Antonio Geraldo Cantarela
Doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMinas). Professor adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) Contato: agcantarela@yahoo.com.br
Resumo: As produções acadêmicas relativas às interfaces entre religião e literatura representam, no Brasil, um debate que cresce e se consolida. Seu nascedouro se associa à Teologia, mas se amplia em direção ao campo das Ciências da Religião, incluindo novos modos de articulação entre o sistema discursivo literário e os estudos de religião. Desse movimento surgem perguntas, como a que diz respeito às possibilidades e limites de se tomar o texto literário como matéria para o estudo do fenômeno religioso. Teoricamente, pressupõe-se uma distinção fundamental entre o texto literário, enquanto encenação de mundo, e o fato religioso, enquanto vivência singular. A esse pressuposto associa-se a questão: que relação existe entre o texto ficcional e a realidade (religiosa) a que faz referência? A discussão, ancorada em pesquisa bibliográfica, se valerá de aportes teóricos diversos, particularmente de autores que discutiram a relação entre ficção e realidade (dentre outros, Iser, Ricoeur e Eco). Dentre as conclusões, destacam-se: i) a distinção, mas não oposição, entre vivências e instituições históricas singulares e suas representações ficcionais pela literatura; ii) a exigência de se compreender o dado religioso, expresso pelo texto literário, com ferramentas da crítica, para evitar o risco de tratar o texto ficcional de modo historicista.
Palavras-chave: Ficção. Realidade. Teoria da Literatura. Estudos de Religião.
Abstract: The researchers and academic productions relate to the relations between religion and literature represents, in Brazil, a debate that, since the 90s of the 20th century, growls and consolides. The debate, that source is related to the theological field, has been amplified into the direction of the strict field of Religious Studies, with the inclusion of new theories perspectives and new ways of articulation between the literary discursive system and the religion studies. From this movement emerges also a new question, which this article proposes to destact, with the first theoric question, the one about the possibilities and limits of taking the literary text as a source or reference for the study of religion phenomenon. Theoretically speaking, presumes a fundamental distinction between the literary text, while world staging (fictum), and the religion fact, while singular experience of the world (factum). This assumption joins the main question: which relation exists between the fictional text and the reality (religion) that references it. To the discussion, anchored to the bibliographic research, will be used the contribution of Literary Theory, particularly studies related to literary realism and the theory of reception. Among the conclusions, highlights: i) The distinction, but not opposition, between experiences and religion institutions, while historic singular living, and their fictional representations by literature; ii) the requirement of reading the literary text with literary critic tools, to avoid the risk of treating the fictional text in a historicist way.
Keywords: Fictional. Reality. Literature Theory. Religious Studies.
De Aristóteles a Auerbach, passando pelos teóricos do realismo e da estética da recepção, o problema das relações entre ficção e realidade mostrou-se de modo constante e com matizes variados. Em sua Arte Poética, Aristóteles (384-322 a.C.) inaugurou o debate com a conhecida distinção entre história e poesia: “É evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade.” (IX,1). Na obra de Aristóteles, o contraponto entre a diegese histórica e a poesia tem como objetivo primordial destacar o caráter universal da poesia, suas qualidades e defeitos e sua “função social” de causar terror e compaixão. Para isso, conforme o filósofo, “no que respeita à poesia, deve-se preferir o impossível crível ao possível incrível”. (XXVI, 27). Certamente não se pode, sem riscos de anacronismo, incluir a Poética de Aristóteles no rol estrito das teorias literárias. Estas têm seu nascedouro somente no século XIX, quando a academia se preocupou em estabelecer critérios para definir o que é literatura. De qualquer modo, a distinção proposta por ele pode ser considerada o primeiro estudo formal sobre o fazer literário; e foi o ponto de partida para ulteriores debates e abordagens mais amplas e sofisticadas.
Vinte e dois séculos depois de Aristóteles, o filólogo alemão Erich Auerbach (1892-1957) retomou o termo mimesis – usado por Aristóteles para expressar a ideia de verossimilhança e imitação – para título de sua obra-prima sobre a representação da realidade na literatura ocidental. Auerbach, considerado um dos fundadores da literatura comparada, abriu seu estudo com uma leitura comparativa entre o canto XIX da Odisseia, sobre os dilemas de Penélope, dividida entre se casar de novo ou continuar aguardando o retorno de seu marido Ulisses, e o capítulo 22 do Gênesis, sobre o sacrifício de Isaac. Mas, afinal, quem foi Ulisses? Aconteceu uma guerra de Troia? Abraão existiu? E Isaac? O trabalho de Auerbach não se interessou propriamente por essas perguntas. Mas o problema de fundo não deixa de aflorar: o da relação entre história e ficção. Que eventos podem ter constituído o fundo histórico das narrativas bíblicas e dos poemas homéricos?
Entre o tempo de Aristóteles e o de Auerbach, a questão da relação entre ficção e realidade retornou de modos diversos: no renascimento, em sua retomada das obras clássicas; no realismo literário do século XIX, em contraponto ao romantismo; em estudos literários mais recentes, do século XX, com formulações mais amadurecidas e consistentes acerca das correlações entre literatura e sociedade. A questão, contudo, não se limitou ao âmbito das teorias literárias. Em sua jornada, marcou presença nos debates sobre história e historiografia, os quais, por sua vez, influenciaram os rumos da exegese bíblica.
No âmbito dos estudos históricos, a partir da segunda metade do século XVIII, desenvolveu-se no Ocidente uma visão de mundo que afirmava a importância dos processos históricos para a compreensão dos fenômenos políticos, sociais e culturais. A isso, em sentido genérico, convencionou-se chamar de historicismo. Conforme Paul Ricoeur (1913-2005), cunha-se com o termo historicismo o pressuposto epistemológico de que “o conteúdo das obras literárias e, em geral, dos documentos culturais recebe a inteligibilidade da sua conexão com as condições sociais da comunidade que o produziu ou a que se destinava”. (RICOEUR, 1973, p. 101). Em sentido mais estrito, o termo refere-se à concepção filosófica, do final do século XIX e primeiras décadas do século XX, desenvolvida pelo filósofo alemão Wilhelm Dilthey (1833-1911). Algumas correntes do historicismo, desenvolvidas na esteira da hermenêutica filosófica alemã, colocaram em questão a compreensão de documento como retrato objetivo dos fatos históricos singulares. Nesse sentido, o documento histórico poderia ser lido como um tipo especial de ficção.
No clima do historicismo, a exegese bíblica desenvolvida ao longo dos séculos XIX e XX ganhou grande impulso com o método histórico-crítico. Este representou, nos tempos modernos, o primeiro instrumental metodológico a oferecer aos estudos bíblicos uma sistematização científica. Ao buscar as origens do texto bíblico, as instituições que o conservaram e as marcas das sucessivas camadas redacionais pelas quais o texto passou, a crítica histórica destacou a distância entre o texto bíblico, tal qual nos foi legado, e os eventos fundantes narrados que, possivelmente, estariam nas suas origens. Dentre os inúmeros estudos exegéticos de viés histórico-crítico, pode-se destacar o que foi produzido pelo controverso Jesus Seminar, dos anos 80 do século XX, fundado com o objetivo de estudar o Jesus histórico a partir dos documentos cristãos dos primeiros séculos do cristianismo. Também aí se estabeleceu a distinção entre evento histórico e narrativa-ficção teológica.
Os avanços da exegese incidiram fortemente sobre concepções teológicas arraigadas desde séculos. Não por acaso, as raízes históricas do fundamentalismo cristão associam-se ao movimento de reações de igrejas protestantes britânicas e norte-americanas contra o liberalismo teológico da exegese bíblica de cunho historicista. Sem pretender simplificar por demais a questão, poder-se-ia afirmar que os “fundamentos” da fé cristã, conforme expressos por aquelas igrejas nas primeiras décadas do século XX, ganhariam outras formulações e alcance se lhes fosse acrescentada uma pitada da percepção de que o discurso teológico é parente próximo do texto literário. Felizmente, o diálogo entre teologia e literatura tem ajudado a superar ranços teológicos fundamentalistas.
Na esteira dos debates acerca das interfaces entre teologia e literatura, o interesse pelo sistema discursivo literário tem se ampliado no campo de estudos estrito das Ciências da Religião. Com certa frequência, encontramos nesse âmbito teses, dissertações, artigos e livros com temáticas provenientes da literatura. Ainda que os temas que se podem associar ao que chamamos de religião formem um leque desmesuradamente aberto, a utilização da ficção literária para estudar o fenômeno religioso provoca novas perguntas e demanda novos suportes teóricos. A questão teórica de fundo diz respeito aos modos de representação de mundo pelo texto ficcional. Associada a ela, coloca-se a pergunta específica de nosso interesse: que pressupostos devem ser considerados para validar a pesquisa acadêmica (em Ciências da Religião) que utiliza como fonte o texto literário/ficcional?
O artigo pretende oferecer pistas para a discussão do assunto ou, pelo menos, ensejar outras questões. E se apresenta com esta organização: i) Algumas perspectivas garimpadas em teóricos da literatura acerca das relações entre ficção literária e vivências históricas singulares, entre literatura e sociedade; ii) A consideração desses pressupostos teóricos para o campo dos estudos de religião, particularmente das Ciências da Religião. Mais que o interesse por apresentar as teorias, expõem-se alguns de seus traços em vista de considerar seu interesse para responder a pergunta central que orienta este texto.
A distinção entre singularidades ou realidade histórica, de um lado, e ficção, de outro – distinção sobre a qual continuaremos a insistir – pode ser expressa por dois termos latinos comumente usados para discutir o assunto: factum e fictum. O termo factum diz respeito à história, aos feitos singulares, às nossas vivências, ao nosso agir no mundo. Em geral associa-se à ideia de coisas verdadeiras, realmente acontecidas. O termo fictum, por sua vez, refere-se a coisas inventadas por nossa imaginação, por nossa capacidade de representar. Associa-se à ficção, à encenação, ao fingimento.
No campo dos estudos literários, as perspectivas teóricas acerca da relação entre literatura e sociedade apresentam-se com pressupostos e matizes variados, num leque de polarizações extremas. Numa ponta, acham-se as concepções vinculantes, que compreendem a obra literária como retrato do momento histórico em que a obra nasceu. No outro extremo, encontram-se as leituras que se interessam pelos aspectos formais do texto, compreendido como entidade sem mundo. Entre um polo e outro, destacam-se teorias que, sem negar a relação do texto literário com a história da qual nasceu, o leem, entretanto, como encenação e interpretação de mundo; ou ainda teorias que destacam a relação entre texto e leitor.
Um breve passeio pela historiografia literária brasileira permite ilustrar tais contrastes. Num polo, podem ser situadas, por exemplo, as obras dos críticos literários Sílvio Romero (1851-1914) e José Veríssimo (1857-1916). Em sua extensa História da Literatura Brasileira, publicada a partir de 1888, Romero concebe o fazer literário sob a égide do mecanicismo, buscando as razões e as características da obra literária no mundo natural e social. Na esteira das mesmas tendências, pouco mais de uma década depois de Romero, José Veríssimo publica sua História da Literatura Brasileira. Ambos compartilham (além de igual título para suas respectivas obras) as influências do historiador francês Hippolyte Taine (1828-1893), um dos grandes expoentes do positivismo do século XIX. As concepções de Taine exerceram forte influência sobre os movimentos artísticos realistas. Encontra-se em Romero e Veríssimo, inspirado naquele teórico, um conceito amplo de literatura que engloba todo tipo de produção intelectual, entendida como produto e reflexo da vida social. Sob tal conceito, o texto literário representa o autor, que por sua vez representa a sociedade; e as influências, de fora sobre o texto, provêm do meio ambiente, da raça e da conjuntura histórica.
Mesmo a História da Literatura Brasileira, de Nelson Werneck Sodré (1911-1999), publicada em 1938, compreende a história literária acentuando fatores extrínsecos ao texto. Sodré filia-se ao método marxista e, a partir de pressupostos teóricos bem mais amplos que aqueles de Romero e Veríssimo, pensa a literatura como expressão das relações sociais, como parte do processo histórico mais amplo. Mesmo que compreenda a produção artística, particularmente a literatura, como expressão da atividade coletiva, Sodré pelo menos sublinha a correlação entre aspectos extrínsecos e qualidades formais da obra de arte.
No outro polo, contrapondo-se às concepções vinculantes, encontra-se A Literatura no Brasil, de Afrânio Coutinho (1911-2000), publicada em 1955. Herdeira da reação contra os métodos do positivismo e do historicismo do século XIX, a obra de Coutinho segue as correntes voltadas para os problemas de forma e estilo, tais como o formalismo russo e o new criticism anglo-americano. Conforme o autor, a história literária, enquanto história de uma arte, constrói-se do estudo das obras enquanto monumentos e não documentos – conforme expressão de Coutinho. Assim, “o essencial é o estudo da obra em si mesma”. O que vem dos métodos transferidos das outras ciências, ainda que não se possam omitir, “são conhecimentos secundários, subsidiários, auxiliares”, “tarefas colaterais”. (COUTINHO, 1968, passim, p. 6-9).
Seguindo tendências vanguardistas de então, já não importava aos teóricos dessas novas correntes que os textos literários – assim como a pintura e outras artes – representassem algo. Importante mesmo era seu aspecto estético, formal. As novas compreensões acerca do caráter de literariedade de um texto, associado à forma artística, trouxeram para o centro do debate a questão de sua relação com o “mundo real”. Assim, teorias voltadas para o estudo das relações entre ficção literária e realidade histórica estão geralmente linkadas com a ideia de criação literária. Sob tal pressuposto, compreende-se o texto literário não como representação de mundo, mas como criação, invenção de mundos, artefato relativamente autônomo em relação às vivências históricas. No extremo, a criação literária – e as teorias correlatas – defenderam a proposta de um “mundo do texto”[2], sem referências, sem liames com o mundo das vivências cotidianas.
As teorizações acerca das relações entre ficção e realidade histórica ganharam fôlego quando se incluiu no debate a discussão sobre o papel do leitor na configuração do literário. Já nas primeiras décadas do século XIX, o teólogo Friedrich Schleiermacher (1768-1834) apontava para o caráter dialógico da leitura e para o problema do distanciamento entre um texto do passado e sua leitura atual. Entretanto, as correntes historicistas não abandonavam seu bastião. Tomando emprestados os métodos das ciências da natureza, sustentavam a pretensão de tornar plenamente conhecidos o valor e o significado de uma época passada, buscando explicar as manifestações individuais a partir de um contexto de época. Caberá à hermenêutica filosófica alemã, particularmente com Hans-Georg Gadamer (1900-2002), contrapor-se às pretensões do historicismo. Em sua obra Verdade e Método, publicada em 1960, Gadamer propõe a ideia de linguagem como mediação da experiência de mundo e da própria experiência hermenêutica. Trata-se não mais da preocupação com artifícios e técnicas de explicação do texto, mas da questão mais englobante do que significa compreender e interpretar. Na esteira da hermenêutica gadameriana, vão se postar depois, pelo menos em parte, teóricos da Universidade de Konstanz, na Alemanha, Paul Ricoeur, na França,e Umberto Eco, na Itália.
A aula inaugural que abriu o semestre letivo da Universidade de Konstanz, em 1967, proferida por Hans Robert Jauss (1921-1997), costuma ser apontada como o marco inicial da chamada “estética da recepção” – teoria ampla dos estudos literários, na qual o leitor ocupa lugar privilegiado. A estética da recepção se contrapõe ao positivismo historicista e filia-se à tradição hermenêutica alemã, adaptando-a às ciências literárias. A estética da recepção desenvolveu-se no bojo da tensão entre imanentismo, representado pelo formalismo russo, pelo new criticism e pelo estruturalismo francês, e vinculação, expressa por correntes teóricas ligadas ao marxismo.
Em suas “provocações à teoria literária” – título de sua aula inaugural –, Jauss oferece um percurso histórico falando de alguns “movimentos”, o marxismo e o formalismo, cujas perspectivas compreenderam o fato histórico da literatura “encerrado no círculo fechado de uma estética da produção e da representação”. (JAUSS, 1994, p. 22). Conforme Jauss, uma tendência vulgarizada do marxismo entendeu a multiplicidade dos fenômenos literários em subordinação direta a determinados fatores da infraestrutura socioeconômica. E, por isso, não alcançou responder a muitas perguntas, como, por exemplo: Que categorias estéticas extrair da força testemunhal de uma obra, sem passar pelos critérios clássicos apriorísticos, como as escolas, com seus gêneros e “estilos de época”? O formalismo, por seu turno, desvinculou a obra literária de todas as condicionantes históricas, caracterizando-a a partir da ideia de um “estranhamento”, próprio da linguagem poética.
Frente ao dilema comum do marxismo e do formalismo, Jauss abre caminho para uma proposta que contempla a obra literária na história, “no horizonte histórico de seu nascimento, função social e efeito histórico”. (JAUSS, 1994, p. 20). Pergunta o teórico:
Se, por um lado, se pode compreender a evolução histórica a partir da sucessão histórica de sistemas e, por outro, a história geral a partir do encadeamento de situações sociais, não haverá de ser possível também colocar-se a “série histórica” e a “não histórica” numa conexão que abranja a relação entre literatura e história, sem com isso obrigar-se a primeira a, abandonando seu caráter artístico, encaixar-se numa função meramente mimética ou ilustrativa? (JAUSS, 1994, p. 20).
Justamente aí encontra-se a perspectiva que compreende a obra literária em sua relação com a história, mas não como mera representação de mundo. Para Jauss, a historicidade da literatura tem menos a ver com o contexto de produção da obra literária e, sim, com o experimentar dinâmico da obra por parte de seus leitores. Para ele, se o marxismo e o formalismo não conseguem superar o abismo entre literatura e história é porque ambos os métodos “ignoram o leitor em seu papel genuíno, imprescindível tanto para o conhecimento estético quanto para o histórico: o papel do destinatário a quem, primordialmente, a obra literária visa”. (JAUSS, 1994, p. 23).
Wolfgang Iser (1926-2007), outro expoente da teoria da recepção, preocupou-se de modo particular com o modo como se dá a interação entre texto e leitor. Para ele, o texto constitui-se de vazios, cabendo ao leitor continuamente preenchê-los pela interpretação. A “situação de vazio” que caracteriza o texto ficcional não é uma propriedade do texto, mas constitui a dinâmica de interação entre texto e leitor. O vazio se compreende, pois, como estrutura de comunicação. Essa estrutura se constitui a partir da não identidade da ficção com o mundo e da ficção com o receptor. A ficção não pode ser igualada à realidade, quanto ao seu caráter de objeto referencial. A ficção seria, sob tal critério, uma mentira. Explica o teórico:
O texto ficcional adquire sua função, não pela comparação ruinosa com a realidade, mas sim pela mediação de uma realidade que se organiza por ela. Por isso a ficção mente quando a julgamos do ponto de vista da realidade dada; mas oferece caminhos de entrada para a realidade que finge, quando a julgamos do ponto de vista de sua função: ou seja, comunicar. Como estrutura de comunicação, não é idêntica nem com a realidade a que se refere, nem com o repertório de disposições de seu possível receptor. (ISER, 1979, p. 105).
Nesse sentido, a ficção virtualiza as realidades, formula o não dito, transcende o mundo a que se refere. Na leitura, insiste Iser, “não importa que novas formas o leitor traz à vida: todas elas transgridem – e, daí, modificam – o mundo referencial contido no texto”. (ISER, 2002, p. 107). Iser compreende a interação entre autor-texto-leitor como um jogo em movimento, onde as diferenças entre o mundo denotado pelo texto e suas transgressões constitui a regra básica da convenção literária, isto é, da construção e da recepção do texto ficcional. Citamos, in extenso, o autor:
Ora, como o texto é ficcional, automaticamente invoca a convenção de um contrato entre autor e leitor, indicador de que o mundo textual há de ser concebido, não como realidade, mas como se fosse realidade. Assim o que quer que seja repetido no texto não visa a denotar o mundo, mas apenas um mundo encenado. Este pode repetir uma realidade identificável, mas contém uma diferença decisiva: o que sucede dentro dele não tem as consequências inerentes ao mundo real referido. Assim, ao se expor a si mesma, a ficcionalidade assinala que tudo é tão-só de ser considerado como se fosse o que parece ser; noutras palavras, ser tomado como jogo. (ISER, 2002, p. 107, itálicos do autor).
Na obra O fictício e o imaginário, publicada em 1991, Iser propõe uma espécie de antropologia literária, em que retoma a discussão acerca de como lidamos com o texto ficcional. O pressuposto básico, amplamente aceito, é que os textos literários são de natureza ficcional e que “a oposição entre realidade e ficção faz parte do repertório elementar do nosso ‘saber tácito’” (ISER, 1996, p. 13). Isto não significa dizer, no outro extremo, que um texto literário não tem qualquer vínculo com a realidade. Diz Iser: “Há no texto ficcional muita realidade que não só deve ser identificável como realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional.” (ISER, 1996, p. 14).
Para discutir as relações entre o real e o ficcional, Iser se apoia no que ele chama de “a tríade”: o real, o fictício e o imaginário. Cada elemento da tríade se diferencia dos demais por possuir função singular. Não há grandes dificuldades em compreender o conceito de “real”. Ele pode ser entendido como o factum, a singularidade histórica. O fictício ou fictum corresponderia ao “real irrealizado”, ao “real inventado”. Conforme o teórico, cabe ao “ato de fingir” – quer no nível da construção textual, quer no ato da leitura – entrar no jogo de criação de significado/sentido, pois esse ato “se determina como a transgressão dos limites daquilo que organiza e daquilo que provoca a configuração”. (ISER, 1996, p. 15). Iser denomina os atos de fingir como a irrealização da realidade e a realização do imaginário. Nesse jogo, o imaginário “une” o factum e o fictum. Iser não descarta que o traço característico da literatura é o de tratar-se de um texto ficcional. Porém ele sublinha que “ficção” não designa simplesmente um tipo textual, mas sim um “contrato” entre autor e leitor.
Em estreita conexão com a tradição hermenêutica, pode-se destacar também a perspectiva do filósofo francês Paul Ricoeur. Em relação à problemática do nexo entre texto literário e realidade histórica, Ricoeur opõe-se aos pressupostos historicistas que pretendiam uma inteligibilidade plena do discurso literário subordinada ao contexto social. Sua perspectiva hermenêutica postula a precedência das abordagens sincrônicas, tendendo a uma espécie de estruturalismo textual. Em Ricoeur, o problema da interpretação direciona-se a perguntar sobre como se dá a relação dialógica entre o leitor atual e o texto já desvinculado de seu contexto originário. Para ele, a apropriação do texto do passado pelo leitor atual implica um duplo distanciamento: a distância entre o texto e seu contexto redacional, no sentido que o texto se torna autônomo em relação a seu autor e a seus primeiros destinatários; e a distância entre o texto, em sua autonomia, e seus leitores de épocas posteriores.
Referindo-se ao problema da interpretação no âmbito da exegese bíblica – o que certamente vale para qualquer texto literário –, afirma Ricoeur:
Toda leitura de texto, por mais ligada que ela esteja ao quid, ao aquilo em vista de que ele foi escrito, sempre é feita no interior de uma comunidade, de uma tradição ou de uma corrente de pensamento vivo, que desenvolveu pressupostos e exigências. (RICOEUR, 1978, p. 7, itálicos do autor).
Ainda que o texto literário se torne autônomo em relação ao seu contexto autoral e a seus primeiros destinatários, isto não quer dizer que ele seja uma entidade sem mundo. Para Ricoeur, qualquer obra literária vincula-se, em alguma medida, a uma história de produção. Mesmo não sendo a representação de uma realidade de mundo, mas a projeção de um mundo, a obra não se compreende como objeto hipostático, um mundo à parte da realidade história na qual foi produzida. Seria cair na “falácia do texto absoluto”, conforme expressão de Ricoeur (1973, p. 43), pensar a obra como uma entidade sem mundo e sem autor. Entretanto, a parceria que se estabelece no ato da leitura não se dá entre o leitor e uma determinada tradição cultural, um evento do passado ou o mundo do autor, mas dialeticamente entre o leitor e o próprio texto em sua autonomia semântica. Neste sentido, “faz parte da significação de um texto estar aberto a um número indefinido de leitores e, por conseguinte, de interpretações”. (RICOEUR, 1973, p. 43).
Qualquer que seja o movimento da interpretação, o sentido, sempre construído, não está por detrás do texto, algo a ser descoberto com o uso de algum método adequado, mas sempre à frente e à disposição do leitor. Resume o teórico:
O que importa não é a situação inicial do discurso, mas o que aponta para um mundo possível, graças à referência não ostensiva do texto. A compreensão tem menos do que nunca a ver com o autor e a sua situação. Procura apreender as posições de mundo descortinadas pela referência do texto. Compreender um texto é seguir seu movimento do sentido para a referência: do que ele diz para aquilo de que fala. [...] O texto fala de um mundo possível e de um modo possível de alguém nele se orientar. (RICOEUR, 1973, p. 99).
Na perspectiva de Ricoeur, o genuíno poder referencial do texto literário não reside numa representação de mundo, realista ou idealizada, mas no “desvelamento de um modo possível de olhar para as coisas”. (RICOEUR, 1973, p. 104). Nessa direção compreende-se também sua concepção de metáfora. Para ele, as metáforas não são apenas palavras e expressões carregadas de novas pertinências semânticas. Ricoeur propõe uma compreensão de metáfora no nível mais amplo do discurso (narrativo, poético), quando a referência do enunciado metafórico torna-se capaz de “redescrever” ou “redescobrir” a realidade. “A metáfora apresenta-se, então, como uma estratégia de discurso que, ao preservar e desenvolver a potência criadora da linguagem, preserva e desenvolve o poder heurístico desdobrado pela ficção.” (RICOEUR, 2000, p. 13, itálicos do autor).
Discussões sobre a relação entre ficção e realidade e sobre diferentes tipos de leitores nesse jogo encontram-se amiúde também em escritos do filósofo e escritor italiano Umberto Eco (1932-2016). Na Introdução à segunda edição de Obra aberta, publicado pela primeira vez em 1962, Eco discute o conceito de obra aberta destacando que tal categoria poética não diz respeito a uma suposta estrutura objetiva de certas obras, mas a uma “estrutura de uma relação fruitiva” entre texto e leitor. (ECO, 2008, p. 29). O sucesso editorial de Obra Aberta e os debates que daí nasceram incitaram o filósofo a retomar o assunto em Lector in fabula, publicado em 1978, onde discute com mais vagar a “cooperação interpretativa” do leitor a partir das estruturas discursivas apresentadas pelo texto. Encontram-se aí inúmeras ideias de sua narratologia, dentre as quais a conhecida categoria de “leitor-modelo” – um tipo de leitor que, para além do nível diegético, mostra-se capaz de enxergar também as estruturas profundas do texto, presentes nas estruturas discursivas, narrativas e ideológicas do texto literário. (ECO, 2011).
Quando pronunciou suas conferências Norton, em 1993, publicadas com o título Seis passeios pelos bosques da ficção, Umberto Eco voltou ao tema da relação entre texto e leitor. De modo didático, ilustrando suas falas com inúmeros esquemas e exemplos da literatura, o escritor insiste em uma norma básica para se lidar com uma obra de ficção: o leitor tem que aceitar um acordo ficcional, suspender qualquer descrença e “fingir” que o que é narrado de fato aconteceu. “O leitor tem que saber que o que está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o escritor está contando mentiras.” (ECO, 1994, p. 81).
Em uma das conferências, Eco lembra o episódio de um leitor que se comunicara com ele para reclamar que no romance O pêndulo de Foucault – no qual Eco descreve com detalhes realistas as andanças noturnas de certa personagem pelas ruas de Paris, numa data precisa – não havia qualquer referência a um incêndio que de fato tinha ocorrido naquela noite e que fora noticiado pelos jornais. Eco afirma que aquele leitor “exagerou ao pretender que uma história de ficção correspondesse inteiramente ao mundo real”. Contudo, avalia o crítico, “o problema não é tão simples”. Para Eco, o mundo encenado pela ficção é “infinitamente mais limitado que o mundo real”. Por outro lado, na medida em que a ficção acrescenta realidades ao mundo encenado, este pode se tornar maior que o mundo da nossa experiência. (ECO, 1994, passim p. 83-91). Resume o autor:
Na verdade, os mundos ficcionais são parasitas do mundo real, porém são com efeito “pequenos mundos” que delimitam a maior parte de nossa competência do mundo real e permitem que nos concentremos num mundo finito, fechado, muito semelhante ao nosso, embora ontologicamente mais pobre. Como não podemos ultrapassar suas fronteiras, somos levados a explorá-lo em profundidade.
Os debates sobre a relação entre ficção e realidade portam muitos traços em comum – os teóricos aqui destacados permitem comprovar isso. Inúmeros outros críticos e ensaístas trataram da questão. Recorremos, para encerrar o tópico, ao resumo magistral da escritora e ensaísta brasileira Judith Grossmann (1931-2015). Segundo a autora, a literatura exerce uma função modificadora do real; resulta de um efeito de imaginação sobre o real, alterando, estetizando, travestindo o real com as roupagens da arte. Por mais que pareça distanciar-se do real, o texto literário é feito de vivências, de história. Para ela, entretanto, o texto literário se mantém escorregadio em relação ao real, pois balança em movimentos extremos: ora faz a imaginação se tornar mais real que o real, ora passa-nos uma rasteira lembrando sua condição de coisa inventada, apenas um texto. Diz a escritora: “O discurso literário sutiliza ao máximo as relações entre o real e a ficção, ora representando um, ora outro, como englobante ou como englobado, deslocando continuamente a questão da origem, ora colocada no discurso, ora na realidade.” (GROSSMANN, 1982, p. 18).
O que se oferece a seguir são considerações gerais sobre o uso do texto literário na abordagem do fenômeno religioso. Na esteira dos aportes teóricos acima apresentados, este tópico não vai além de um ensaio inicial sobre a questão. Certamente merece ser ampliado. Os aspectos destacados têm sua origem em pesquisas sobre interfaces entre teologia e literatura. Pretende-se ampliar o debate, no sentido de constituir interesse também para as ciências da religião.
Ao trazer o debate para o campo dos estudos da religião, o primeiro aspecto a se destacar, seguindo aqueles teóricos, é que se deve considerar a distinção, mas não oposição, entre experiências e instituições religiosas, enquanto vivências históricas singulares, e suas representações ficcionais pela literatura. Neste sentido, afirmamos o papel possível da literatura e da crítica literária de propiciar, ao lado do conhecimento sistemático oferecido pela teologia, particularmente a antropologia teológica, e pelas ciências da religião, certa interpretação do sagrado. Assim, não há como colocar em dúvida o valor de abordagens propostas por inúmeros teóricos, cuja leitura de determinadas obras literárias destaca com profundidade invejável aspectos da religião, cujas nuances se revelaram porque tangidas pela literatura. Da mesma forma, poetas e ficcionistas revelaram, com suas criações, certos traços de fatos e instituições religiosas, que escaparam ao olhar de abordagens especializadas e sistemáticas.
Sob tal pressuposto, não há como não reconhecer a presença de um tipo de discurso sobre a religião na poesia religiosa de Gregório de Matos, em inúmeros romances e contos de Machado de Assis, em poemas e textos em prosa de Fernando Pessoa, em contos de Gustave Flaubert, nas crônicas afro-brasileiras de Lima Barreto, na teologia sertaneja de Guimarães Rosa, em Grandes Sertões e em vários contos, em alguns romances de Moacir Scliar, na poesia de Adélia Prado, em vários romances de José Saramago, nas obras de Jorge de Lima, nos poemas espirituais de Murilo Mendes. São apenas alguns exemplos para lembrar que a lista se apresenta extensa. Do rol dos teóricos – cientistas da religião, teólogos, críticos literários – vale citar algumas abordagens que se tornaram verdadeiros clássicos no campo dos estudos teopoéticos: a análise religiosa da cultura proposta por Paul Tillich, na obra Teologia da Cultura[3]; a consideração da Bíblia como código fundante da cultura ocidental, no olhar do crítico literário canadense Northrop Frye[4]; a concepção de Deus como personagem, na “biografia” de Deus, do escritor americano Jack Miles[5]; os retratos teológico-literários de Karl-Josef Kuschel[6]. E, sem maiores detalhes, seria no mínimo injusto não lembrar os pioneiros das abordagens acadêmicas da teopoética em terras brasileiras: Antonio Manzatto, Maria Clara Bingemer, José Carlos Barcelos, Waldecy Tenório, Paulo Astor Soethe, Suzi Sperber, Antonio Magalhães. Também aqui, muitos outros nomes poderiam se fazer presentes, particularmente se fossem acrescentados os discípulos e seguidores desses primeiros mestres.
A consideração anterior – a de que a teologia e as ciências da religião, através da literatura, bem como a mesma literatura e a crítica literária possam oferecer certa interpretação dos fatos religiosos – pode parecer óbvia para quem lida com teopoética. Mas há nuances que escapam a essa obviedade. Assim, impõe-se considerar outro aspecto da questão: aquele relativo ao modo como a religião figura no texto literário. No texto literário as sacralidades, isto é, quaisquer “documentos” relativos ao sagrado, configuram “encenação” do sagrado. Ao cientista da religião, interessam as hierofanias (os gestos, as imagens, as narrativas), em sua singular manifestação histórica, enquanto “documento” religioso, passível de ser interpretado segundo métodos e fundamentos epistemológicos próprios. No texto literário, as sacralidades fazem parte de uma estratégia de criação.
Beatas, missionários e feiticeiros, nas obras literárias, não identificam pessoas consagradas; são personagens. Templos, terreiros, árvores sagradas e cemitérios não demarcam lugares santos; são configurações de espaços narrativos e, por isso, precisam ser analisados levando-se em consideração os múltiplos sentidos que produzem. Falas sobre Deus, deuses, espíritos, Orixás e antepassados, ainda que se possam interpretar como expressão de crenças de grupos sociais específicos, são, na literatura, expressões de personagens e de narradores e se situam na encenação de realidade produzida pelas obras. São figurações de experiências religiosas e do imaginário religioso. Constroem um efeito discursivo que não exige do leitor qualquer adesão religiosa, senão um pacto ficcional. (CANTARELA, 2010, p. 18-19).
Houve época em que, no âmbito dos estudos históricos, os documentos eram tratados como testemunho cabal dos acontecimentos a que faziam referência. A perspectiva historiográfica mais recente, e sobejamente mais crítica, compreende que o conhecimento histórico se faz como constructo. Isso aponta para o fato de que o historiador lida como textos e documentos, e não diretamente com a realidade histórica. Algo parecido ocorre no âmbito dos estudos literários. Em relação ao texto literário, vale lembrar que a obra nos transmite não as vivências históricas singulares, mas sua significação. Por mais que documentem vivências e acontecimentos históricos singulares, os textos literários não se confundem, indistintamente, com os fatos narrados.
Ilustremos a tese com um exemplo. A obra literária do escritor moçambicano Mia Couto, lida sob foco vinculante, permite tipificar certo imaginário de setores críticos da sociedade moçambicana, que expressa a consciência de conflitos entre a situação de deriva da África pós-colonial e o arraigamento de tradições ancestrais. O passado colonial, a independência, os anos de guerra civil pós 1975, o racismo, as tradições ancestrais, os hibridismos culturais oriundos da abertura do elemento moçambicano às múltiplas influências estrangeiras, notadamente a portuguesa, todos esses dados, inegavelmente históricos, marcam de modo característico boa parte dos contos e romances do escritor moçambicano. Entrelaçados a esses assuntos, sobejam temas e aspectos característicos do âmbito da religião.
Frente à tentação de não distinguir entre realidade e ficção, vale considerar que as vivências históricas aparecem nas obras literárias como traços constituintes de espaços ficcionais. A excessiva preocupação em dar destaque aos temas religiosos pode encobrir estratégias discursivas que têm especial interesse para a compreensão da linguagem da religião. Assim, retomando o exemplo acima, por trás dos “fatos” religiosos encenados pelo texto literário de Mia Couto, há que se procurar as estratégias de criação, isto é, o emprego de recursos literários para demarcar tensões, hibridismos, deslocamentos, o uso do “maravilhoso”, do insólito, do grotesco – traços característicos da linguagem da religião.
Aceita a tese de que no texto literário as sacralidades fazem parte das estratégias de criação, impõe-se uma terceira consideração. No âmbito acadêmico, pressupõe-se que as produções – comunicações, artigos, dissertações, teses – tenham como leitores pesquisadores e estudantes que se interessam pela mesma temática. Tal pressuposto implica o uso de teorias, métodos, conceitos e categorias analíticas reconhecidos e aceitos pela tradição acadêmica daquela área de estudos. Certamente, tais ferramentas podem ser relativizadas, dispensadas, substituídas por outras. Mas precisam ser conhecidas.
Em muitas produções acadêmicas relativas às interfaces entre literatura e estudos de religião, faltam os aportes teóricos, ou se apresentam demasiadamente frágeis. Faltam as justificativas para a escolha de determinado método de leitura. Falta a referência a pesquisadores que já trataram do assunto, a chamada “revisão de literatura”. Esses limites não desmerecem o interesse e o exercício de construir interfaces entre religião e literatura. Entretanto, a falta de uma base teórica do campo dos estudos literários (mas também da teologia ou das ciências da religião) culmina, no mais das vezes, na construção de curiosas e instigantes – mas frágeis e superficiais – conexões entre o texto literário e a religião. Para quem está começando esse tipo de pesquisa, vale a pena estudar, dentre outras produções exemplares, a tese de José Carlos Barcelos (2008), na qual o autor apresenta um quadro geral de “ferramentas” da teologia e da literatura, cujo domínio possibilita construir um diálogo proveitoso entre as duas áreas; ou, ainda, a tese de Antonio Manzatto (1994), a primeira nessa área no Brasil, na qual o autor estuda a obra de Jorge Amado com instrumental teórico da antropologia teológica. Felizmente, o rol de boas pesquisas é extenso.
De modo geral, as produções acadêmicas que realizam algum tipo de leitura de textos literários na interface com os estudos de religião o fazem jogando o foco sobre temas presentes nas obras. Em princípio, tais escolhas não constituem, por si, um problema. Afinal, os produtos acadêmicos se constroem em torno de temas – qualquer proposta de pesquisa ou esboço de artigo tem como primeiro tópico a indicação de um tema. Entretanto, a preeminência atribuída aos temas religiosos presentes na literatura provoca uma questão: como destacar assuntos do campo da religião, manifestos pelas obras literárias, sem desprivilegiar seus traços formais, característica inalienável da arte?
A pergunta é inspirada nos estudos de Eduardo Gross sobre a obra do teólogo uruguaio Juan Luis Segundo (1925-1996). Conforme Gross, a obra teológica de Segundo concebe uma relação entre experiência existencial e linguagem simbólica. “A criatividade humana, que se revela tanto em símbolos religiosos quanto em obras literárias, espelha um impulso que se insere na dinâmica fundamental do universo, considerada a dinâmica da criatividade divina.” (GROSS, 2012, p. 105). Daí a constante referência à arte e à literatura nos escritos daquele teólogo. Ao destacar o interesse da contribuição de Juan Luis Segundo para a discussão da relação entre religião e literatura, Gross tece também algumas avaliações, dentre as quais destacamos a que interessa à discussão proposta neste tópico. Avalia Gross:
A obra em si, enquanto bem cultural, é revestida de dignidade própria e pode-se considerar que as grandes obras da cultura manifestam valores existenciais inalienáveis. Entretanto, esta dignidade está localizada primordialmente no conteúdo das obras. A ideia de que se transmitem valores parece desprivilegiar o seu aspecto formal, uma característica fundamental na arte. (GROSS, 2012, p. 105).
A questão se desdobra em implicações diversas. A primeira diz respeito ao risco de subordinação do texto literário pelo discurso da religião. De fato, ao dar maior relevância ao conteúdo da obra literária, em detrimento de suas qualidades estéticas, arrisca-se a fazer do texto literário não mais que um “enfeite” do discurso teológico. Resvala-se no inconveniente de fazer do texto literário tábula rasa para projeção de nossa compreensão religiosa de mundo. Restringe-se a possíveis leituras literalistas do texto ficcional, confundindo o texto ficcional com vivências singulares.
O foco em aspectos formais, por sua vez, aponta para possibilidades de estender o interesse da teopoética para o campo estrito das Ciências da Religião. No âmbito da Teologia, o interesse pelo literário tende a lidar com os conteúdos expressos pelas obras. Nas Ciências da Religião o foco se amplia no sentido de tecer aproximações entre a linguagem da literatura e a linguagem da religião. O interesse prioritário por aspectos estético-formais da literatura – isto é, pela linguagem do literário, desconsiderando, no extremo, o conteúdo – permite destacar tropos de linguagem (metáforas, metonímias), hibridismos e deslocamentos linguísticos, presença formal do insólito e do grotesco, que são traços característicos da linguagem da religião – de especial interesse para o cientista da religião.
O artigo trouxe alguns aportes de teorias literárias acerca da relação entre realidade e ficção. Na esteira das reflexões propostas por autores como Robert Jauss, Wolfgang Iser, Paul Ricoeur e Umberto Eco, reiteramos que o texto literário pode ser construído com elementos do mundo vivido. Entretanto, tal assertiva não pretende igualar a ficção à realidade. Compreendemos que a correlação entre ficção e realidade se dá enquanto processo comunicativo. Por mais inventado que seja, o texto ficcional está dependente das coisas vividas. Insistimos, contudo, que a obra nos transmite não a experiência histórica, mas sua significação. Mesmo não sendo a representação de uma realidade de mundo, mas a projeção de um mundo, a obra não se compreende como objeto hipostático, um mundo à parte da realidade histórica na qual foi produzida. Certamente, a obra literária e mesmo os documentos podem ser uma chave de interpretação do momento histórico em que foram produzidos. Mas não abrem automaticamente todas as portas para a compreensão de sua época.
Ao discutir a questão acerca da criação do texto literário e da sua correlação com a realidade vivida, Leyla Perrone-Moisés (1990) sugere que o ponto de partida da arte e da literatura é uma espécie de angústia frente ao mundo e um desejo de transformá-lo. E isso vai de encontro a limites: os da realidade e, dentro dela, os da mesma incapacidade de mudar o mundo através da linguagem. Nas palavras da autora: “A literatura parte de um real que pretende dizer, falha sempre ao dizê-lo, mas ao falhar diz outra coisa, desvenda um mundo mais real do que aquele que pretendia dizer. A literatura nasce de uma dupla falta: uma falta sentida no mundo, que se pretende suprir pela linguagem, ela própria sentida em seguida como falta.” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 102-103).
Tendo esse pano de fundo teórico como referência, o artigo teceu algumas considerações para o campo de estudos da religião. Finalmente, vale lembrar que qualquer leitura, formalista ou historicista nos polos extremos, jamais esgota as possibilidades de sempre novas leituras de uma obra. Ao fim e ao cabo importam as escolhas e construções do leitor. Com seus arrazoados e justificativas, com sua capacidade de estabelecer diálogos entre o texto literário e as vivências históricas de seu interesse, o leitor tem consciência, de antemão, do caráter provisório, transitório e incompleto de sua leitura. Sem o uso de ferramentas da crítica literária, corre-se o risco de cair numa visão essencialista e descritiva do fenômeno religioso, em relação ao qual o texto literário é aduzido como testemunho.
ARISTÓTELES. Arte poética. In: Arte retórica e arte poética. 14.ed. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d., p. 231-288.
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2004.
BARCELOS, José Carlos. O drama da salvação: espaço autobiográfico e experiência cristã em Julien Green. Juiz de Fora: Subiaco, 2008.
CANTARELA, Antonio Geraldo. O caçador de ausências: o sagrado em Mia Couto. 2010. Tese (Doutorado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.
COUTINHO, Afrânio (Direção). A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Editorial Sul Americana, 1968, v. I (Preliminares).
ECO, Umberto. Lector in fabula: a cooperação interpretativa nos textos narrativos. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.
ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. 9.ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
GROSS, Eduardo. Modelos hermenêuticos para a percepção do religioso na literatura. In: HUFF JÚNIOR, Arnaldo Érico; RODRIGUES, Elisa. (Org.). Experiências e interpretações do sagrado: interfaces entre saberes acadêmicos e religiosos. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 99-115.
GROSSMANN, Judith. Temas de Teoria da Literatura. São Paulo: Ática, 1982.
ISER, Wolfgang. A interação do texto com o leitor. In: COSTA LIMA, Luiz (Org.). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 83-132.
ISER, Wolfgang. O Fictício e o Imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.
ISER, Wolfgang. O jogo do texto. In: COSTA LIMA, Luiz (Org.). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 105-118.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994.
MANZATTO, Antonio. Teologia e literatura: uma reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. A criação do texto literário. In: Flores da escrivaninha: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 102-110.
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Loyola, 2000.
RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978.
RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Editorial 70, 1973.
------------
[1] Este artigo atende a um objetivo específico do projeto “Religião e linguagem: o lugar do sistema discursivo literário nas Ciências da Religião”, financiado pela FAPEMIG (Processo APQ 02172-21). As anotações de leitura das obras de Paul Ricoeur, Wolfgang Iser e Umberto Eco, citados no artigo, foram feitas com a colaboração de Annelise Melo Pereira, então estudante de Letras na PUC Minas e bolsista de Iniciação Científica FAPEMIG. Parte da discussão oferecida pelo texto foi apresentada como comunicação no 35º Congresso da Soter (2023), em coautoria com a bolsista.
[2] Vale lembrar, dentre outros, o crítico e ensaísta francês Maurice Blanchot (1907-2003). Sobre a questão do literário, pode-se destacar a obra O livro por vir, publicado em 1959 (São Paulo: Martins Fontes, 2005). Cf. especialmente os capítulos da última seção do livro, intitulada “Para onde vai a literatura?”
[3] TILLICH, Paul. Teologia da Cultura. São Paulo: Fonte Editorial, 2009.
[4] FRYE, Northrop. O grande código: a Bíblia e a Literatura. Campinas, SP: Sétimo Selo, 2021.
[5] MILES, Jack. Deus: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997
[6] KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as escrituras: retratos teológico-literários. São Paulo: Loyola, 1999.