Vestígios de história da orquestra brasileira em narrativas sobre a colonização

Traces of brazilian orchestras history in narratives about the colonization period

Sebastião Gonçalves Feitosa
Mestre em Educação pela Universidade de Brasília (UNB). Contato: sebgofe@gmail.com


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Resumo: Este artigo apresenta reflexões sobre a influência dos fatores socioeconômicos do período colonial até o início da República e suas implicações nas condições socioculturais que originaram as primeiras orquestras brasileiras. A partir dos engenhos e das missões, onde cumpriam papel principalmente religioso, os conjuntos musicais coloniais cresceram com as cidades e passaram a cumprir papeis religiosos, cívicos e artísticos. A investigação é dirigida para narrativas e documentos do período colonial brasileiro, buscando descrições, vestígios da atividade musical desde os primeiros anos da implantação da colônia portuguesa. A partir de registros históricos sobre atividades musicais no período colonial, traçamos hipóteses sobre os papeis sociais atribuídos aos primeiros grupos que aqui foram criados. Identificamos fontes que atestam grande participação de mulatos, mestiços indígenas e negros forros ou escravos nos conjuntos musicais do período colonial. Podemos, então, articular indícios de como se iniciou a educação musical no Brasil, associando-os ao processo de formação identitária da música orquestral brasileira. 

Palavras-chave: música colonial; orquestra; músico profissional; mestiços

Abstract: This article presents reflections on the influence of socioeconomic factors from the colonial period until the beginning of the Republic, and their implication on the sociocultural conditions that gave rise to the first Brazilian orchestras. Starting from the mills and missions, where they fulfilled a mainly religious role, colonial musical ensembles grew with the cities, where they become artistic groups. The investigation is directed to narratives and documents of the Brazilian colonial period, one finds descriptions, traces of what musical activity was like since the first years of the establishment of the Portuguese colony. Through historical records about musical activity, it was possible to draw hypotheses about the social roles attributed to the first groups that were created here. Several sources attest that they were groups made up mostly of mulattos, indigenous, mestizos and freed blacks or slaves. We can, then, articulate evidence of how the process of identity formation in Brazilian orchestral music began.

Keywords: colonial music; orchestra; Work; professional musician; mestizos.

Introdução

            Ao longo dos séculos, esforços físicos e intelectuais, tempo e recursos financeiros foram empreendidos para inventar, construir e aprender a tocar instrumentos, compor e tocar músicas. Para muitas pessoas, a música é algo sagrado, que deve ser dedicado a uma comunicação com suas divindades e com o plano espiritual. Podemos dizer que a música é algo inerente aos seres humanos e dentro das intrincadas relações sociais que nossa espécie estabelece, historicamente a música e o trabalho dos músicos tem sido mais ou menos prestigiado, mais ou menos valorizado, dependendo do contexto.

            Outra característica notável do fazer musical humano é que se trata de uma atividade tanto individual, quanto coletiva. Nas diferentes culturas ao redor do mundo, tocar e apreciar música, são atividades que tem o poder de reunir grupos de vários tamanhos em torno dos eventos musicais. Por esse motivo, ao longo dos séculos se estabeleceram jogos de poder como a instituição legal do direito autoral sobre obras musicais e fonogramas.

            Considerando esse panorama histórico, neste artigo apresentamos considerações sobre as origens históricas das orquestras brasileiras, resultados parciais de uma pesquisa de doutorado e reflexões que articulam vivências no exercício da profissão de músico. Buscamos neste texto traçar uma análise da conjuntura social e econômica que possibilitou a formação dos primeiros grupos, pontuando a contribuição étnica de cada povo na formação da orquestra brasileira, com foco nas condições materiais e sociais que influenciaram na seleção e na formação dos músicos, na criação e financiamento dos grupos. 

1. O contexto histórico e a construção da ideia de música erudita

            A orquestra sinfônica que temos como “modelo” ou “padrão” atualmente, tem origem europeia e cabe observar que, além de uma forma de expressão musical, assumiu um papel ideológico para afirmação de poder econômico e da superioridade da música clássica europeia, apontando-a como modelo estético de qualidade superior: a “boa música”. Mais ainda: uma música dotada de representação de poder bélico, como aquele que se expressa em obras de Beethoven (cf. “Vitória de Wellington”), Tchaikovsky (cf. “Abertura 1812”, em cuja primeira apresentação, ao ar livre, foi usado um canhão como parte da instrumentação da orquestra) e Prokofiev (cf. “Guerra e Paz”), para citar apenas alguns exemplos. Essa tradição de música orquestral difundida pelo mundo, se caracteriza por orquestras sinfônicas permeadas por um viés ideológico, político e religioso.

            O viés político e econômico surge de modo marcante ao fim da Idade Média, quando a música polifônica começa a alcançar um esplendor e um apelo diferente do tradicional Canto Gregoriano. As composições dos primeiros mestres do contraponto, Guillaume Dufay, Palestrina, Josquin des Près, Orlando Di Lassus, entre outros, alinhadas ao caráter flamejante do período gótico, marcado pelas construções das catedrais com suas torres cada vez mais altas, são uma provocação ao imaginário tanto dos músicos quanto dos apreciadores de música. A afirmação de poder da igreja e dos estados a ela coligados manifestava-se entre outras formas de ostentação, nas grandes obras arquitetônicas, realizadas por grandes mestres, com esculturas, pinturas, vitrais e pilares. Prédios destinados a assegurar a representação do poder. Os ritos realizados nesses templos deveriam ser igualmente grandiosos e para isso, numa época em que a única forma de realização musical era a performance ao vivo, os músicos eram demandados a, por meio da música, acrescentar aos rituais religiosos a força simbólica do poder pela massa sonora produzida pelos grupos e pela força emotiva das obras executadas. 

            Ser um músico notável na realidade europeia a partir do século XII, era garantia de certas liberdades e regalias econômicas que faziam da música uma profissão de destaque, mas, com muitas exigências a serem cumpridas. Os mestres compositores, tinham a benção dos bispos, o patrocínio dos mecenas, a admiração e a tolerância dos reis e nobres. Esse cenário, aliado à própria evolução da composição polifônica, propiciou o surgimento e a evolução das orquestras. A Renascença é um dos períodos de maior afirmação do poder da música polifônica. Foram inventados novos instrumentos e os instrumentos antigos foram aperfeiçoados, a invenção da imprensa de Gutemberg (por volta de 1430) possibilitou a edição de manuais e tratados sobre vários assuntos no campo musical e tudo isso, somado ao papel de destaque da música tanto no âmbito social e religioso, quanto no comercial, deu origem aos conservatórios (como escolas tradicionais de música) e às irmandades religiosas dedicadas aos ofícios musicais.

            É no contexto dessa visão ideológica que ocorre o processo de implantação da colônia brasileira. 

2. O encontro étnico musical e o surgimento das orquestras no Brasil

            O processo de colonização do Brasil transcorreu de modo complexo. O espaço geográfico foi ocupado segundo um modelo social e político de interesses da metrópole, buscando garantir inicialmente, a posse das terras e efetivar o seu controle. Prado Jr. (1987:11) aponta que “a colonização do Brasil constituiu para Portugal um problema de difícil solução. Com uma população pouco superior a um milhão de habitantes, (…) pouco lhe sobrava, em gente e cabedais, para dedicar ao ocasional achado de Cabral.” Nessas circunstâncias, as terras brasileiras, acabariam sendo invadidas por outros povos europeus, o que não era de modo algum interesse da Coroa e que de fato aconteceu.

            Sendo assim, foi necessário nesse processo de ocupação, criar bases para controlar as condições na colônia de modo bastante rígido porque, além de garantir a viabilidade econômica do projeto colonial, deveria ser garantida a manutenção da situação de domínio pela metrópole. Em decorrência, o tipo de cultura e o modo de vida social a ser legitimado tornam-se objeto de severas leis. Costa (1985:71) ao falar sobre o controle das atividades da colônia descreve que

[...] as populações coloniais não se devem ocupar de atividades que não interessam ao comércio metropolitano, admitindo-se, como exceção, a produção de gêneros estritamente necessários à subsistência da população, quando não fosse impraticável trazê-los de fora. 

            À colônia resta, portanto, a função de extrair ou produzir e exportar para a metrópole os gêneros de que ela necessita.            Quando tratamos dos processos de implantação das colônias no novo mundo, é importante estarmos atentos não só aos fatos econômicos desse processo, mas também às expectativas, às necessidades, aos objetivos e aos traços culturais das populações envolvidas. 

            As narrativas de cronistas europeus renascentistas como Jean de Lery (1536-1613), o Pe. Manoel da Nóbrega (1517-1570) e o Pe. Simão de Vasconcelos (1597-1671), entre outros, contém uma grande variedade informações sobre como se deram os encontros dos hábitos dos diferentes povos que viveram no período colonial brasileiro. Vasconcelos (1865:XXXII), narrando primeiros encontros entre nativos e portugueses, conta que 

[…] fizerão confiança, trouxerão mulheres, e filhos, e trattárão logo com os Portugueses fóra de todo o receio: traçárão em sua presença mostras de alegria, a modo de sua gentilidade, galanteados elles e ellas de tintas de páos, e pennas de pássaros, fazendo festas, bailes, e jogos, lançando frechas ao ar. 

            Considerando as manifestações culturais dos povos nativos com quem podemos ter contato na atualidade, esse pequeno trecho, evoca imagens de certo modo familiares. O que buscamos destacar é que, nos primeiros anos após o descobrimento do Brasil, aqueles que vieram efetivamente morar na colônia, trouxeram de Portugal os seus objetos e hábitos culturais, não apenas como parte de seu modo de vida, mas também como um objetivo de implantação de padrões culturais eurocêntricos na colônia. 

            No que diz respeito às ordens religiosas, que para cá vieram com a missão de salvar as almas dos incivilizados e prestar apoio aos imigrantes, trouxeram na bagagem todo um cabedal de conhecimentos, instrumentos e métodos desenvolvidos dentro do contexto musical sacro católico contra reformista. Contudo, quando os colonizadores aqui aportaram, os povos que aqui habitavam tinham seus próprios costumes e tradições musicais. Na sequência do texto, Vasconcelos (1865: LXXXVI), descreve esses costumes da seguinte maneira:

Tem também seus instrumentos musicos. Huns os fazem de ossos de finados, a que chamão cangoéra: outros chamão murémuré: outros maiores commummente de conchas, chamão membyaguaçú, e outros urucá : outros de cana chamão membyapára. São mui dados a dançar, e saltar de muitos modos, a que chamão guaú em geral: a hum dos modos chamão urucapy; a outro, dos de menor idade, chamão curûpirára: outro guaibipáye, outro guaibiábuçú. Hum d’estes generos de danças he mui solemne entre elles; e vem a ser, que andão n’elle todos à roda sem nunca mudarem o lugar d’onde começarão, cantando no mesmo tom arengas de suas valentias, e feitos de guerra, com taes assovios, palmadas, e patadas, que atroão os valles. (sic)

            Se fizermos uma comparação dessa descrição com as marchas militares dos brancos, com as bandas marciais tocando seus instrumentos e o passo cadenciado da marcha dos soldados, havemos certamente de perceber alguma semelhança. Diante da característica guerreira e ao mesmo tempo de ritual de magias, das práticas musicais dos indígenas, os jesuítas estiveram diante de uma situação contraditória em termos de conteúdo, mas oportuna, do ponto de vista da catequese: por um lado os nativos eram dados à magia e a práticas rituais abomináveis, mas, por outro lado, como descrito acima, usavam da música em canto uníssono e ritmado para realização dos seus ritos. Dessa forma, vários registros apontam que os portugueses logo lançaram mão da música como meio para doutrinação e, ao mesmo tempo controle dos ânimos dos nativos. Segundo Tinhorão (1972:11), logo que possível 

os jesuítas trataram de iniciar os catecúmenos nos segredos do órgão, do cravo e do fagote, que melhor se adaptavam à música sacra. Com o aprendizado desses instrumentos, a estrutura natural da música dos indígenas, baseada em escalas diferentes da européia e, portanto, geradora de um esquema harmônico igualmente diverso, perdia sua razão de ser, reduzindo-se o som original da música da terra à marcação de um ou outro instrumento de percussão, ainda permitido no acompanhamento de umas poucas danças julgadas inofensivas pela severa censura dos jesuítas. (sic).

            Desse modo o trabalho missionário ao mesmo tempo que proporcionava aos nativos contato com instrumentos novos, também tratava de, aos poucos, aniquilar sua cultura musical típica. Assim, desde os primórdios iniciaram-se na colônia as atividades de música europeia. Segundo Kiefer (1976:13), em 1549, quando Tomé de Souza assumiu o Governo Geral, instalaram-se serviços religiosos que propiciaram atividades musicais. O autor detalha que

Os centros mais importantes de cultivo da música erudita – naturalmente europeia ou com características desta – foram a Bahia e depois Pernambuco, com poucos anos de diferença, destacando-se aí a cidade de Olinda. 

            Além da sua própria cultura e instrumentos, como efeito do seu projeto comercial, os europeus ao trazer para o Brasil nativos diferentes povos da África, cada povo com sua própria cultura musical, provocaram um encontro étnico onde, certamente ocorreram estranhamentos, mas, sem dúvida, se pensarmos nos desdobramentos dos anos seguintes da história, muitas confluências. Considerando as necessidades de mão de obra para o projeto de exploração econômica da colônia, a solução adotada pela coroa portuguesa foi, como em suas outras colônias da época, a política escravagista, na qual, além dos povos indígenas nativos que já estavam sendo escravizados, foram incluídos negros vindos de vários lugares da África. De acordo com Prado Jr. (1987: 27),

não se sabe ao certo quando chegaram os primeiros negros escravos. (…) Desde o século XV fazia-se deles em Portugal um tráfico intenso, (…) É, portanto, provável que tivessem acompanhado os mais primitivos colonizadores. As primeiras referências positivas datam contudo do penúltimo ano do governo de Tomé de Souza (1552). O certo é que seu número tomou rapidamente grande vulto. 

            Com a chegada dos negros ao Brasil, amplia-se o quadro étnico que será característico dos primeiros duzentos e cinquenta anos aproximadamente da colônia: vários povos indígenas que aqui já habitavam, negros de vários povos africanos e, em menor número, mas com maior poder de dominação, europeus (principalmente portugueses, holandeses e franceses). Há consenso entre os autores consultados (Sodré, Tinhorão, Prado Jr. et ali.) de que essa população constitui uma massa social que, na prática, pouco se diferencia. Prado Jr. (1987: 29) ressalta que,

Trabalhadores escravos ou pseudolivres, proprietários de pequenas glebas mais ou menos dependentes, ou simples rendeiros, todos em linhas gerais se equivalem. Vivem do seu salário, diretamente de suas produções ou do sustento que lhes concede o senhor; suas condições materiais de vida, sua classificação social é praticamente a mesma. Toda essa população que se comprime nos grandes domínios vive, como notamos, na mais completa dependência dos senhores rurais. (…) Segue-se daí para estes, na ordem política, um poder de fato que ofusca a própria soberania teórica da Coroa. Até meados do século XVII pode-se afirmar que a autoridade desta somente se exerce efetivamente dentro dos estreitos limites da sede do governo geral. 

            É nesse cenário que se inicia a formação da cultura musical brasileira. As necessidades de propiciar uma convivência que diminuísse as tensões entre as diferentes populações, pressionadas pelas condições de vida e trabalho na colônia, forçava-as a concessões mútuas no sentido de aturar e integrar práticas culturais e religiosas dos diferentes grupos. Assim, ao mesmo tempo que se miscigenaram as pessoas, misturaram-se também traços das diferentes culturas. Porém, esse processo não foi rápido, nem pacífico e livre de preconceitos, se constituiu a partir de ajustes de interesses os quais, no campo da música, podemos dizer que foram dirigidos em grande parte pela ação dos jesuítas e das irmandades religiosas presentes na colônia.

            Durante os séculos XV ao XVII a música se desenvolveu de norte a sul do Brasil. Há registros de atividades dos jesuítas em vários lugares do país, desde o Pará até o Rio Grande do Sul e, mesmo depois de eles terem sido expulsos em 1759, o trabalho musical por eles iniciado teve continuidade. Para citar apenas um exemplo, Minczuk (2014:112) relata que 

Na propriedade da Companhia de Jesus, que passou para a Coroa, na Fazenda de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, mesmo decadente, perdurou a prática e o ensino musicais; porém, agora, com alunos negros, o que veio a configurar como uma espécie de Conservatório. A Fazenda Santa Cruz era uma das propriedades frequentadas pela Família Real, a qual D. João costumava usar como ‘refúgio’. Naquele local provavelmente tenha sido realizada a primeira experiência de ensino musical sistematizado no Brasil. 

            Se em Portugal os músicos da corte eram predominantemente brancos formados nos conservatórios da Itália, da França, da Inglaterra e de outras escolas europeias, de modo geral, na colônia, havia uma população mínima de brancos que pudessem ou quisessem efetivamente se ocupar desses afazeres. E, ao contrário, cada vez mais, a população de negros, pardos e mestiços (segundo os termos empregados no período) se apercebeu de que a música e as artes eram um caminho tanto para subsistência financeira, quanto para alcançar um status social que atenuasse ou os mantivessem desembaraçados da violência praticada contra os escravos. De acordo com Nascimento Neto (2017:168),

Todavia, este contingente populacional negro que ocupou atividades primeiramente rurais, e posteriormente urbanas (TINHORÃO, 1988, p. 92-93) não foi decisivo à atuação de músicos profissionais negros (escravos ou libertos) nos espaços de sociabilidade da elite portuguesa, como já pontuamos. Antes tiveram sua musicalidade circunscrita às celebrações religiosas ligadas às irmandades do Rosário (TINHORÃO, 2012, p.45-46), ou nos seus ajuntamentos em largos, fontes e tabernas, constantemente alvos (ou não) de sanções dos poderes locais. 

            Assim, se estabelecem limites para a atuação e trânsito dos músicos pelos espaços culturais e inicia-se uma tradição característica do que será o processo de formação das orquestras brasileiras: a importação de músicos (brancos) com formação nos conservatórios europeus, para atuar como mestres nos centros destinados à formação e entretenimento musical das famílias e instituições ligadas à corte. Os dois casos mais emblemáticos dessa situação, são o Pe. José Maurício Nunes Garcia, mestiço brasileiro e Marcos Portugal, músico contratado pelo rei para acompanhar a corte na sua vinda para o Brasil.

            À medida que as cidades se desenvolvem, a população urbana aumenta e o país se torna mais populoso e mais miscigenado, crescem também as atividades e entidades onde a música se apresenta como elemento constitutivo. Aumenta também a quantidade de músicos “de cor” atuando nos grupos, tanto pelo aumento da população livre, quanto pelas necessidades das instituições e irmandades religiosas para manterem suas estruturas materiais como as igrejas e outras instalações. 

            Durante os séculos XVI e XVII, a indústria açucareira favoreceu o suporte econômico colonial e, como mencionamos, os senhores dos engenhos foram também de certa forma os senhores da vida na colônia. O poderio econômico dos engenhos garantiu a circulação das mercadorias de toda ordem no país e, no que se refere à música, inclua-se nessas mercadorias os instrumentos musicais. Monteiro (2010:29), informa que já nos primeiros anos da colonização, no século XVI,

é notória a presença de vários instrumentos musicais, aparentemente provenientes do reino. Há notícias de pedidos de envio de instrumentos quer por parte de autoridades religiosas quer civis, sendo os sopros referidos como os mais apropriados para fins didácticos e de afirmação cristã. 

            Essa informação conflui com a nossa percepção de que a música religiosa, além do papel sacro, teve papel na estruturação das metodologias de ensino de música usada na época. Delineia-se um possível contexto da música no Brasil até o início do século XVIII, isto é, a atividade musical iniciou-se majoritariamente atrelada à estratégia de catequização dos povos indígenas e de organização das instituições e festas religiosas. Com a descoberta do ouro em Minas Gerais, por volta de 1690, os cenários urbanos sofreram uma significativa modificação. Fonseca (2012:81), argumenta que o que mais diferencia Minas Gerais dos outros estados do Brasil no mesmo período, é a velocidade com que se deu a urbanização nos tempos coloniais. A autora escreve que

Contrastando com os vastos sertões que as envolviam, as povoações de Minas Gerais eram vistas como núcleos de civilização: locus de vida social e religiosa, elas constituíam instrumentos para controlar e submeter a população bastante heterogênea que ali se instalou, servindo também de postos avançados para novos desbravamentos e conquistas.

                        Essa movimentação e o crescimento da economia no Sudeste, principalmente por causa das jazidas de ouro e diamantes em Minas Gerais, incita o movimento musical que hoje é conhecido como escola mineira de música, o qual na verdade não compreende uma instituição de ensino musical, mas a efervescência de várias atividades relacionadas à música e que tiveram realmente um grande impacto no cenário da formação dos músicos, dos grupos e dos estilos musicais brasileiros. Veja-se que são desse período compositores como Marcos Coelho Neto (1740-1806), Manuel Dias de Oliveira (1745-1813) e José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita (1746-1805). 

            A formação da escola mineira de música coincide com o surgimento na Europa das primeiras orquestras sinfônicas. Os instrumentos de cordas ocupam um lugar consolidado no conjunto orquestral e a harmonia é uma técnica de composição mais empregada do que o contraponto. No Brasil, apesar de o conceito de orquestra estar ligado a grupos formados principalmente por instrumentos de sopro, com ou sem acompanhamento do órgão ou do cravo, já se encontram também instrumentos de cordas friccionadas (violinos, violas, rabecas, violoncelos e contrabaixos), o que se evidencia nas partituras de compositores brasileiros principalmente da segunda metade do século. 

            Um exemplo da efervescência cultural que dá origem à tradição da escola mineira de música, é a inauguração em Vila Rica da Casa da Ópera, depois chamada de Teatro Municipal de Ouro Preto. Segundo informações divulgadas pelo Centro Técnico de Artes Cênicas – CTAC/ Departamento de Artes Cênicas (DEACEN) da Funarte (2021:online),

foi construída pelo coronel João de Souza Lisboa, dentro da tradição arquitetônica luso-brasileira. Sua localização, no Largo do Carmo, não lhe dá nenhum destaque entre o casario vizinho (…) O Teatro Municipal de Ouro Preto, custou 16 mil cruzados a João de Souza Lisboa, construtor e proprietário da obra, concluída em 1769. Contratador dos reais quintos e das entradas, Souza Lisboa, fascinado pela arte teatral, recebeu desde o início apoio do Conde de Valadares, governador da Capitania, e de seu secretário, o poeta Cláudio Manoel da Costa. Enquanto viveu, Souza Lisboa esteve à frente da Casa da Ópera de Vila Rica, contratando atores em Sabará e no Tijuco, relacionando nomes de personalidades influentes – intelectuais, militares, políticos – capazes de prestigiá-lo em momentos decisivos, preocupando-se com a pintura e a decoração do prédio.

            Outras fontes informam que a Casa de Ópera, de Vila Rica não foi a primeira nem a única das Casas de Óperas construídas na colônia, no século XVIII. De acordo com Mayor (2015:108),

A primeira de que se tem notícia foi construída em 1719 no Rio de Janeiro para representar peças de marionetes. A partir de então, há registros da Casa de Ópera de Salvador, de 1729; da Ópera dos Vivos, do famoso Pe. Boaventura, em 1754 no Rio de Janeiro; do Teatrinho de Bolso de Chica da Silva, no Arraial do Tejuco, em Minas Gerais em 1766; da Casa de Ópera de Porto Alegre; da de São Paulo, em 1769, e a de Belém do Pará, em 1774, para citar algumas dessas construções. Para cada uma dessas instituições há especificidades; entretanto, podemos afirmar que, de maneira geral, todas surgiram a partir de iniciativas privadas com o objetivo de apresentar espetáculos teatrais. 

            Sob a ótica da música, as Casas de Ópera representam um dos marcos históricos da tradição da música de concerto no Brasil. Sendo espaços urbanos destinados especificamente à realização de apresentações culturais, elas representam para o período, uma nova perspectiva em relação ao trabalho dos grupos musicais. A antiga tradição dos seminários, dos mosteiros, das festas religiosas e da música dos coretos não é abandonada, mas agora, a música de caráter não religioso antes tocada nos saraus e serenatas, em casas dos senhores de engenhos e das famílias tradicionais, começa a ganhar espaços urbanos com características próximas dos atuais teatros e salas de concertos. A partir de então, e ao longo do século XIX, principalmente depois da chegada da família real, diante da modernização da vida urbana, os teatros e salas de espetáculos brasileiros começaram a adquirir configurações culturais que conservam até os dias atuais, isto é, instituições públicas ou privadas para promoção e realização cultural de espetáculos abertos ao público mediante aquisição de ingressos ou, em certos casos, gratuitamente.

            Nos séculos XVIII e XIX, as orquestras organizaram-se cada vez mais como instituições profissionais destinadas à produção de bens culturais para fruição do público e, demandam músicos com qualificações profissionais mais sofisticadas do ponto de vista técnico. Uma análise do repertório do período sugere que há um aumento da execução de música de concerto, com características que exigem dos músicos, além do domínio do instrumento, habilidade de leitura e escrita de partituras, dedicação integral ao ofício de músico e participação em ensaios, em muitos casos, diários. A música se torna um ofício e, apesar de, para os músicos pardos, negros e outros mestiços isso ser uma forma de distinção, já que são artistas separados da massa dos escravos, para os brancos, a atividade de músico ainda é mal vista, pois tratava-se de um ofício para subalternos. 

            O período que a família real esteve no Brasil acelerou em muitos aspectos o desenvolvimento urbano, principalmente do sudeste brasileiro. Após a declaração da independência, apesar da permanência da escravidão no país, o desenvolvimento musical prosseguiu impulsionado ainda pelo caminho da ópera e da música europeia. Sodré (1986:46) afirma que 

se as atividades científicas continuam estagnadas, marginalizadas as tentativas isoladas, devidas ao esforço individual, as artísticas desenvolvem-se lentamente, não aparecendo na música, nenhuma figura capaz de nivelar-se à do Pe. José Maurício, salvo talvez a de Francisco Manuel da Silva, autor do Hino Nacional. 

            Por volta de 1850, já sob os primeiros ares do projeto republicano, surge o movimento da ópera nacional, marcado pelo discurso de afirmação da identidade brasileira. A segunda metade do século XIX, marca o fim do período colonial e nesse período se consolida o início da música de concerto brasileira, revelando os primeiros nomes que alcançam algum reconhecimento no exterior, entre eles, Carlos Gomes, João Gomes de Araújo e Alberto Nepomuceno. Vasco Mariz (1977), escreveu que Nepomuceno foi um grande divulgador da música brasileira na Europa.

Considerações

            Historicamente a música de orquestra brasileira carece de elementos que possam situá-la não mais como uma tentativa de afirmação de proximidade com o saber-fazer musical europeu, mas como um saber-fazer expressão cultural multiétnica. São fenótipos de diferentes etnias, mas culturalmente, somos brasileiros. Somos várias misturas dessas etnias e, tão diluídas, que por mais que se conservem semelhanças, ainda assim, somos diferentes das matrizes que nos deram origem. É essa mistura étnica, que por mais que se tente suprimir revela-se recorrentemente nos modos brasileiros de tocar. 

            Neste artigo buscamos traçar uma análise da conjuntura social e econômica que possibilitou a formação das primeiras orquestras brasileiras. Considerando as informações obtidas nas diversas fontes consultadas e as articulações estabelecidas com outros dados de pesquisa recolhidos, compreendemos que a formação dos grupos com características orquestrais no Brasil, se deu em função das condições disponíveis e necessidades a serem supridas, isto é, por um lado o projeto de catequização dos jesuítas, por outro lado, a demanda cultural que emergiu à medida que aumentou a vida urbana da colônia. As condições materiais e sociais que influenciaram na seleção e na formação dos músicos, na criação e financiamento dos grupos, parecem estar ligadas a interesses das instituições religiosas, mas também a estratégias de controle político dos espaços urbanos por meio da desarticulação das culturas negras e indígenas.

            O período colonial brasileiro foi marcado por diversos encontros étnicos. A dinâmica da vida colonial rompeu com os modos de vida dos nativos, assim como com o modo de vida dos imigrantes europeus e africanos. Por força das circunstâncias, estamos situados na Geografia e na História em grande parte, talvez majoritariamente, a partir do discurso, da perspectiva do pensamento e da filosofia eurocêntrica, já que essa tem sido a base da nossa educação. Isso transparece na forma como a cultura brasileira absorveu os seus conceitos de ciências e de Artes. 

            No que diz respeito à música e mais especificamente no que concerne às orquestras brasileiras, que são o foco deste artigo, os resultados que encontramos em nosso trabalho de pesquisa, indiciam que historicamente desde os seus primórdios colonizatórios, de modo geral as instituições orquestrais têm se prestado não a uma construção identitária da nossa pluralidade cultural, mas têm sido instrumento de demarcação de fronteiras em um projeto de dominação social, cultural e política eurocêntrico.

            Temos, contudo, a partir das transições vivenciadas desde a segunda metade do século XX, na perspectiva da sociedade digital, das redes de pesquisa e desenvolvimento cultural e científico o desafio e a possibilidade de situar-nos sob novas perspectivas, abrindo-nos ao exercício de uma cosmovisão em que o referencial de direcionamento para guiar nosso pensamento seja a partir da nossa própria posição geopolítica, cultural e econômica: o mundo e a humanidade, numa perspectiva igualitária.

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