento de Martin Buber, particularmente a sua filosofia do diálogo, para ensaiar uma aproximação à encíclica Laudato Si’ e colher, desse modo, a linguagem da Casa Comum que essas duas fontes propõem. Com efeito, na sua obra Eu e Tu, Buber diz claramente que é possível ao ser humano estabelecer uma relação com a natureza nos moldes modernos da ética e da racionalidade, em atitude responsável e conectiva perante a Criação. Portanto, a aproximação entre Buber e Papa Francisco nos soa promissora para o cuidado da Casa Comum, com suas respectivas linguagens.

É evidente que para uma ecologia integral, não basta apenas a relação do ser humano com o meio-ambiente, por mais complexa que seja; mas se invoca também a relação humana com os outros humanos e com Deus – o Outro absoluto – como sugere Papa Francisco (cf. LS, 81). Temos, assim, as três esferas dialógicas fundamentais para a perspectiva integral da ecologia: relação com a natureza; relação com o outro humano; relação com o Criador. Neste sentido, como veremos, Buber e Papa Francisco se aproximam nas suas respectivas proposições para uma humanidade e uma ecologia integrais, convergindo na linguagem, embora distintos na época. No marco desta distinção, Buber não trata explicitamente sobre a ecologia, mas desenvolve uma filosofia do diálogo na qual se tocam a humanidade e a natureza, com uma preocupação existencial próprio do seu tempo (1878-1965). 

Por outro lado, Buber e Papa Francisco se tocam no quadro reflexivo de uma humanidade em diálogo perante si mesma (enfoque antropológico) e perante a inteira Criação (enfoque ecológico). Assim, o presente artigo retoma a concepção buberiana de diálogo, com suas duas possibilidades para o existir humano: relação Eu-Tu e relação Eu-Isso (cf. Buber, 1982 e 2006). A primeira, interroga a relação com o outro; a segunda, questiona a relação com a natureza em geral. Neste sentido, Buber se posiciona na esfera de relação do ser humano com a natureza, abrindo-nos passagem à recente contribuição de Papa Francisco para a ética, a espiritualidade e o cuidado da Criação segundo Laudato Si’ (2015) e Laudate Deum (2023).

1. O diálogo na concepção de Buber

A primeira esfera na qual o ser humano pode estabelecer relações é a esfera da natureza, ou melhor, dos seres da natureza. Buber entende relação como reciprocidade de diferentes níveis, não apenas nocionais, mas existenciais, incluindo possibilidades dialógicas. Nesse sentido, o ser humano pode estabelecer relação e diálogo com a natureza, sendo que tal diálogo vai desde os animais até os seres inanimados. No entanto, antes de ponderar sobre esta específica proposição de Buber, é necessário compreender alguns elementos fundamentais de sua filosofia.

De acordo com Von Zuben (2003, p. 167), a concepção de diálogo para Buber é atípica, pois se recusa a tratá-lo simplesmente como processo psicológico ou mero meio para se comunicar. Martin Buber situa a análise do princípio dialógico antes da existência dialógica, no âmbito mais amplo do questionamento a respeito da existência humana. O que realmente tem importância, mais do que uma reflexão sistemática, é a vida concreta.

Aliás, o próprio Buber não somente refletiu e escreveu a respeito do diálogo, mas procurou vivê-lo no seu percurso histórico. Buber, por exemplo, recebeu influência não só de autores que estudou, mas sobretudo de amizades, de relações profundas e marcantes que ele cultivou durante toda a sua vida. O diálogo, em Buber, não é um tema sobre o qual escreve, mas antes de tudo uma disposição vital: ele foi um homem do diálogo. Por isso, “diálogo é uma categoria que pode servir de via de acesso à compreensão da obra de Buber. Diálogo foi o tipo de compromisso de relação que a vida e a obra deste autor selaram entre si” (Von Zuben, 2003, p. 70).

Numa das obras, tratando de sua autobiografia, Buber explica que “as muitas experiências ruins com homens alimentam o meu mercado da vida, como o livro mais nobre não conseguiria; e as boas [experiências] transformaram-me a terra em jardim” (Buber, 1991, p. 63). Para ele, as experiências interpessoais vividas têm trazido mais riquezas do que os livros. Não que estes sejam desprovidos de valor – pois sim, valem muito – mas porque os seres humanos enriquecem mais a vida, feita de relações. Ele prefere os seres humanos aos livros. Ainda sobre isso, o filósofo pondera:

eu não sabia nada de livros quando me evadia do colo de minha mãe, eu quero morrer sem livros, com uma mão humana na minha. Agora, é verdade, eu fecho por vezes a porta de meu quarto e entrego-me à leitura de um livro, porém apenas porque posso abrir a porta novamente, e um homem levanta os olhos em minha direção. (Buber, 1991, p. 64)

Buber, portanto, foi homem de diálogo, de relação, de encontro. O modo como percorreu a vida marcou profundamente a sua reflexão, atenta às relações mais do que às noções teóricas. Aliás, muitas categorias do seu pensamento nasceram de sua concretude existencial. 

O filósofo nos conta, por exemplo, de onde surgiu sua compreensão do significado de encontro e desencontro. Buber nos reporta que, por volta dos quatro anos de vida, seus pais se separaram e ele foi levado para a casa dos avós paternos em Lwow (Lemberg), que à época era a capital do reino da Galícia (ou Polônia Austríaca), do Império Austro-Húngaro, onde prosperava uma significativa comunidade judaica. No entanto, sobre a separação de seus pais, nada se falava na casa dos avós em sua presença. Ele mesmo, embora desejoso de ver a mãe, não fazia perguntas sobre ela. Até que um dia, no pátio da casa dos seus avós, uma menina um pouco mais velha que cuidava dele, ao ouvir Buber comentar algo de sua mãe, afirmou: “Não, ela não volta nunca mais” (1991, p. 8). Buber prossegue: 

Sei que fiquei mudo, mas também não nutri nenhuma dúvida quanto à verdade da palavra dita. Ela permaneceu agarrada a mim e agarrava-se, de ano a ano, sempre mais ao meu coração. Já depois de mais ou menos dez anos, eu havia começado a senti-la como algo que não dizia respeito somente a mim, mas também ao ser humano. Mais tarde, apliquei a mim mesmo o sentido da palavra “desencontro”, através da qual estava descrito, aproximadamente, o fracasso de um verdadeiro encontro entre os seres humanos. Quando após outros vinte anos, revi minha mãe, que viera de longe visitar a mim, minha mulher e meus filhos, eu não conseguia olhar nos seus olhos, ainda espantosamente bonitos, sem ouvir de algum lugar a palavra “desencontro” como se fosse dita a mim. Suponho que tudo o que experimentei, no correr da minha vida, sobre o autêntico encontro, tenha a sua primeira origem naquela hora na galeria. (Buber, 1991, p. 8)

            Diálogo é encontro, é presença, é relação, segundo Buber. Se não for bem compreendido, esse pensador pode ser considerado como um utopista, um sonhador; pois num contexto em que o ser humano pensa cada vez mais em si próprio e pouco ou nada nos outros, o diálogo se torna cada vez mais difícil. 

Para Buber, existem basicamente três formas de diálogo. A primeira forma de diálogo é o ‘autêntico’ – que pode ser falado ou silencioso. Este diálogo pode dar-se no silêncio, com o encontro recíproco verdadeiro, numa comunicação até mesmo sem palavras. Nesta forma de diálogo, cada pessoa tem em mente a outra - ou os outros – na sua presença e no seu modo de ser, e nesse sentido, volta-se a eles com a intenção de estabelecer entre estes e si própria uma reciprocidade viva. Buber salienta que essa primeira espécie de diálogo se tornou rara. E onde essa surge, por mais ‘não espiritual’ que seja sua forma, traz consigo o testemunho do espírito humano que se perpetua (Buber, 1982, p. 53-54). Essa primeira forma de diálogo é tida como diálogo autêntico por ser desinteressado; um diálogo que transcende o egoísmo em vista da relação com o outro.

A segunda forma, segundo o filósofo, é o ‘diálogo técnico’ movido pela necessidade de um entendimento objetivo (Buber, 1982, p. 54). Essa forma de diálogo “faz parte dos bens essenciais e inalienáveis da ‘existência moderna’, embora o diálogo verdadeiro ainda aqui se esconda em toda espécie de rincões e surja ocasionalmente, de uma forma inconveniente” (Buber, 1982, p. 54). Ao que ele acrescenta: “[este diálogo técnico é] mais frequentemente tolerado com arrogância do que realmente escandalizando”; e “aparece talvez na tonalidade da voz de um condutor de trem, no olhar de uma velha vendedora de jornais, no sorriso do limpador de chaminés” (Buber, 1982, p. 54). Assim, a segunda forma de diálogo está ligada ao comercial, à função de resultados pretendidos, às expressões do mercado, enfim, a interesses.

A terceira forma de diálogo é o ‘monólogo disfarçado de diálogo’ (Buber, 1982, p. 54). Nesta forma podem atuar duas ou até mais pessoas, num mesmo local: tais pessoas falam, mas cada uma consigo mesma, sem reciprocidade. Esta forma de diálogo pode dar-se como

Um debate, no qual os pensamentos não são expressos da forma em que existiam na mente mas que, no ato de falar, são tão aguçados que podem acertar o ponto mais sensível e isto sem considerar os indivíduos com quem se fala como pessoas presentes; uma conversação, que não é determinada nem pela necessidade de comunicar algo, nem por aquela de aprender algo, nem de influenciar alguém, nem de entrar em contato com alguém, mas é determinada unicamente pelo desejo de ver confirmada a própria autoconfiança, decifrando no outro a impressão deixada, ou de tê-la reforçada quando vacilante; uma conversa amistosa, na qual cada um se vê a si próprio como absoluto e legítimo e ao outro como relativizado e questionável; um colóquio amoroso, em que tanto um parceiro quanto ao outro se regozija no esplendor da própria alma e na sua vivência preciosa: - que submundo de fantasmas sem rosto! (Buber, 1982, p. 54)

Portanto, neste diálogo monólogo, segundo o filósofo, as pessoas envolvidas não estão preocupadas em se encontrarem umas com as outras; tampouco desejam tomar conhecimento umas das outras, ou do outro; estando preocupadas apenas consigo mesmas, dissimulam os pensamentos que vem à mente. Pois num diálogo autêntico, fala-se coerentemente com o que se pensa, mesmo que isto desagrade o outro. Além disso, os integrantes do monólogo preocupam-se, sobretudo, com a imagem que deixam nas outras pessoas, longe de preocupar-se como o que de fato são. 

Vistas essas três formas, Buber diz que, para a vida dialógica, é necessário um ‘movimento básico’ qual ação interior da pessoa humana: ‘voltar-se-para-o-outro’ (Buber, 1982, p. 56). De alto valor, este mover-se ao outro não necessita ser raro ou sofisticado, mas sim ser honesto: pode acontecer a toda hora, no cotidiano de nossas vidas, quando de fato vemos alguém; quando falamos com alguém; como um movimento natural do corpo que voltamos para alguém. No entanto, quando fazemos isso, voltamos também a alma para o outro (Buber, 1982, p. 56). 

2. A existência como relação Eu-Tu e como relação Eu-Isso

Para bem compreendermos a dupla possibilidade de existência em relação – o Tu e o Isso), importa salientar a importância que Buber confere à palavra. Enraizado na tradição judaica, o autor relê este acervo milenar com olhos voltados ao presente. Como sabemos, o Judaísmo discerne na Criação do mundo a potência originária de dabar – a palavra: “Pela palavra do Senhor foram feitos os céus; pelo sopro de sua boca, as forças celestes todas; Ele falou e tudo se fez” (Sl 33,6.9). Von Zuben (2003, p. 120) recorda que “a dabar hebraica exprime, por assim dizer, a plenitude dinâmica do ser”. Com efeito, para “Buber, a palavra é portadora de ser. O homem fala, profere a palavra originária e fecundante da relação. A palavra princípio não é uma simples expressão verbal ou uma mera etiqueta, mas sim uma realidade que está intimamente ligada à essência do homem” (Von Zuben, 2003, p. 120).

De acordo com Buber, uma vez que o ser humano profere a palavra-princípio, ele fundamenta uma existência. Ou seja: a importância da palavra não se define pelo aspecto fonético ou linguístico, com suas normas e sua escrita, mas pelo teor existencial que carrega, nas dinâmicas de relação, vínculo e sentido que a mesma palavra comporta. A palavra tem peso existencial. Daí a preocupação de Buber com a palavra enquanto fundamento das relações do ser humano; a palavra dita ou manifesta na relação Eu-Tu ou Eu-Isso.

Neste sentido, Bartholo Jr. (2001, p. 79) observa que as relações Eu-Tu e Eu-Isso que Buber diferencia, vão além do discurso e da gramática, pois qualificam duas atitudes fundamentais do ser humano perante o mundo. O par Eu-Tu manifesta o encontro de parceiros na reciprocidade e na mútua confirmação; enquanto o par Eu-Isso significa a objetivação do outro, a requisição utilitária. Aliás, Buber entende Eu-Tu e Eu-Isso como palavras-princípio, palavras-atitude, feitoras ou não do diálogo autêntico. Por conseguinte, o Eu da palavra princípio Eu-Tu não é o mesmo Eu da palavra princípio Eu-Isso, mas caracterizam-se como dois ‘Eus’ não idênticos, a expressar duas possibilidades existenciais diferentes: a relação ontológica Eu-Tu disposta à reciprocidade; e a atitude objetivante Eu-Isso, que não acolhe o outro plenamente como sujeito. Segundo Buber:

O mundo é duplo para o homem, segundo a dualidade de sua atitude. A atitude do homem é dupla de acordo com a dualidade das palavras-princípio que ele pode proferir. As palavras-princípio não são vocábulos isolados, mas pares de vocábulos. Uma palavra-princípio é o par Eu-Tu. A outra é o par Eu-Isso no qual, sem que seja alterada a palavra princípio, pode-se substituir Isso por Ele ou Ela. Deste modo, o Eu do homem é também duplo. Pois, o Eu da palavra-princípio Eu-Tu é diferente daquele da palavra princípio Eu-Isso. (Buber, 2006, p. 53). 

À medida que o ser humano se defronta com outro ser[1] e profere a palavra-princípio Eu-Tu, ambos entram em relação. É importante entender que o ser humano é um ‘ser de relação’ no sentido de que esta não é algo de que se tenha posse: nem Eu nem Tu possuem, a sós, a relação, para concedê-la ao outro. Buber argumenta que a relação, para que ocorra, depende do outro com quem a mesma relação é estabelecida. Trata-se antes de reciprocidade e dádiva, do que de autodeterminação e posse. Também a intencionalidade de proferir a palavra-princípio não está isolada na consciência agente, mas se encontra como que no ínterim entre a consciência e o mundo, o outro ou o objeto com o qual é estabelecida a relação. Para o filósofo, o Tu vem ao meu encontro, não porque o procuro, mas por graça; em dádiva não determinada por minha intenção. Da parte do Eu é preciso que haja também um esforço e disposição para que aconteça tal encontro, como graça de minha parte. Por este caráter dadivoso e disponível do Eu ao Tu – e do Tu ao Eu – a relação que se dá jamais se repete, sendo única, exclusiva, original, sem repetir-se ou imitar-se uma à outra.

Assim, o ser humano, a cada atitude de proferir uma das palavras-princípio, se atualiza e fundamenta a sua existência no mundo. As palavras-princípio Eu-Tu ou Eu-Isso põem em ato o ser humano; o realizam; o fazem existir. O modo humano de existir, estabelecendo ou não relações, acontece de acordo com a palavra que a pessoa proferir. Nisto o filósofo deposita um peso ético e antropológico relevante, que qualificam a vida humana no mundo. Para Buber, ao ‘proferir’ Eu-Tu ou Eu-Isso a pessoa elege duas possibilidades diferentes de existência, diante das quais precisa tomar uma atitude. Importa escolher entre Eu-Tu ou Eu-Isso. Ao proferir Eu-Tu, o ser humano volta-se com a totalidade do Ser para o outro. Está disponível inteiramente para o diálogo, para a relação. Dispõe-se efetivamente ao encontro, em reciprocidade. Mas se proferir Eu-Isso, fecha-se ao encontro, negando a reciprocidade porque quer fazer do outro (seja o mundo, sejam as pessoas) um algo para sua experiência e uso. Neste caso, há muitas experiências possíveis; mas a relação só acontece quando houver abertura ao Tu, em condições de reciprocidade.

A palavra proferida, segundo Buber, tem peso existencial. Como observa Von Zuben (2003, p. 91), “não é o homem que é o condutor da palavra, mas é esta que o conduz e o instaura no ser”. Com efeito, Buber destaca a necessária abertura do ser humano à totalidade do Ser que se manifesta nas relações, de modo que Eu-Tu favoreça a plenitude do Eu-Ser: 

As palavras-princípio não exprimem algo que pudesse existir fora delas, mas uma vez proferidas elas fundamentam uma existência. As palavras-princípio são proferidas pelo ser. Se se diz Tu profere-se também o Eu da palavra-princípio Eu-Tu. Se se diz Isso profere-se também Eu, da palavra-princípio Eu-Isso. A palavra-princípio Eu-Tu só pode ser proferida pelo ser na sua totalidade. A palavra-princípio Eu-Isso não pode jamais ser proferida pelo ser na sua totalidade. (Buber, 2006, p. 53)

O Eu do ser humano, graças à doação do ser, profere a palavra-princípio; mas cabe a este mesmo ser humano aceitar ou não ao apelo do Ser, receptivo perante o outro. A condição para a existência do Eu é que seja proferida uma das duas palavras-princípio. Von Zuben (2003, p. 91) observa que, “sendo a palavra portadora do ser, o homem que a profere existe automaticamente graças a ela. Existir como Eu ou proferir a palavra-princípio é uma mesma coisa”. 

Portanto, para Buber, a vida dialógica acontece quando o ser humano profere o Tu; a partir daí ele entra em relação com o outro que lhe está defronte. Também fica esclarecido que quando o ser humano profere Isso, está tomando aquilo que lhe está defronte num sentido utilitário. O ser humano pode dizer tanto Tu quanto Isso, não só para objetos, mas também para pessoas. Neste caso, se proferir Isso ao seu semelhante, não existirá relação alguma. 

Por outro lado, o Isso participa de grande extensão das experiências humanas, no que se refere à objetividade da técnica, da lei e das produções. Bartholo Jr. (2001, p. 79) comenta que, sem o mundo do Isso, seria praticamente impossível assegurar a continuidade da vida humana, suprindo as necessidades que são vitais através de toda a variada gama de atividades técnicas, econômicas, institucionais, jurídicas e outras. É verdade que o mundo do Isso não se basta como fundamento ontológico do inter-humano; pois tal fundamento da existência acontece por meio da palavra Tu. Porém, a relação com o Isso não é um mal em todos os casos. O mal pode acontecer na escravidão humana a essa atitude, ou seja, querer viver só do Isso, sem estabelecer relação alguma, apagando da face do ser humano a disposição responsável que só pode dar-se na relação com o Tu.

Existente no mundo, a pessoa não vivencia apenas as relações do inter-humano; mas também com as demais esferas de relação, com os seres da natureza e inclusive os seres espirituais. A questão, para Buber, é distinguir a escolha fundamental: o ser humano pode viver com o Isso; mas não pode viver apenas do Isso. Um ser humano que, em tese, vive apenas do Isso já não seria humano, por fechar-se à relação com o Tu. Sendo ontologicamente um ser de relação, a humanidade se realiza – ou existe em pleno Ser – à medida que dialoga, que se encontra, que profere Eu-Tu. Esta é a palavra-princípio da existência em reciprocidade e diálogo autêntico.

 3. A relação do ser humano com a natureza

Para Buber, o primeiro tipo de relação é aquele da vida com a natureza: “nesta esfera a relação realiza-se numa penumbra como aquém da linguagem [...] da vida com a natureza podemos extrair o mundo ‘físico’, o mundo da consistência” (Buber, 2006, p. 55 e 119). Neste caso, para que a relação com a natureza aconteça, não há necessidade de palavras, mas de presença. Até porque a natureza não responde com palavras: a relação com a natureza, para Buber, está aquém da linguagem.

Von Zuben (2003, p. 97) nos alerta para equívoco simplificador de atribuir ao Tu, em Martin Buber, o significado de pessoa; e ao Isso, o significado de coisa, objeto ou algo determinado pela experiência. O encontro Eu-Tu não se dá exclusivamente nas relações inter-humanas, mas também na relação com qualquer ser que se esteja no face-a-face, presente ao Eu: uma obra de arte, uma pedra, uma flor, uma peça musical ou mesmo Deus. Similarmente, também o Isso pode ser qualquer ser, se for acolhido apenas como objeto de uso, de conhecimento ou de experiência de um Eu.

3.1 Conhecimento e diálogo com a natureza

Seja uma pessoa ou uma rocha, o diálogo não se define apenas pelo teor psicológico do encontro, mas pela presença ofertada no face-a-face. Este estar defronte possibilita ao Eu receber, ouvir, acolher a palavra que aquilo ou aquele me traz. Ao acolher a palavra, o Eu se põe na relação dialógica com o Tu – ao que Buber qualifica como ‘conhecimento íntimo’ em sentido existencial: 

[...] aquilo de que tomo conhecimento íntimo não precisar ser, de forma alguma, um homem; pode ser um animal, uma planta, uma pedra. Nenhuma espécie ou fenômeno, nenhuma espécie de acontecimento é fundamentalmente excluído do rol das coisas através da quais algo me é dito todas as vezes. Nada pode se recusar a servir de recipiente à palavra. Os limites de possibilidade do dialógico são os limites de possibilidade da tomada de conhecimentos íntimos (Buber, 1982, p. 43).

Na perspectiva buberiana é concebível uma relação com a natureza que seja autêntica e comunicativa, pelo ‘conhecimento íntimo’ que a mesma natureza proporciona ao dizer-se a mim, ao proferir sua ‘palavra’ ao Eu (Buber, 1982, p. 43). Mas como é possível que a natureza se diga a mim, desprovida de linguagem ao modo humano? – Buber argumenta que toda a natureza (a Criação, se quisermos) é “recipiente da palavra” e, portanto, possibilita o ‘conhecimento’; um ‘conhecimento’ da ordem da existência e da relação, invocador da presença e da responsabilidade; distinto da noção corrente de informação a respeito de um objeto. Conhecer intimamente o Tu – seja uma pessoa ou uma flor – implica acolher tal ser como ‘recipiente da palavra’ e não como um Isso (objeto de utilidade).

3.2 O exemplo da árvore

Na obra Eu e Tu, Buber cita o exemplo da árvore para clarificar a relação entre o ser humano e a natureza. Primeiramente ele descreve toda a estrutura da árvore, que a qualifica como um tipo ou espécie de estrutura e de vida. A descrição da árvore, num primeiro momento, se remete ao mundo do Isso: algo pertencente à experiência, pois a árvore é um organismo vegetal, com sua composição química, cor, imagem etc. A árvore expressa as leis do reino vegetal. Seu conhecimento informacional é do domínio da Botânica e da Química, que a catalogam dentro de determinadas categorias científicas. Por outro lado, segundo Buber, é possível ao Eu entrar ‘em relação’ com a árvore, numa presença simultânea a mim mesmo; relação dada por ‘vontade própria’ de fazer-se presente, não por utilidade, mas por ‘graça’ (Buber, 2006, p. 56). Quando a relação com a árvore acontece deste modo, esta já não pertence ao mundo do Isso, mas ao mundo do Tu. É uma relação em simultaneidade, irrepetível, dada especificamente no estar presente do Eu ao Tu, ainda que a natureza não se comunique por linguagem ao modo humano.

Buber inclui toda a natureza no quadro possível de uma relação Eu-Tu, uma vez que todos os fenômenos naturais dão-se simultaneamente à existência humana, sempre que os defrontamos como presença e palavra. Assim, uma árvore diz muito existencialmente, não apenas botanicamente. Essa possibilidade abrange as outras formas de vida natural, na diversidade de espécies, como por exemplo a água – cuja presença e palavra dizem mais do que a definição molecular de H2O. Nesse sentido, fica claro que o ser humano pode estabelecer com a árvore ou qualquer outro ser da natureza, tanto uma relação Eu-Tu quanto uma relação Eu-Isso. Acolher a natureza como Tu solicita do ser humano a vontade própria de estabelecer tal relação em graça e presença.

3.3 O encontro

Ao lado da presença, Buber menciona o encontro. Estar presente defronte ao Tu possibilita o encontro, como explica Von Zuben (2003, p. 93): “O encontro é algo atual, um evento que acontece atualmente, isto é, na presença. A relação engloba o encontro. Ela abre a possibilidade de uma nova relação. A relação – Beziehung – é uma possibilidade de atualização do encontro dialógico”. No caso da natureza, ainda que os seres minerais, vegetais e animais sejam desprovidos da dialogicidade consciente ao modo humano, estabelecem conosco verdadeira ‘relação’ e existencial ‘reciprocidade’ (Buber, 2006, p. 56). Presente “diante de mim, [a árvore] tem algo a ver comigo; e eu, se bem de modo diferente, tenho algo a ver com ela” – argumenta o autor (Buber, 2006, p. 56).

3.4 Reciprocidade com a natureza?

Ainda no livro Eu e Tu, o autor comenta sobre o ‘Eu’ que vários personagens históricos possuíram: Sócrates, Goethe, Jesus, Napoleão etc. Neste ponto, chama-nos a atenção o Eu de Goethe em relação à natureza. Este Eu é de uma intimidade pura com a natureza, que lhe fala constantemente, que lhe revela seus segredos sem trair seus mistérios. Buber observa que o Eu de Goethe crê na natureza quando fala à rosa: “Então és Tu” (2006, p. 95); e se une a ela numa mesma atualidade.

O Eu de Goethe descrito por Buber tem características semelhantes àquelas que a espiritualidade cristã atribui a Francisco de Assis: uma presença de intimidade e proximidade à natureza, acolhida gratuitamente numa relação Eu-Tu. De fato, a encíclica Laudato si’ reconhece que o Poverello de Assis “manifestou uma atenção particular pela criação de Deus e pelos mais pobres e abandonados”, vivendo “numa maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo” (LS, 10). Superando “a linguagem das ciências exatas ou da biologia” (LS, 11) – que Buber considera próprias do Isso – a relação de São Francisco com a natureza é gratuita e amorosa: como “uma pessoa quando se enamora por outra, a reação de Francisco, sempre que olhava o Sol, a Lua ou os minúsculos animais, era cantar, envolvendo no seu louvor todas as outras criaturas” (LS, 11). 

Buber diria que São Francisco se relacionou com a natureza como verdadeiro Tu – defronte às criaturas “em pessoa” (2006, p. 56) – na mesma linha do que diz Laudato si’: ele “entrava em comunicação com toda a Criação, chegando mesmo a pregar às flores, convidando-as a louvar o Senhor, como se gozassem do dom da razão” (LS, 11). Notemos que, quando Buber fala da relação com a natureza ‘em pessoa’, não diz pessoa como conceito estritamente psicológico e racional – visto que pedras, flores e lobos não respondem ao Eu com a dialogicidade própria dos humanos – mas como recurso de linguagem para preservar o ‘sentido’ e a ‘reciprocidade’ desta ‘relação’ (Buber, 20026, p. 56). Trata-se do teor existencial que esta relação comporta, no dizer recíproco do Eu-Tu. As mesmas criaturas que, nesta relação, Buber trata como Tu, o santo de Assis chamou de “irmãos e irmãs” (LS, 11).

Avançando nesta direção, Buber se interroga: “Se devemos admitir seres ou coisas da natureza nos quais encontramos nosso Tu”, de modo que “nos concedem uma certa espécie de reciprocidade, de que espécie é esta reciprocidade e o que nos permite atribuir-lhes este conceito tão fundamental?” (Buber, 2006, p. 132). O filósofo responde, admitindo que a natureza senciente dos reinos vegetal e sobretudo animal pode dizer-se a nós como um Tu autêntico, ainda que postos no limitar da consciência reflexa, como receptores da nossa atenção e afeto; seres perante os quais estamos atualmente presentes: ‘Nesta esfera’ da relação com a natureza, “o essencial é nos entregar livremente à atualidade que se nos oferece. A esta vasta esfera que se estende das pedras às estrelas, atribuo o nome de pré-limiar, isto é, último grau antes do limiar” (Buber, 2006, p. 133).

Já as plantas e as águas (reinos vegetal e mineral) estão no limiar da reciprocidade, pois não respondem com a espontaneidade instintiva dos animais, embora sejam sensíveis à presença humana – que as pode preservar ou destruir. Assim, o pensamento de Buber nos permite dizer que estar presentes ao Tu das águas e das florestas nos solicita uma relação de cuidado, de ouvintes da palavra que ali se diz a respeito da existência, seja nossa, seja desses seres naturais. Todos os seres da natureza nos oferecem a atualidade do existir em presença e graça, quando neles encontramos o nosso Tu. 

3.5 A atualidade da relação:

O conceito buberiano de atualidade é de teor existencial, colhido na relação que põe em ato o existir no tempo e no espaço. Na vasta esfera da natureza – com os seres animais, vegetais e minerais – toda relação acontece precisamente na atualidade; no instante daquela específica presença do Tu ao Eu que possibilita um encontro. Assim, a atualidade acompanha a relação em sentido universal, seja qual for o Tu ao qual estejamos defronte. Mesmo as relações inter-humanas, das quais esperamos atitudes de acolhida e consciência recíproca, têm sua atualidade posta nas duas escolhas: Eu-Tu ou Eu-Isso, como já explicado. Se a escolha for Eu-Tu, a relação inter-humana se deriva em inúmeras formas de relações existencialmente significativas.

3.6 E a relação com os animais?

No caso dos animais, Buber (2006, p. 115) observa que seus ‘olhos têm o poder de uma grande linguagem’. Por si próprios, sem o recurso da fala, mas ‘eloquentes quando estão absortos inteiramente em seu olhar’, os animais ‘desvendam o mistério no seu encobrimento natural’, ou seja, ‘na ansiedade e no devir’. Apenas o animal conhece tal estado de mistério e somente ele pode revelá-lo para nós, humanos; um mistério vislumbrado como por uma fresta, sem mostrar-se totalmente.

Há, pois, uma maneira de estabelecer relações que é própria dos animais: senciente e dotado de memória instintiva, o animal dá uma resposta a seu modo, numa linguagem coberta de mistério, espanto, ansiedade. Enquanto a pedra e a árvore põem-se na relação sem esta resposta evidente, os animais a oferecem encoberta, mas perceptível no olhar e outras reações. Buber comenta:

Olho, às vezes, nos olhos dum gato doméstico. O animal doméstico não recebeu algo de nós, como às vezes imaginamos, o dom [do] olhar verdadeiramente “eloquente”, mas somente – ao preço da ingenuidade elementar – a faculdade de no-lo endereçar, a nós que não somos animais. Mas, por isso, ele tomou em si, em sua aurora e ainda em seu alvorecer, não sei que ar de espanto e interrogação que, são totalmente ausentes no primitivo, apesar de sua ansiedade. É incontestável que o olhar deste gato, iluminado pelo bafejo de meu olhar de início me pergunta: “É possível que tu te ocupes de mim? O que desejas realmente de mim é outra coisa do que simples passatempo? Interessas-te por mim? Existo para você, existo? O que vem de ti para mim? O que há em torno de mim? O que acontece? O que é isto? (Buber, 2006, p. 115-116).

Atento aos sinais sensoriais, Buber descreve a relação estabelecida com um animal – o gato doméstico –, que o encara com o olhar. Segundo o filósofo, mesmo sendo um animal doméstico, ele não perde o ar de espanto, de mistério que é próprio do animal primitivo. Buber começa a se interrogar sobre o fato de o gato o encarar, se ocupar dele, de tudo o que se passa durante aquele olhar. Pois se trata de animal vivo, senciente, perceptivo e capaz de alguma interação. Na concepção de Buber, esta é a relação que o gato lhe oferece como um Tu. Atual, mas fugidio e breve, sucedido pelo Isso, como discorre o autor:

O olhar do animal, esta expressão de ansiedade apenas abriu-me enormemente e já se apagava. Meu olhar era perseverante, mas não era mais o fluxo do olhar humano. A rotação do eixo universal que inaugura o evento da relação havia sucedido quase imediatamente outra, que coloca fim nela. Há pouco, o mundo do Isso nos envolvia, o mundo do Tu havia emanado das profundezas no instante de um olhar e agora já caiu de novo no mundo do Isso. (Buber, 2006, p. 116)

Na sua atualidade, a relação se dá numa sucessão de instantes. Após o evento da relação Eu-Tu sucede-se o mundo do Isso. Buber nota que o mundo do Isso não é mal em si. Também esta relação faz parte da existência. O mal estaria em viver apenas do Isso. Donde sua exclamação: “Como é poderosa a continuidade do mundo do Isso! E como são frágeis as aparições do Tu!” (Buber, 2006, p. 116). 

3.7 Outros aprendizados com a natureza

Na sua obra Encontro – fragmentos autobiográficos, Buber narra alguns episódios ocorridos ao longo de vida, que incidiram no seu sentir e pensar a realidade ou, como ele mesmo diz, “que afloraram da minha introspecção e exerceram influência determinante sobre o modo e a direção do meu pensamento” (Buber, 1991, p. 7). Para nosso tema, destacamos alguns episódios relativos à experiência de Buber com a natureza.

O filósofo diz que, desde aproximadamente nove anos de idade, passava todo o verão na propriedade de seu pai – fato que lhe proporcionou receber uma considerável influência espiritual paterna. Buber atesta que, desde a juventude, o seu pai Karl havia tido fortes interesses espirituais, ocupando-se seriamente com questões levantadas em livros como A origem das espécies de Darwin e A vida de Jesus, de Renan. Porém, dedicou-se desde muito cedo à agricultura e deu cada vez mais de si a ela. Seu pai amava as ideias e a terra, com inteligência e praticidade.

Certa feita, ao voltar de uma exposição mundial parisiense, seu pai trouxe um grande pacote de ovos de galinha, de espécies até então desconhecidas no Ocidente. Karl levou tais ovos durante todo o curso da viagem sobre os joelhos, para que nenhum se quebrasse. Ademais, durante trinta e seis anos, Karl trabalhou com vários tipos de adubos; provava rigorosamente os efeitos específicos de cada tipo, para aumentar a produtividade. Buber fala do quanto seu pai dominava as técnicas agrícolas com evidente reconhecimento. Ele menciona ainda como seu pai, ao examinar uma manada de esplêndidos cavalos, cumprimentava os animais: Karl não apenas saudava de forma amigável os animais, mas cumprimentava cada um por sua vez, de maneira francamente pessoal (Buber, 1991, p. 13).

Episódios cotidianos e singelos, mas impressionantes à formação do sentir e do pensar do filósofo, como adverte Bartholo Jr. (2001, p. 20): os “dois episódios – com o campo e com os cavalos – são expressivos da influência de Karl Buber sobre seu filho: o primeiro ilustra seu zelo e curiosidade pelas novidades técnico-agrícolas [...], o segundo era o modo como saudava seus cavalos, cumprimentando um animal após o outro”. Notamos o quanto a relação do pai com a natureza imprimiu-se no olhar e na reflexão do jovem Buber. De fato, “na percepção de Martin, seu pai era um homem imerso nas relações diretas, para quem o verdadeiramente importante era o simples acontecimento das relações” (Bartholo Jr., 2001, p. 20). Esta percepção se mostra vigorosa numa outra recordação do filósofo sobre seu pai:

Quando eu ia com ele através das plantações maduras e observava como ele parava o carro, descia e se curvava sobre as espigas, repetidas vezes, até quebrar uma e provar cuidadosamente os grãos. Para este homem, nada sentimental e nada romântico, tratava-se do verdadeiro contato humano com a natureza, um contato ativo e responsável. Acompanhando-o assim, de vez em quando, nos seus caminhos, o adolescente aprendeu a conhecer algo que ele não havia experimentado através de nenhum dos muitos autores lidos por ele (Buber, 1991, p. 14).

Longe de sentimentalismo ou romance bucólico, Buber reconhece em seu pai o autêntico contato humano com a natureza: “contato ativo e responsável” (idem, p. 14). Desde jovem, Martin aprendeu a experimentar algo novo, não captado pela leitura, mas pela experiência reveladora de valor e sentido, ao acompanhar seu pai no campo e entre os animais. Mais tarde, o filósofo traduziu essa memória-aprendizado em categorias como diálogo, relação e atualidade, aplicáveis não somente às pessoas, mas também aos demais seres da natureza. Buber valoriza “a atenção dedicada por [seu pai] Karl às gentes e aos animais, e o cuidado em atender-lhes as demandas, carências, necessidades” (Bartholo Jr., 2001, p. 19). 

Hoje, essa memória e o pensamento enfim desenvolvido por Buber iluminam a reflexão crítica sobre nossa relação com os animais, não só no contexto da produção de alimento, mas também de cuidado, proteção e preservação das espécies. Em termos existenciais, éticos e ecológicos, permanece válido para hoje “o contato vivo e responsável do pai [Karl] com a natureza” (Bartholo Jr., 2001, p. 19). 

Buber (1991, p. 18-19) narra ainda outro episódio de sua juventude, para ele significativo. Passando as férias de verão na quinta de seus avós, sempre que possível ele entrava furtivamente no estábulo para acariciar o pescoço de seu cavalo favorito, um robusto cavalo tordilho. O filósofo atesta que não se tratava de um divertimento passageiro, de mero gosto por animais; mas de um profundo, amigável e vibrante acontecimento. Anos mais tarde, Buber reinterpreta aquele fato com viva lembrança:

Quando eu passava a mão sobre a poderosa crina, às vezes admiravelmente alisada, outras vezes também espantosamente selvagem, e sentia a vida palpitante sob a minha mão, era como se se aproximasse da minha própria pele o próprio elemento vital, algo que não era eu, que de modo algum me era familiar; evidentemente o outro, não meramente um outro, verdadeiramente o próprio outro, e que me deixava aproximar-me, que confiava em mim, que, naturalmente, ficou muito íntimo. Mesmo quando eu não havia começado a despejar-lhe aveia na manjedoura, o cavalo levantava suavemente a volumosa cabeça, na qual se moviam, sobretudo, as orelhas; então, ele aspirava silenciosamente, como um conspirador que dá aos seus companheiros de conspiração um sinal que só deve ser percebido por estes, e eu compreendia (Buber, 1991, p. 19).

Notemos as expressões: “vida palpitante... elemento vital... algo que não era eu... o próprio outro... que deixava aproximar-se... íntimo... um sinal... que eu compreendia” (idem, p. 19). A percepção do ‘outro’ no animal pode ser instintiva para alguns; desconcertante, para outros. Em Buber, foi afetiva e consciente. Um fato acolhido na sua hermenêutica da vida, ali tocada como palpitante, próxima, comunicativa. O contato com o cavalo é descrito como um diálogo sem palavras; um instante de misteriosa entrega, entre os estímulos do jovem Martin e a reação do animal: “deixava aproximar-me... confiava... se moviam as orelhas... dá um sinal...” (idem, p. 19). Era um diálogo sem palavras; feito de presenças. Ainda adulto, Buber se referia ao fato como “um momento de tanta profundidade que sua lembrança lhe permaneceu fresca na mão, com a vívida sensação do toque” (Bartholo Jr., 2001, p. 12).

A seguir, passamos à leitura da encíclica Laudato si’ (2015), colhendo e analisando, sobretudo, as conexões com o pensamento de Buber.

4. Ética, espiritualidade e cuidado da natureza na Laudato Si’ 

Ao publicar a encíclica Laudato Si (2015) o Papa Francisco abriu um diálogo necessário e includente: “pretendo especialmente entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum” (LS, 3). O motivo? – A “deterioração global do ambiente” que convoca a responsabilidade de “cada pessoa que habita neste planeta” (LS, 3). Afinal, não há uma crise isolada dos ecossistemas ou do clima, mas uma crise da Terra habitada pelos humanos, onde se implicam a ecologia ambiental e a ecologia social. 

Quando falamos de «meio ambiente», fazemos referência também a uma particular relação: a relação entre a natureza e a sociedade que a habita. Isto impede-nos de considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura da nossa vida. Estamos incluídos nela, somos parte dela e compenetramo-nos. As razões, pelas quais um lugar se contamina, exigem uma análise do funcionamento da sociedade, da sua economia, do seu comportamento, das suas maneiras de entender a realidade. Dada a amplitude das mudanças, já não é possível encontrar uma resposta específica e independente para cada parte do problema. É fundamental buscar soluções integrais que considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise sócio-ambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza. (LS, 139) 

Esta “abordagem integral” da ecologia, onde se imbricam o ambiente e a humanidade, corresponde à efetiva “interação” dos “sistemas naturais” com os “sistemas sociais”, com implicações éticas, espirituais e culturais, ao lado das ambientais e bióticas (cf. LS, 119). Esta tríplice implicação aponta à constituição humana da crise socioambiental, com o impacto de nossas escolhas sobre a vida na Terra:

- Implicações éticas: afirmação do valor intrínseco das criaturas, primado do bem comum, respeito pelos ritmos da natureza, superação do paradigma tecnocrática e ensaio de uma economia amiga da natureza, justiça para com as novas gerações, solidariedade com os pobres e mais frágeis (LS, 23, 29-30, 109, 133, 140, 157, 159);

- Implicações espirituais: reconhecimento da Criação como dádiva, aliança entre humanidade e ambiente, cultivo da contemplação e das virtudes ecológicas, encontro com o Criador mediante as criaturas, repouso celebrativo (LS, 12, 65, 71, 88, 93, 209, 211, 237);

- Implicações culturais: afirmação da fraternidade universal, diálogo entre religiões e ciências, amor cívico e político, viver com sadia sobriedade e menos consumista, superação do descarte e educação ambiental, engajamento pela preservação da vida humana e planetária (implicações culturais). Essas implicações se tocam em vários aspectos, no quadro complexivo da “ecologia integral” (LS, 15, 16, 22, 36, 64, 123, 126, 2-19-214, 228). 

Em seu conjunto, essas implicações solicitam uma resposta crítica e propositiva: a “conversão ecológica” das pessoas e das sociedades, dos estilos de produzir e consumir, com a participação de governos, comunidades, ciências e religiões (cf. LS, 216-221). A conversão ecológica inclui, segundo Papa Francisco, “os melhores resultados da pesquisa científica atualmente disponível”, assumidos “em profundidade” e num “percurso ético e espiritual” (LS, 15); pois necessitamos considerar a ética para promover “mudanças de fundo” nos níveis da consciência, do comportamento e da convivência entre as espécies (LS, 60); com efeito, o consumismo e a exploração unilateral dos recursos nos pedem “sanar nossa relação com a natureza e o meio-ambiente” e, por conseguinte, “curar as relações humanas fundamentais” (LS, 119).

Como assinala Barbosa (2020, p. 56), a encíclica Laudato si’ não se limita a diagnosticar as feridas da Terra e a denunciar um elenco de desgraças planetárias, mas exercita o exame das causas da crise socioambiental para propor vias de superação. Nesta direção vem proposta a conversão ecológica como disposição fundamental, transversal e incisiva para se viver e conviver na Casa Comum. Na sua ampla reflexão, o Papa Francisco reivindica o primado do bem comum, a solidariedade para com os mais pobres, o valor intrínseco das criaturas e a sacralidade de toda a Criação como pilares de uma ética ecoteológica, ou seja, uma ética que promova uma ecologia integral para a sustentabilidade da vida na Terra, hoje e no futuro. 

A diagnose do Papa é crítica e propositiva, com preocupação, mas também esperança: “A esperança convida-nos a reconhecer que sempre há uma saída, sempre podemos mudar de rumo, sempre podemos fazer alguma coisa para resolver os problemas” (LS, 61). Esperança que não disfarça as urgências do tempo presente, enquanto convoca à educação, à espiritualidade, à solidariedade e à sustentabilidade como bússolas para o devir humano na Terra. Assim, a encíclica “aponta para outro estilo de vida” mais sustentável e menos deletério (LS, 203), ancorado na educação e na espiritualidade (LS, 210-211). 

5. Aproximações entre Buber e Papa Francisco

Das fontes em exame, destacamos as seguintes aproximações ou convergências em Buber e Papa Francisco, quanto à relação do ser humano com a natureza.

5.1 A linguagem da fraternidade e da beleza

Para expressar o contato com os animais na atualidade da relação Eu-Tu, o filósofo via-se defronte às criaturas “em pessoa” (Buber, 2006, p. 56). Falando assim, Buber rompe o cânone da estrita psicologia – visto que animais não reagem ao modo humano – e escolhe uma linguagem aproximada, quase de analogia, para afirmar o animal como verdadeiro outro dado e acolhido por graça, não por utilidade. A seu modo, o filósofo afirma a dignidade dos animais como seres vivos, sencientes, capazes de reagir a estímulos, que notam a presença humana – seja quando os tratamos como uteis (= Isso), seja quando os tratamos gratuitamente pelo ser vivo e íntegro que são (= Tu). Em termos de linguagem, Buber extrapola o conceito clássico de pessoa como recurso para nos descrever uma experiência existencialmente significativa. Também sua descrição do gato (cf. 2006, p. 115-116) segue a crônica da vida doméstica para inferir uma reflexão existencial, reveladora de sensibilidade e percepção agudas, manifestas na relação com o animal. 

Como sabemos dos místicos e dos poetas, a linguagem rompe cânones e beira o enigma quando busca expressar realidades essenciais, misteriosas ou limítrofes. São Francisco é um exemplo, evidenciado em Laudato si’: “entrava em comunicação com toda a Criação, chegando mesmo a pregar às flores, convidando-as a louvar o Senhor, como se gozassem do dom da razão” (LS, 11); e não se constrange em chamar de “irmãos e irmãs” a variedade de criaturas, grandes ou pequenas (LS, 11). Como advertiu Buber em suas descrições, um cavalo ou um gato doméstico – ao serem vistos, valorizados e queridos por graça, mais que por utilidade – dizem mais da existência (inclusive nossa!) do que a definição que a Zoologia lhes dá, como organismos. De fato, as linguagens não são neutras, mas trazem consigo categorias e propósitos específicos: dizer monte na Geologia ou nuvem na Meteorologia difere enormemente do monte e da nuvem descritos no episódio da Transfiguração, com seu cânone sagrado de matriz hierofânica (cf. Mc 9,2-8; Lc 9,28-36).

Voltando ao caso das criaturas, na diversidade dos reinos mineral, vegetal e animal, a linguagem moderna geralmente está comprometida com certos paradigmas e racionalidades – como o “paradigma tecnocrático” e a “razão instrumental” (LS, 106 e 210) – focados na análise, na industrialização, na utilidade e no consumo. Dominante e unilateral, este paradigma moderno consolidou a disjunção entre humanidade e natureza, tratando como Isso toda forma natural que fosse útil ao progresso ilimitado. Em consequência, temos uma percepção reducionista na natureza, a fragmentação do saber com foco da tecnicidade, a degradação ambiental e um estilo de vida descuidado dos ecossistemas (cf. LS, 107-111). 

Neste contexto, tanto Buber quanto Francisco de Assis mostram sua relevância para uma “cultura ecológica” (LS, 111) capaz de “ampliar os objetivos da educação ambiental” (LS, 210):

Se, no início, [a educação ambiental] estava muito centrada na informação científica e na consciencialização e prevenção dos riscos ambientais, agora tende a incluir uma crítica dos «mitos» da modernidade baseados na razão instrumental (individualismo, progresso ilimitado, concorrência, consumismo, mercado sem regras) e tende também a recuperar os distintos níveis de equilíbrio ecológico: o interior consigo mesmo, o solidário com os outros, o natural com todos os seres vivos, o espiritual com Deus. A educação ambiental deveria predispor-nos para dar este salto para o Mistério, do qual uma ética ecológica recebe o seu sentido mais profundo. Além disso, há educadores capazes de reordenar os itinerários pedagógicos duma ética ecológica, de modo que ajudem efetivamente a crescer na solidariedade, na responsabilidade e no cuidado assente na compaixão. (LS, 210)

Com efeito, nem Buber, nem Francisco de Assis são ingênuos ou neutros em sua linguagem. Chamar as criaturas de “irmãs” ou descrever uma presença animal “em pessoa” acusa uma cosmovisão mais integral que fragmentada, em cuja existência convivem as criaturas animadas e inanimadas, reconhecidas por graça mais que por utilidade. É o que Papa Francisco argumenta, referindo-se ao místico de Assis:

O seu testemunho mostra-nos também que uma ecologia integral requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exatas ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do ser humano. Tal como acontece a uma pessoa quando se enamora por outra, a reação de Francisco, sempre que olhava o sol, a lua ou os minúsculos animais, era cantar, envolvendo no seu louvor todas as outras criaturas. (LS, 11)

Para sanar a crise socioambiental, há que investir numa educação de profundidade, revisora de paradigmas e linguagens, comprometida com todos os níveis de equilíbrio ecológico, organizada em itinerários ético-pedagógicos que avancem “na solidariedade, na responsabilidade e no cuidado assente na compaixão” (LS, 210). Neste horizonte pedagógico São Francisco de Assis mostra seu vigor crítico e educativo: 

A sua reação ultrapassava de longe uma mera avaliação intelectual ou um cálculo económico, porque, para ele, qualquer criatura era uma irmã, unida a ele por laços de carinho. Por isso, sentia-se chamado a cuidar de tudo o que existe. São Boaventura, seu discípulo, contava que ele, enchendo-se da maior ternura ao considerar a origem comum de todas as coisas, dava a todas as criaturas – por mais desprezíveis que parecessem – o doce nome de irmãos e irmãs. (LS, 210) 

A conduta franciscana para com as criaturas não é apenas trato cortês de um jovem citadino, apesar da cortesia do Poverello. É reconhecimento das criaturas à luz do Criador, e descoberta do Criador no encontro com as criaturas. Uma experiência enraizada na Revelação, atualizada no cotidiano e forjadora de uma convicção: “todas as criaturas” merecem o “nome de irmãos e irmãs” porque em Deus está “a origem comum de todas as coisas” (LS, 210). O que São Francisco vivenciou nos inspira e educa:

Esta convicção [de que as criaturas são irmãs, merecedoras de cuidado e ternura], não pode ser desvalorizada como romantismo irracional, pois influi nas opções que determinam o nosso comportamento. Se nos aproximarmos da natureza e do meio-ambiente sem esta abertura para a admiração e o encanto, se deixarmos de falar a língua da fraternidade e da beleza na nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou de um mero explorador dos recursos naturais, incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos. Pelo contrário, se nos sentirmos intimamente unidos a tudo o que existe, então brotarão de modo espontâneo a sobriedade e a solicitude. (LS, 210)

Admiração e encanto educam existencialmente, diria Buber. Abrem nosso sentir e pensar para além da utilidade, dispostos à reciprocidade e ao encontro com a natureza. Para além do consumo e das cifras econômicas, os recursos naturais são acolhidos como bem comum, nunca redutíveis a produto. Tal reconhecimento torna-se convicção e desata nossa capacidade de “falar a língua da fraternidade e da beleza na nossa relação com o mundo” (LS, 210). Como diz Murad (2019, p. 66), “a emergência da ecologia traz à humanidade a oportunidade de se reencantar com o mundo, desenvolver a sensibilidade, aguçar os cinco sentidos e admirar a beleza do Planeta em que vivemos, e da qual não somos proprietários, mas inquilinos”. 

Portanto, passar da língua da dominação e da exploração para a língua da fraternidade e da beleza também é conversão ecológica! Modos de falar se conectam na mente e nas práticas aos modos de tratar. Converter-se de consumidores a irmãos é passar do Isso ao Tu, diria Buber. Esta é também a lição do Poverello: “A pobreza e a austeridade de São Francisco não eram simplesmente um ascetismo exterior, mas algo de mais radical: uma renúncia a fazer da realidade um mero objeto de uso e domínio” (LS, 210).

Por fim, vale recordar que o próprio Jesus testemunha conexão com a natureza de seu ambiente, atento às aves e lírios, vinhedos e trigais, mostarda e figos, pérolas e rebanhos, ventos e mares – como nos diz Papa Francisco em Laudato si’ 97, remetendo às linhas de Lc 12,6; Mt 6,26 com 8,27 e 13,31-32; Jo 4,34. Jesus é a Palavra que nos ensina a ouvir as palavras e os gritos da Criação:  

Quando percorria os quatro cantos da sua terra, detinha-Se a contemplar a beleza semeada por seu Pai e convidava os discípulos a individuarem, nas coisas, uma mensagem divina: «Levantai os olhos e vede os campos que estão doirados para a ceifa» (Jo 4, 35). «O Reino dos Céus é semelhante a um grão de mostarda que um homem tomou e semeou no seu campo. É a menor de todas as sementes; mas, depois de crescer, torna-se a maior planta do horto e transforma-se numa árvore» (Mt 13, 31-32). (LS, 97) 

Jesus vivia em harmonia com a Criação, admirador da beleza, força e vitalidade da natureza que o cercava. Não foi um asceta separado do mundo ao modo de oposição ao corpo e à matéria, mas considerava toda a Criação uma parábola dinâmica do Criador (cf. LS, 98). Em sua condição terrena, Jesus demonstrou uma relação concreta e amorosa com o mundo, visto como epifania da obra criadora do Pai, fonte da vida em plenitude (cf. Jo 5,15-17 e 10,10). O Nazareno “podia convidar os outros a estar atentos à beleza que existe no mundo, porque Ele próprio vivia em contacto permanente com a natureza e prestava-lhe uma atenção cheia de carinho e admiração” (LS, 97). Após a ressureição, observa o Papa, a Criação inteira participa da condição pascal de Cristo: “as próprias flores do campo e as aves que Ele, admirado contemplou com os seus olhos humanos, agora estão cheias da sua presença luminosa” (LS, 100).

5.2 As esferas de relação

Partilhando a mesma herança bíblico-judaica, o Papa menciona, como Buber, as esferas de relação da criatura humana: “[...] a existência humana se baseia sobre três relações fundamentais intimamente ligadas: as relações com Deus, com o próximo e com a terra” (LS, 66). E arremata: “Segundo a Bíblia, estas três relações vitais romperam-se não só exteriormente, mas também entre nós. Esta ruptura é o pecado” (LS, 66). Contudo, enquanto o filósofo concentra-se na natureza, Papa Francisco menciona a terra – inspirado na narrativa de Gênesis 1–2, de modo a incluir o solo, o verde, as águas, enfim o planeta todo com sua biodiversidade. Comparativamente, temos:

Martin Buber

Papa Francisco

Relação com a natureza

Relação com o ser humano

Relação com os seres espirituais (Deus inclusive)

Relação com a terra

Relação com o próximo

Relação com Deus

 

Gráfico 1: fonte em Buber (1991) e em Papa Francisco (LS, 2015)

A caracterização do pecado como “ruptura” acusa o seu inverso positivo, que é a “harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo” do ser humano com as demais criaturas (LS, 10). O mesmo n. 66 da encíclica prossegue:

A harmonia entre o Criador, a humanidade, e toda a criação foi destruída por termos pretendido ocupar o lugar de Deus, recusando reconhecer-nos como criaturas limitadas. Este facto distorceu também a natureza do mandato de «dominar» a terra (cf. Gn 1, 28) e de a «cultivar e guardar» (cf. Gn 2, 15). Como resultado, a relação originariamente harmoniosa entre o ser humano e a natureza transformou-se num conflito (cf. Gn 3, 17-19). 

Enquanto Buber se impressiona com o exemplo do pai Karl, o Papa menciona o exemplo de Francisco de Assis:

Por isso, é significativo que a harmonia vivida por São Francisco de Assis com todas as criaturas tenha sido interpretada como uma sanação daquela ruptura. Dizia São Boaventura que, através da reconciliação universal com todas as criaturas, Francisco voltara de alguma forma ao estado de inocência original. Longe deste modelo, o pecado manifesta-se hoje, com toda a sua força de destruição, nas guerras, nas várias formas de violência e abuso, no abandono dos mais frágeis, nos ataques contra a natureza. (LS, 66)

A relação com o outro, tão prezada por Buber, é retratada como “harmonia” por Papa Francisco. O filósofo destaca a comunicação do ser humano com os seres da natureza, enquanto o pontífice – citando Boaventura – propõe a “reconciliação universal” da humanidade “com todas as criaturas” (LS, 66). Ambos valorizam a dialogicidade e a reciprocidade que caracterizam o ser humano como ser de relação, tanto em termos filosóficos como teológicos. Papa Francisco argumenta:

É importante ler os textos bíblicos no seu contexto, com uma justa hermenêutica, e lembrar que nos convidam a «cultivar e guardar» o jardim do mundo (cf. Gn 2, 15). Enquanto «cultivar» quer dizer lavrar ou trabalhar um terreno, «guardar» significa proteger, cuidar, preservar, velar. Isto implica uma relação de reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza. Cada comunidade pode tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas tem também o dever de a proteger e garantir a continuidade da sua fertilidade para as gerações futuras. (LS, 67)

A “reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza” (LS, 67) converge com o ideário buberiano de diálogo com a natureza. Esta dialogicidade não se reduz a uma habilidade comunicacional, mas é característica ontológica “intimamente ligada à essência do homem” como nota Von Zuben (2003, p. 120). O Papa volta-se explicitamente à Revelação bíblica e vê na “aliança” a raiz profunda desta dialogicidade entre o ser humano e as demais criaturas (LS, Capítulo VI, título 2). À origem de tudo está o “amor” de Deus (LS, 65), que cria o Cosmos e a terra, a humanidade e tudo o que existe para a “comunhão” (LS, 65). Comunhão dos seres humanos entre si, com as demais criaturas e com o Criador. Comunhão que se traduz em “relação, dignidade, conhecimento, liberdade, compromisso, harmonia, cultivo, inteligência, respeito, equilíbrio e bondade” – como diz Papa Francisco em Laudato si’ 65-69. 

5.3 O valor intrínseco de cada criatura

Habituados ao paradigma tecnocrático que se instaurou desde a Modernidade industrial, embalado pelo afã da racionalidade instrumental, facilmente caímos no equívoco de apreciar as criaturas por seu uso a nosso favor. Nas relações de produção e consumo, a utilidade faz dos seres uma coisa, com preços etiquetados (cf. LS, 108, 122, 203). A esta relação objetal e utilitária com a natureza Buber chamou de Eu-Isso (Buber, 1982 e 2006). Embora o Isso atravesse as relações cotidianas, não deve dominá-las como se fosse suficiente para definir a realidade ou dar-lhe sentido. Também o Papa critica este reducionismo nas relações humanas com a Criação e assevera:

Ao mesmo tempo que podemos fazer um uso responsável das coisas, somos chamados a reconhecer que os outros seres vivos têm um valor próprio diante de Deus e, pelo simples facto de existirem, eles O bendizem e Lhe dão glória, porque «o Senhor Se alegra em suas obras» (Sl 104/103, 31). Precisamente pela sua dignidade única e por ser dotado de inteligência, o ser humano é chamado a respeitar a criação com as suas leis internas, já que «o Senhor fundou a terra com sabedoria» (Pr 3, 19). Hoje, a Igreja não diz, de forma simplicista, que as outras criaturas estão totalmente subordinadas ao bem do ser humano, como se não tivessem um valor em si mesmas e fosse possível dispor delas à nossa vontade; mas ensina – como fizeram os bispos da Alemanha – que, nas outras criaturas, se poderia falar da prioridade do ser sobre o ser úteis. (LS, 69)

Em seu tempo, Buber não elaborou uma reflexão ecológica nos termos recentes, mas ofereceu critérios preciosos a uma ética ecológica, no âmbito da relação Eu-Tu do ser humano com os seres naturais. No aprendizado do jovem Martin com a natureza, as plantas e os animais têm sua presença reconhecida, com beleza e valor intrínsecos. Aquilo que o filósofo interpretou de suas experiências, o Papa propõe como releitura das fontes bíblicas, especialmente a Torá (Pentateuco) e os Ketubim (Sapienciais) – como diria o judeu Buber (cf. LS, 65-69, 77, 89). 

Certamente o filósofo concordaria com o que diz o Catecismo da Igreja Católica, citado em Laudato si’: “As diferentes criaturas, queridas pelo seu próprio ser, refletem, cada qual a seu modo, uma centelha da sabedoria e da bondade infinitas de Deus” (CAT 339 apud LS, 69). Portanto, o ser humano “deve respeitar a bondade própria de cada criatura, para evitar o uso desordenado das coisas” (idem: LS, 69). Qual Buber diante da horta, dos ovos e do seu estimado cavado, o Catecismo menciona “o sol e a lua, o cedro e a florzinha, a águia e o pardal” como “espetáculo de diversidade” das criaturas amadas por Deus (CAT 340 apud LS, 86).

5.4 Contemplar a natureza

A contemplação visa além da apreciação estética do estilo e da forma. Em perspectiva de fé, contemplar a natureza é reconhece a beleza de todas as coisas, acolhida como linguagem do Criador: “Na grandeza e na beleza das criaturas, contempla-se, por analogia, o seu Criador” (Sab 13, 5) e “o que é invisível n’Ele – o seu eterno poder e divindade – tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas suas obras” (Rm 1, 20) (apud LS, 12; também 85-87). Trata-se de entrever na Criação a misteriosa presença de Deus – ou do Ser, diria Buber; de ouvir a palavra silente que o Tu da natureza profere à nossa percepção. Palavra (dabar) e presença (shekiná) são categorias da Revelação valorizadas seja por Buber, seja por Papa Francisco, na releitura das fontes judaicas: “toda a natureza, além de manifestar Deus, é lugar de Sua presença” – diz o Papa (LS, 88). 

Imerso nas relações afetivas e conscientes com o Tu, o filósofo Buber adverte sobre certa dialética que envolve nosso encontro com Deus, no tempo-espaço do mundo. Deus é mistério que se vislumbra em meio às criaturas, sem nunca igualar-Se a elas; é o divino Tu que se dá para além de nossa capacidade de O procurar:

Não se encontra Deus permanecendo no mundo, e tampouco encontra-se Deus ausentando-se dele: aquele que, com todo o seu ser, vai de encontro ao seu Tu e lhe oferece todo ser do mundo, encontra-o, Ele que não se pode procurar. Sem dúvida Deus é o “totalmente Outro”. Ele é, porém, o totalmente mesmo, o totalmente presente. Sem dúvida, ele é o “mysterium tremendum” cuja aparição subjuga, Mas Ele é também o mistério da evidência que me é mais próximo do que o meu próprio Eu. (Buber, 2006, p. 104).

Buber se mostra fiel à aliança e à sabedoria de Israel, longe de todo panteísmo, em tremor diante do “totalmente Outro”. Na mesma direção, Papa Francisco diz que “a natureza é lugar da Sua presença”, na medida em que o Criador é maior que suas criaturas, pelas quais Ele “nos chama ao relacionamento consigo” (LS, 88). Por outro lado, “não esqueçamos que há também uma distância infinita [entre o Criador e as criaturas], pois as coisas deste mundo não possuem a plenitude de Deus” (LS, 88). A dialética posta preserva o devido lugar de Deus e dos seres naturais em nossas relações. Assim como já ensinavam os Profetas e Sábios de Israel, importa recordar que somente Deus é Deus (cf. Dt 6,4; 1Rs 18,39). “Esquecer isto, também não faria bem às criaturas, porque não reconheceríamos o seu lugar verdadeiro e próprio” (LS, 88).

De acordo com o Papa a educação ambiental deveria predispor o ser humano a dar o salto para o Mistério, do qual uma ética ecológica recebe o sentido mais profundo (LS, 210). De seu lado, Buber fala de Deus como mysterium que se entrevê no mundo, simultaneamente tremendo e próximo (2006, p. 104 acima). Para além da materialidade orgânica e dos limites do espaço, o mistério se vislumbra na nossa relação com a natureza; uma relação de Ser que “se dá por vontade própria e por meio de uma graça” (Buber, 2006, p. 56). Assim, o filósofo e o pontífice se aproximam:

Martin Buber

Papa Francisco

Diálogo com a natureza

Vontade própria e graça

Ética ecológica

Mistério

Gráfico 2: fonte em Buber (2006) e Papa Francisco (LS, 2015)

5.5 Correção do antropocentrismo desordenado

Algo que precisa ser sanado, segundo o Papa, é o “antropocentrismo desordenado” que despreza as demais criaturas (LS, 68). Francisco denuncia que o antropocentrismo moderno acabou, paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade objetiva (LS, 115). Uma das causas deste antropocentrismo desordenado, nos tempos modernos (LS, 116), foi a proposta inadequada de uma antropologia unilateral, caracterizada pela disjunção humanidade/natureza, que nutriu a ilusão prometeica do domínio irrestrito do ser humano sobre o mundo, dando a impressão de que cuidar da natureza seria uma atividade para fracos (LS, 116). Essa unilateralidade antropocêntrica denunciada pelo Papa se aproxima da redução da realidade ao Isso, notada por Buber.

Papa Francisco nos convida a prestar atenção à beleza da Criação e a amá-la, para romper com o pragmatismo utilitarista (cf. LS, 215). Nisto deverá concentrar-se tanto a espiritualidade, quando a educação – insiste o Papa (cf. LS, 209-215). Pois quando não se educa à admiração e apreciação do belo, arriscamos reduzir a natureza a objeto de uso e abuso utilitaristas, com casos de exploração sem escrúpulos. Também a dimensão estética incide na “conversão ecológica”, por afirmar a beleza e a gratuidade da natureza, que nunca se reduz a um produto do engenho humano (LS, 116). Neste sentido, Papa Francisco fala de uma mística que precisa animar o ser humano nesse processo de “conversão ecológica” integral do “nosso modo de pensar, sentir e vier” (LS, 216): o ser humano sábio reconhece na crise ecológica o apelo a uma profunda “conversão interior” que frutifique em “existência virtuosa” de “comunhão com tudo o que nos rodeia” (LS, 216-217).

5.6 Existência virtuosa e cuidado da Criação

Tal conversão ecológica promove nossa “reconciliação com a criação” (LS, 217) e comporta várias atitudes que se conjugam para ativar um cuidado generoso e cheio de ternura, como lemos em Laudato si’ 220:

- Em primeiro lugar, implica gratidão e gratuidade, ou seja, um reconhecimento do mundo como dom recebido do amor do Pai, que consequentemente provoca disposições gratuitas de renúncia e gestos generosos, mesmo que ninguém agradeça.

- Implica a consciência amorosa de não estar separado das outras criaturas, mas de formar com os outros seres do universo uma estupenda comunhão universal. O crente contempla o mundo, não como alguém que está fora dele, mas dentro, reconhecendo os laços com que o Pai nos uniu a todos os seres. 

- [...] leva-o (crente) a desenvolver a sua criatividade e entusiasmo para resolver os dramas do mundo, oferecendo-se a Deus “como sacrifício vivo, santo e agradável” (Rm 12,1).

- Não vê a sua superioridade como motivo de glória pessoal nem de domínio irresponsável, mas como capacidade diferente que, por sua vez, lhe impõe uma grave responsabilidade derivada da sua fé.

As atitudes expressam virtudes: gratidão por tudo o que se recebe; consciência amorosa por fazer parte da comunhão universal com todas as criaturas; criatividade frente aos desafios do mundo; compreensão de que a racionalidade do ser humano o faz responsável frente às outras criaturas. No dizer de Buber, essas virtudes nos fazem mais presentes e entregues ao Tu da natureza.

5.7 Ouvir a palavra que a natureza profere

Além disso, o Papa argumenta que a paz interior das pessoas – procurada por inúmeras terapias... – tem muito a ver com o cuidado ecológico e com o bem comum. Pois “a paz interior das pessoas tem muito a ver com o cuidado da ecologia e com o bem comum, porque, autenticamente vivida, reflete-se num equilibrado estilo de vida aliado com a capacidade de admiração que leva à profundidade da vida” (LS, 225). De fato, paz, alegria e saúde se conectam nas relações do sujeito com a natureza (cf. LS, 183 e 223).

Admirar-se com a Criação, reconhecer suas dádivas e conectar-se com os demais seres é um estado de espírito, que vai do interior dos afetos ao exterior dos efeitos. São atitudes que podem remediar “o cansaço e a ansiedade” que pesam na vida hodierna (LS, 223). Necessitamos cultivar este estado – esta presença diante do Tu da natureza – para ouvir a palavra ali ofertada, pois “a natureza está cheia de palavras de amor” (LS, 225). Novamente o Papa se aproxima de Buber ao propor as atitudes que nos permitem ouvir as palavras do Ser na voz das criaturas: “como poderemos ouvi-las no meio do ruído constante, da distração permanente e ansiosa, ou do culto da notoriedade?” (LS, 225).

Urge livrar-nos do frenesi da produção, da pressa constante que nos leva a atropelar tudo o que nos cerca, dispostos à reeducação de atitudes: “que se dedique algum tempo para recuperar a harmonia serena com a criação, refletir sobre o nosso estilo de vida e os nossos ideais, contemplar o Criador, que vive entre nós e naquilo que nos rodeia e cuja presença não precisa de ser criada, mas descoberta, desvendada” (LS, 225).

Considerações finais

No que tange à relação do ser humano com a natureza, destacam-se sete aproximações entre Buber e Pala Francisco, nas obras que nosso recorte analisou. Antes de tudo, a própria relação com a natureza, no quadro das três relações fundamentais do ser humano (consigo, com o mundo, com Deus): os dois autores afirmam esta relação como dado ontológico, não teorético, mas de impacto existencial; com base filosófica na dialogicidade humana (Buber) e teológica, na aliança e revelação divina manifestas na Criação (Papa Francisco).

A segunda aproximação, é o reconhecimento do valor intrínseco dos seres naturais e da natureza como um todo (Buber), considerados pelo Papa como criaturas – numa referência direta à Revelação bíblica do Deus Criador. Este reconhecimento passa pela apreciação estética e gratuita da Criação, com a intenção crítica, nos autores, de sanar dois reducionismos: tratar os seres naturais como o Isso, sem reciprocidade (Buber); valorar as criaturas pela mera utilidade e benefício ao ser humano (Papa Francisco).

Outra aproximação, está na contemplação da natureza, propiciadora de apreço e encontro. Buber se expressa de modo pessoal, rememorando experiências juvenis que ele relê com maturidade filosófica. O contato rural com plantas e animais lhe proporcionou um aprendizado existencial sobre o Tu da natureza, aguçando sua percepção do outro que se apresentava inclusive nos animais domésticos. Com sentimento e consciência aguçados pelo outro, Buber valoriza as plantas e os animais como viventes e sencientes, distintos do humano, mas comunicadores de uma presença. De modo semelhante, Papa Francisco invoca o exemplo de Jesus e a experiência de Francisco de Assis, atentos ao meio-ambiente. Jesus não só admirou a natureza, mas a ouviu como quem escuta a palavra do Criador nas criaturas, em profundo discernimento dos sinais dos tempos (cf. Mt 16,2-3). Atitude contemplativa e conectiva presente também no místico de Assis; em plena Idade Média, na fronteira de grandes senhores e pequenos vassalos, São Francisco elege o lugar dos menores e se irmana com todas as criaturas, com as quais partilha a origem comum em Deus-Amor. A reflexão de Buber e o testemunho do Poverello iluminam hoje nosso empenho por uma ecologia integral que articule beleza e compromisso, espiritualidade e educação em benefício de todas as criaturas da Terra.

Uma quarta aproximação, em parte implicada nas anteriores, é a correção do antropocentrismo unilateral, que tende a ver as criaturas como Isso. Buber já havia advertido os limites da relação Eu-Isso com a natureza, insuficiente para dar sentido e garantir a vida na Terra. Por sua vez, Papa Francisco relê as páginas do Pentateuco e dos Livros Sapienciais para corrigir a pretensão humana de dominar e explorar a natureza de modo irresponsável. Assim como Buber, o Papa insiste na reciprocidade, bondade e responsabilidade das relações humanas com a natureza.

Essas três atitudes (acima) caracterizam nosso cuidado da Criação como um dado profundamente humano, que apela ao nosso Ser como existentes (Buber) e como imagem e semelhança de Deus (Papa Francisco). Os dois autores valorizam, a seu modo, as virtudes humanas forjadoras de atitude e de convicção no trato da natureza: presença e receptividade, apreço e gratidão, reconhecimento e cuidado. A vida virtuosa em relação à natureza é a quinta aproximação entre Buber e Papa Francisco, no tema analisado. Ambos assinalam que virtude não é teoria, embora se inspire na contemplação (theoría) das criaturas. Virtude é atitude, escolha e decisão consolidada pelo hábito, a invocar os afetos e a consciência diante do outro – seja o semelhante, sejam as demais criaturas. Buber destaca a presença que dá na atualidade do encontro. Papa Francisco propõe o auto-transcender que rompe o muro da nossa auto-referencialidade para, enfim, cuidar dos outros e do meio-ambiente. Os dois autores qualificam essas virtudes como profundamente humanas, invocadoras da nossa liberdade e da nossa decisão; isto é, virtudes de relação para as quais podemos e devemos nos (re)educar.

A sexta aproximação, está na escuta da palavra que a natureza profere a respeito dos seres em geral e a respeito de nós mesmos. Um tema sutil, este da escuta ou da audição, como sutil é o mundo das vozes e dos silêncios, entre resposta e mudez. Uma relação Eu-Isso com a natureza a emudece, na medida em que nos fazemos surdos à palavra que os seres proferem. Permanecer n’Isso seria literalmente um ab-surdo. O absurdo, neste caso, deve ser sanado pela reciprocidade. Pois também nós proferimos a palavra existencial para com a natureza, se a defrontamos como Tu, insiste Buber. De seu lado, Papa Francisco se enraíza na Revelação do Criador para tratar da palavra: o cosmos, a humanidade e todas as criaturas constituem Palavra de Deus, Sua autocomunicação. Desde à linguagem silente das estações e do tempo em devir, até a concretude do Verbo encarnado. Em tudo está e se faz ouvir a Palavra originária, que perpetua para nós o chamado a cultivar e guardar o jardim da Criação.

Por fim, reservamos como sétima aproximação entre Buber e Papa Francisco uma das primeiras contribuições da encíclica Laudato si’: a linguagem da fraternidade e da beleza. Contamos com sétima, pelo remate que a linguagem oferece às seis aproximações anteriores. Pois, como dissemos, a linguagem não é neutra, nem ingênua, mas comprometida com paradigmas e feitora de cultura. Incide nas relações. Imprime hábitos mentais e morais; revela confins a ser vistos e revistos. Buber o expressa ao descrever os animais com afeto e sensibilidade; não apenas por gosto, mas por reconhecer a presença do Tu nos seres naturais. Ele mesmo se percebe sujeito-em-relação, em-face-de, em sentido ético e estético: sujeito de responsabilidade e de admiração pela natureza. Ao que Papa Francisco acrescenta o potencial educativo e transformador da linguagem, que nos converte de consumidores a cuidadores da Criação. A leitura atenta desses autores se faz inspiração e ementa de uma sólida educação ambiental, com o primado do ser sobre o ser úteis, em vista de uma cultura ecológica integral e integradora.

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Notas

[1]   Von Zuben (2006, p 143) traduz a palavra Ser, do alemão Wesen. Uma tradução, a nosso ver mais precisa, seria essência. Trata-se de um termo que Buber emprega muito frequentemente, atribuindo-lhe um sentido profundo. No livro “Eu e Tu” o filósofo entende Wesen como o ser, ou a natureza; raramente lemos essência, apesar do sentido ser próprio. Por esta razão, em várias passagens preferimos traduzir Wesen por presente: sendo presença e presente conceitos centrais no pensamento de Buber, o ser no sentido mais profundo é o ser na relação que exige a totalidade da presença. A vida da relação é para Buber a vida atual de presença. Outras vezes, diante da dificuldade de traduzir toda a riqueza do pensamento de Buber em alemão, conservamos o sentido mais comum de essência. Assim optamos pela tradução o essencial, pois é abstrata e geral como quis Buber e se aproxima de sua intenção de propor a vida de relação como a vida essencial, a vida de presença, com o ser humano presente aqui e agora. Aquele que está presente em um evento de relação dialógica é essencial, pois proferiu a palavra-princípio com todo o seu ser.