CRUZANDO FRONTEIRAS DISCIPLINARES: POR UMA PEDAGOGIA DA VISIBILIDADE DA CASA COMUM

CROSSING DISCIPLINARY BORDERS: TOWARDS A PEDAGOGY OF VISIBILITY OF THE COMMON HOME

André Augusto Diniz Lira
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professor Titular da Universidade Federal de Campina Grande – PB (UFCG). Contato: andreaugustoufcg@gmail.com  


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Resumo: O objetivo deste ensaio é propor uma pedagogia da visibilidade da casa comum tendo como base uma leitura interdisciplinar ou mesmo antidisciplinar do conceito no âmbito teológico em diálogo com as ciências humanas e artes. Para tanto, lançamos mão de um conjunto de olhares em diversos campos, para daí considerar a viabilidade de ampliação dessa noção, que possa contribuir para uma pedagogia diferenciada e integradora. Esse conjunto de abordagens nos permite agregar os diversos olhares por meio de diferentes linguagens complementares em distintos campos sociais. A construção dessa leitura é uma proposição, entendida como um ponto de partida. No primeiro momento deste artigo, consideramos os discursos constituintes (Maingueneau, 2000) como textos instituídos e instituintes, da noção de casa comum. Em um segundo momento, tratamos dos fundamentos para uma pedagogia da visibilidade, tendo como base os estudos da psicologia cognitiva e da sociologia contemporâneas. No final, consideramos os fundamentos literários e artísticos dessa construção, tendo por referencia a obra do poeta Lêdo Ivo e do fotografo Sebastião Salgado. Esperamos que este artigo seja um incentivo para se ampliar da noção de casa comum e para se cruzar fronteiras disciplinares. 

Palavras-chaves: Educação; Discurso religioso; Discurso científico; Literatura; Cristianismo. 

Abstract: The objective of this essay is to propose a pedagogy of the visibility of the common home based on an interdisciplinary or even anti-disciplinary reading of the concept in the theological sphere in dialogue with the human sciences and arts. To this end, we draw on a set of perspectives in different fields, to consider the feasibility of expanding this notion, which can contribute to a differentiated and integrative pedagogy. This set of approaches allows us to bring together different perspectives through different complementary languages in different social fields. The construction of this reading is a proposition, understood as a starting point. In the first moment of this article, we considered the constituent discourses (Mainguenneau, 2000) as established and instituting texts, of the notion of common home. Secondly, we deal with the foundations for a pedagogy of visibility, based on studies in contemporary cognitive psychology and sociology. In the end, we consider the literary and artistic foundations of this construction, having as reference the work of the poet Lêdo Ivo and the photographer Sebastião Salgado. We hope that this article will be an incentive to expand on the notion of a common home and to cross disciplinary boundaries.

Keywords: Education; Religious speech; Scientific discourse; Literature. Christianity

Introdução

“A fronteira não é um limite, mas um convite à travessia”

Lêdo Ivo, Confissões de um Poeta.

A discussão sobre o cuidado com a Terra é de longa data e se pauta em inúmeras narrativas que se avolumam ao longo dos séculos, não sendo apenas um produto da contemporaneidade. A evolução da própria ciência e dos discursos ecológicos nos permitem pensar nas múltiplas relações em jogo nas quais, no quesito da sustentabilidade ou da vida propriamente dita, todos têm perdido. Os desastres ambientais têm sido cada vez mais frequentes, de tal modo que aquilo que vislumbrávamos para décadas adiante, bate em nossas portas hoje.

As matrizes cristãs consideram que cuidar da criação seja uma ordenança do Criador, desde as primeiras narrativas de Gênesis. Ademais, a criação revelaria a sabedoria, a criatividade, o amor de Deus para com todas as criaturas, proclamando a sua Glória Excelsa de múltiplas formas como se evidencia nas páginas do Antigo e Novo Testamentos, que reverbera na história da teologia. Tanto autores provenientes do protestantismo quanto do catolicismo romano se atém aos mesmos argumentos gerais, questionando a negligência para com o meio ambiente, para com os humanos e todas as criaturas em sistemas mutuamente interatuantes; em rede, para usar um termo mais atual (Dyke et al., 1999; Stott, 2019; Junges, 2001).

Na leitura de Leonardo Boff (2015), autor fundamental para se compreender a relação entre a espiritualidade e a criação, a Terra é considerada como um organismo vivo, como a Mãe Terra. A metáfora Mãe é muito utilizada no catolicismo, posto que faz associação direta com Maria. O Papa Francisco também se utiliza da metáfora de mãe, de irmã e da metáfora da casa que tudo provê, mas que precisa urgentemente de cuidados, desde as primeiras linhas da encíclica “Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum” (2015). Essa teve uma recepção festejada, pois era esperada como um documento crucial no seio do catolicismo e para além dele (Tavares, 2016). 

No primeiro momento deste artigo, nossa tarefa será, considerar os discursos constituintes (Maingueneau, 2000) como textos instituídos e instituintes, reprodutores e produtores de sentidos, legitimadores e autenticadores, tendo como foco a relação entre a educação e o cuidado da terra, da nossa casa comum. Em um segundo momento, tratamos dos fundamentos para uma pedagogia da visibilidade, tendo como base os estudos da psicologia cognitiva e da sociologia contemporâneas. No final, consideramos os fundamentos literários e artísticos para uma pedagogia da visibilidade da casa comum. Esperamos que este artigo seja um incentivo para se ampliar essa noção para se cruzar fronteiras disciplinares. 

Discursos constituintes da Educação e da Casa Comum na contemporaneidade

De acordo com Maingueneau (2000), os discursos “regulados” são aqueles submetidos a um maior controle textual, podendo ser arquivados e comentados. Como todo discurso, em um sentido mais amplo, “[...] sua identidade se constitui e se alimenta através de outros discursos; falar é sempre falar com, contra ou por meio de outros discursos, outras vozes” (Maingueneau, 2000, p. 5).

Esse pesquisador dos estudos da linguagem elaborou, entre outros, o conceito de discurso constituintes. Na sua perspectiva, o seu estatuto é singular, pois podem ser concebidos como “[...] zonas de fala em meio a outras e falas que pretendem preponderar sobre todas as outras” (Maingueneau, 2000, p. 6). Esses discursos teriam o poder de mobilizar o archéion da produção verbal de uma sociedade, ou seja, associaria: “o trabalho de fundação no e pelo discurso, a determinação de um lugar associado a um corpo de enunciadores consagrados, e à elaboração de uma memória” (Maingueneau, 2000, p. 7).

Os discursos constituintes são múltiplos e concorrentes, mas cada um deles tem a pretensão de ser o detentor, ainda que provisoriamente, do estatuto final de um determinado campo discursivo (religioso, filosófico e até científico), sendo que este último é o mais ameaçado em sua existência, dada a própria natureza da constituição da ciência, sempre em provisoriedade. 

Dois aspectos convêm assinalar sobre os discursos constituintes. Primeiro, o lugar da comunidade discursiva no discurso constituinte que fomenta, que legitima e que dá continuidade ao trabalho de recepção por meio de citações, de estudos, de comemorações celebrativas entre outros. Em segundo lugar, a esfera de ação pretendida de um discurso constituinte é de alcance global, ainda que produzidos localmente. Em outras palavras, esses discursos têm como meta se direcionar para além do âmbito institucional.

Várias obras e documentos se tornaram referência no tocante à educação, de um modo amplo ou mais específico, e à preservação da terra e dos seus vários ecossistemas no contexto da virada do milênio. Alguns desses textos trazem a marca da força dos enunciados coletivos, posto que escritos por seus representantes. Podem ser considerados discursos constituintes. 

O documento Carta da Terra tem uma longa história de composição, de rascunhos e de lutas, desde 1987, passando pela Eco 92, por várias reuniões subsequentes de 1995 até 2000, com vários protagonistas, até sua declaração final no ano 2000. Tornou-se, por fim, o principal documento sobre a sustentabilidade. Contudo, ressaltamos também A Carta da Terra proveniente da Conferência Mundial dos Povos Indígenas sobre Território, Meio Ambiente e Desenvolvimento proveniente de um comitê intertribal que representou vários povos indígenas com o apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP) na Rio 92, que pode ser compreendida como uma escrita de resistência e de luta pelos direitos de vida e da terra, por  sua preservação no sentido mais amplo na cosmovisão histórica dos povos indígenas. 

Um documento importante, na área da Educação, é o relatório da Comissão Internacional de Educação para o Século XXI da UNESCO, que ficou mais conhecido como “relatório de Delors” (Delors, 1996) e também pelo enfoque dos “quatro pilares da educação”: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e a viver com os outros, aprender a ser. Nesse mesmo relatório, destaca-se a necessidade de se pensar a educação como um processo amplo (escolar-universitário com rebatimentos no trabalho), em uma perspectiva política, de formação e profissionalização docente e de se pensar para a aldeia global. 

Na passagem para este século, no ano 2000, outra obra de referência da Unesco foi Os sete Saberes Necessários da Educação do Futuro de autoria de Edgar Morin. Propõe-se, nessa obra de síntese, uma educação mais voltada para a superação das cegueiras do conhecimento justamente na virada do século passado. A propósito, Morin recorrentemente destaca a necessidade de analisar os pontos de vista também como pontos de cegueira, sublinhando os fundamentalismos [no seu dizer as possessões de ideias], os vários erros do conhecimento (mentais, intelectuais e da razão) e as cegueiras paradigmáticas. Como proposta para este novo século, Morin ressalta ainda a importância de ensinar a condição humana, a identidade terrena, o enfrentamento de incertezas, a ética do gênero humano e, destacamos, o ensinar para a compreensão, abrindo um vasto leque para se pensar a epistemologia das ciências (eg. Morin, 2000, 2015).

No Brasil, nesse mesmo contexto, convém assinalar a discussão baseada em Paulo Freire, que tem sido desenvolvida por um dos seus principais intérpretes Moacir Gadotti (2000), do qual destacamos a obra Pedagogia da Terra

A publicação da carta encíclica Laudato Si’ que tem como destinatário não apenas os cristãos, mas pretende ser um documento-diálogo amplo sobre a casa comum; referimo-nos aqui ao alcance global de um discurso instituinte, que tratamos anteriormente em Maingueneau (2000). Muito já se analisou sobre as suas bases constitutivas e propósitos (Wohlfart, 2021; Murad, Tavares, 2016, 2022) dessa encíclica, mas convém assinalar que nela encontramos fartamente o discurso coletivo, que a legitima e fundamenta, valendo ressaltar aqui as várias referencias aos documentos conciliares nacionais, aos documentos de abrangência maior [como a carta da Terra], ao discurso científico e, como se haveria de esperar, em sua primeira parte, aos textos bíblico, que, em conjunto, a anima e a fundamenta. Nesse sentido, essa carta poderia ser entendida como uma síntese de pensamento coletivo, a partir de uma instância reconhecida: a voz do Papa.

Consideramos, nesse cenário, a enunciação regulada e legitimada da mais alta autoridade do catolicismo como uma pedagogia da visibilidade em torno do cuidado da casa comum. É tanto que o capítulo 4, que finaliza a carta, é justamente sobre a educação e a espiritualidade ecológicas. Esse discurso final também situa ou pretende regular qual o posicionamento oficial da Igreja Católica sobre essas temáticas, posto que várias vozes se delineiam na contemporaneidade nesse sentido.

As relações entre discursos e práticas científicas e religiosas são complexas indo desde o conflito aberto até dimensões mais dialógicas e integrativas (McGrath, 2020). As semelhanças e diferenças entre o método teológico e científico caminham para o aprofundamento reflexivo, considerando a progressiva incorporação da teologia no quadro das ciências (Alves, 2019).

Desde o Concílio Vaticano II, a Igreja Católica tem se aproximado do discurso científico o que pode ser observado historicamente nos seus principais documentos. De acordo com Oliveira e Lima (2021, p. 582), o Papa Francisco estaria dando continuidade a abertura proposta, naquele concílio, no sentido de resgatar a dimensão social, notadamente o “compromisso da Igreja dos pobres e para os pobres”. Acrescentamos que, nesse quadro, há também uma continuidade no sentido da aproximação com os discursos sociais, científicos e educacionais, no cenário maior do discurso ecológico. 

Serge Moscovici (2007, 2005), autor mais conhecido pelo desenvolvimento do conceito de Representação Social, na Psicologia, é também um dos pioneiros do movimento ecológico surgido no seio da Europa. Para o autor, o movimento é uma forma de contracultura, sendo heterodoxo, pautado em uma filosofia ativa, de defesa, de comprometimento da coletividade consigo mesma na rede de relações da qual emerge com a natureza. Seria necessário, para o autor, um reencantamento do mundo, seguindo o linguajar Weberiano. Na mesma esteira, assim advogam Hugo Assmann (1999) e Jung Mo Sung (2006) em um cenário de denúncia no qual os desencantamentos são mais presentes. 

Libanio e Murad (2014, p. 38), ao terem em vista o desenvolvimento da teologia na contemporaneidade, afirmaram: “Descortina-se para a Teologia a belíssima paragem da ecologia”, considerando como autor fundamental Leonardo Boff, que teria partido do grito do pobre para o grito da terra, no âmbito da Teologia da Libertação (entre tantos outros livros do autor, ressaltamos: Boff, 2013, 2015, 2014, 2022). 

É possível considerarmos outros diálogos a partir da noção da casa comum ao ter em vista outra pedagogia da visibilidade? A propósito como a própria carta encíclica enuncia a casa comum é para além da Terra, a casa comum a todos; trata-se de um espaço de relações onde os seres humanos convivem ou se destroem. 

Fundamentos científicos para uma pedagogia da visibilidade

A psicologia cognitiva e a neurociência contemporâneas têm ampliado a discussão sobre o desenvolvimento, agregando temas e abordagens, antes dispersas, em dimensões mais integrativas, advogando pelo importante lugar das emoções no comportamento humano como nas decisões, no planejamento, na compreensão de si mesmo, entre outros aspectos (Damásio, 1996; Goleman, 1995). Na trajetória de pesquisas de Goleman (2012), a estrutura da inteligência emocional poderia ser sintetizada em quatro elementos a autoconsciência, a autogestão, a consciência social e a gestão de relacionamentos, que se relacionam de diversas maneiras.

Ao tratarmos de uma pedagogia da visibilidade é importante considerarmos o lugar da empatia nesse quadro. Segundo Goleman (2012), há uma variedade de tipos de empatia, que se desenvolvem de diferentes modos e dependem de diferentes circuitos no cérebro. A empatia cognitiva é aquela que me permite considerar ou ver sob a perspectiva do outro. A empatia emocional me possibilita sentir ou me colocar no lugar dos outros. E o terceiro tipo de empatia seria aquela que me possibilita considerar que o outro precisa de alguma ajuda e que me ponho a disposição para agir em seu favor. Esses tipos de empatia não podem serem vistos de forma estanque. A terceira variedade de empatia é mais complexa, pois mobiliza o agir em prol dos outros. De acordo com esse autor ainda, o treinamento e a educação, de um ponto de vista mais amplo, podem desenvolver a empatia quando nos possibilitam compreender como os outros se sentem ou pensam. Em outras palavras, pode-se intervir indiretamente nos circuitos neurais, por exemplo, meio de vídeos e filmes para se desenvolver a empatia.

Outros autores também têm discutido o papel das narrativas na ampliação do olhar sobre o si mesmo, os outros e o mundo inclusive na terapia, na educação infantil e na formação docente, partindo de diferentes abordagens teóricas. A propósito, as narrativas são o principal meio de educação do povo de Israel no Antigo Testamento e de diversas tradições religiosas (Pratt, 2004; Ricoeur, 2008).

Howard Gardner (2007) que ficou conhecido pela Teoria das Inteligências Múltiplas tem advogado que teríamos que investir em cinco mentes para o futuro: a mente sistematizadora, a mente sintética, a mente criativa, a mente respeitosa e a mente ética. Para o desenvolvimento dessas mentes, há de se considerar o aporte social, notadamente o educacional, na medida em que se trata ou deveria se tratar de um projeto coletivo, de uma intencionalidade na dimensão do planejamento curricular.

No que respeita à Teoria das Inteligências Múltiplas se destacam quanto a uma pedagogia da visibilidade as inteligências pessoais (a intrapessoal e a interpessoal) e também a inteligência naturalista, no sentido de uma formação humana e da casa comum. Não obstante, é importante ressaltar que as outras inteligências também servem a propósitos nos quais se visibiliza os outros e se contribui para a vida na casa comum, naquela empatia que se coloca a serviço dos outros. 

Todas as pessoas possuem as oito inteligências descritas por Gardner, ainda que possam apresentar um perfil diferenciado que as tornem mais desenvoltas em algumas dessas. Essas inteligências funcionam de um modo complexo, existindo inclusive várias maneiras de ser inteligente em cada uma delas (Armstrong, 2001; Gardner, 1995). Essa teoria, de acordo com o pesquisador, não deveria servir ou se limitar a desenvolver os potenciais do perfil singular das pessoas, mas procurar trabalhá-las em conjunto “[...] qualquer ideia, disciplina ou conceito importante deve ser ensinado de várias formas, as quais devem, através de argumentos, ativar diferentes inteligências ou combinações de inteligências” (2010, p. 21).

O documentário Janela da Alma focaliza a construção do olhar através da noção de experiência. Nesse documentário, tanto o neurocientista Oliver Sacks quanto o poeta Manoel de Barros, que foram entrevistados, enfatizam o papel da imaginação na percepção humana, de tal modo que ver não é apenas enxergar é ir além, é imaginar outros cenários. Sacks destaca ainda o papel da cultura e das teorias científicas na construção do nosso olhar. 

De um ponto de vista sociológico, temos que ressaltar também os contextos nos quais nos movimentamos, que Pierre Bourdieu melhor os definiu pelo conceito de campos sociais. Na terceira parte do livro As Regras da Arte Bourdieu (1996), intitulado de Compreender o Compreender, Bourdieu focaliza uma série de temas que dizem respeito a percepção das obras e, para nossos objetivos, sublinhamos que o olho (a visibilidade) é um produto de um determinado campo social, do lugar que se posicionam os agentes, mais precisamente do habitus. Um campo social pode ser entendido como um espaço do mundo social, em uma determinada esfera discursiva, em que os agentes lutam para angariar lucros a partir dos valores que se instituem nesse campo (religioso, artístico, literário, científico, econômico, político), dos capitais pelos quais se luta (econômicos, culturais e sociais). Ao analisar um determinado objeto a percepção estará diretamente associada ao lugar ocupado nesse campo e as experiencias vinculadas. Portanto, não há uma pureza no olhar, posto que é esse gestado socialmente em uma determinada trajetória de vida. 

Contudo, pode ser enganador se apenas considerarmos algumas (macro)classificações sem nos deter nas próprias divisões e subdivisões possíveis, como, por exemplo, avaliar os evangélicos ou mesmo os católicos como todo homogêneos. Temos ainda a possibilidade de vários perfis diferenciados de pessoas o que ensejou o desenvolvimento da sociologia do indivíduo. A extensa obra de Bernard Lahire revisita a obra de Bourdieu colocando em pauta essas variações no registro do individuo (eg. Lahire, 2002).

Por fim, refletir sobre o cuidado da casa comum inevitavelmente há de se pensar na escala das cidades e de como estas são promotoras de vários desequilíbrios sociais e ambientais. A iniciativa de pensar a cidade como um projeto educativo (Gómez-Granell, Vila, 2003) ainda é muito incipiente no Brasil, ocupando um lugar muito restrito e até mesmo inexistente na formação docente em termos curriculares. Compreendida como uma Pedagogia não institucional e inovadora do século XXI, devemos pensar a cidade de uma forma mais ampla (Carbonell, 2016). Morigi (2016) enfatiza que se faz importante considerar que essa seria uma das formas de se repensar e reinventar a democracia. A discussão e a implementação de projetos de cidades inteligentes caminham no sentido de considerar a sustentabilidade e a qualidade de vida como aspectos complementares do mundo social. 

Fundamentos literários e artísticos para uma pedagogia da visibilidade

“Saber ver é um dever poético. E a vida exige muito olho para ser vista”. Lêdo Ivo, Confissões de um Poeta. 

A discussão sobre uma pedagogia da visibilidade tem sido palco de nossas publicações e de práticas de formação docente, notadamente na sua relação com as autobiografias e seu poder transformador (Lira; Passeggi, 2021). Recentemente, publicamos um artigo em que introduzimos uma discussão sobre pedagogia da visibilidade, tendo por referência as autobiografias literárias de Manoel Bandeira, Lêdo Ivo e Ferreira Gullar, que fazem parte de diferentes gerações literárias. Aqui retomamos a obra de Lêdo Ivo e, no propósito de ampliar a discussão, também discutimos alguns elementos da obra e da autobiografia do fotógrafo Sebastião Salgado.

Tornou-se uma máxima dos grandes fotógrafos afirmar, como dito por Wolfenson (2017, p. 34), que: “fotografar é a minha maneira de me comunicar com o mundo, tanto de captar como de emitir”. Nessa perspectiva, Salgado afirmou que: “A fotografia é uma escrita tão forte porque pode ser lida em todo o mundo sem tradução (Salgado; Francq, 2014, p. 58). 

Conhecido internacionalmente por sua obra fotográfica Salgado, escreveu na companhia de Isabelle Francq (Salgado; Francq2014) uma autobiografia retratando a sua vida desde os primórdios da sua infância, na qual se destaca inicialmente a relação com uma terra sem fim aos olhos de menino e de qualquer adulto, que se depare com a extensão das cavalgadas que fazia na época. E para essa terra brasileira sem fim que foi progressivamente devastada que Salgado retorna junto com a sua esposa, Lélia Deluiz Wanick Salgado, para criar o Instituto Terra visando a restauração ecossistêmica da Mata Atlântica, mais precisamente na Fazenda Bulcão em Minas Gerais, desde o ano de 1998.

Na perspectiva de Martins (2009, p. 98) a exposição fotográfica Êxodos desse fotógrafo estaria muito além dos embates partidários e das questões políticas, pois retrataria que: “a condição humana proclama a sua beleza em todas as horas, nas mais duras e terríveis, nas mais sofridas e adversas”. Ao mesmo tempo, sublinhamos que as suas fotografias são sim escritas, são sim mensagens, são sim produtos e produtoras de sentidos. O projeto Gênesis que foi gestado por meio de múltiplas de todos os continentes, em 8 anos de trabalho, é um anúncio maior ainda da beleza da terra como expressão viva.

Vale salientar a intertextualidade dessas últimas obras com os relatos bíblicos da Criação e do Êxodo. Assim como suas fotografias são um firme fundamento de uma pedagogia do olhar, da visibilidade, como aqui temos referido, a sua autobiografia nos permite direcionar para os sentidos em torno de um foco comum: o cuidado com a casa comum, sendo igualmente um testemunho de amor para o mundo devastado de sua infância.

Da mesma forma, a literatura nos possibilita várias aberturas para uma pedagogia da visibilidade. Lêdo Ivo, escritor alagoano da Academia Brasileira de Letras (ABL), foi um autor muito prolífico em diversos gêneros literários, tendo escrito poesia, romance, prosa poética, escritos autobiográficos, literatura infantil e infanto-juvenil, além de ter sido crítico literário e tradutor. Ele advogou que a missàƒo da poesia seria dar visibilidade e voz ao mundo: o mundo geográfico, o mundo dos animais, o mundo dos seres humanos, em seus registros pessoais e sociais, em diversas facetas como já analisamos em outro momento (Lira, Passeggi, 2018). 

Um ponto de inflexão no seu olhar sobre a escrita e sobre sua missão no mundo se deu logo aos 15 anos de idade, através da leitura de um poema de Jean-Arthur Rimbaud, Les Effarés. De acordo com Ledo Ivo (2013, p. 128): “Esse poema foi para mim uma epifania, uma estonteante descoberta de mim mesmo, daquilo que jazia dentro de mim, à espera da expressão e possível comunicação – a espera da linguagem”. Essa descoberta do si mesmo foi tanto uma descoberta da sua vocação e missão no mundo quanto uma compreensão da realidade, da materialidade da poesia e da impureza do mundo visível.

A poesia é uma arte de ver — de ver e saber ver o que, mesmo sob os nossos olhos, só pode ser distinguido pelo uso e iluminação da linguagem. O silêncio dos meninos maltrapilhos contemplando o nascimento do pão em uma padaria guardava ao mesmo tempo o horror e o deslumbramento da vida. Era o silencio dos seres sem linguagem, que só podem exprimir-se através dos poetas, [...] A estética da beleza e a estética da fealdade — o belo e o horrendo, o harmonioso e o disforme —devem formar a totalidade de uma visão empenhada em celebrar o universo. (Ivo, 2013, p. 129)

Na linha de compreensão de que a casa comum implica não apenas a Terra enquanto planeta, mas um sistema, no qual a humanidade se encontra e se desencontra, inclusive na cidade, vale ressaltar o poema Cristo em São Paulo desse autor. Nele podemos enxergar o Cristo oculto e presente na vida cotidiana, o Cristo abandonado, que já nasce homem feito, o Cristo que carrega a Cruz, no caminho do Calvário. Cristo aqui, portanto, é uma metáfora da condição humana degradada na cidade no numerosa, que a todos invisibiliza.

CRISTO EM SÃO PAULO

Na noite de Natal 

quando os sinos tocavam

vi Cristo caminhando

numa rua em São Paulo. 

Na hora em que nascia

era já homem feito

trazendo de seu berço

a solidão e a morte.

O vento branco e frio 

sussurrava um segredo: 

-— Como a vida era breve 

para os homens e deuses,

um suspiro de Cristo

exalado na treva! 

E carregando a Cruz

Jesus ia sozinho caminho do Calvário, 

Ninguém o acompanhava. 

Luminoso rumor de uma noite de festa.

Jesus estremecia.

Como a noite era fria!

E a boca do metrô

dentro do nevoeiro

engoliu os seus passos.

(Ivo, 2004b, p. 267)

Considerações Finais

Ao longo deste trabalho, procuramos colocar em evidência uma pedagogia da visibilidade, buscando fundamentos para construir nosso próprio ponto de vista a partir de uma perspectiva que cruzou fronteiras disciplinares da linguística, da psicologia cognitiva e da neurociência, da sociologia, das artes e da literatura. É evidente que se trata de uma tentativa de sublinhar alguns aspectos em uma abordagem que se pretende temática.

Um documento, um texto, como vimos, não pode ser considerado uma peça isolada do mundo social. Ele se encontra como a Encíclica do Papa, a Laudato Si’ entremeada em uma trama discursiva, em uma determinada esfera, em um campo social; imerso, portanto, da coletividade e da institucionalidade. No dizer de Pierre Bourdieu de uma legitimidade. E nisso se espelha um desejo de uma dada sociedade ou melhor de uma parcela dela ao se propor não a ordem de destruição, mas a luta pela preservação. 

Entra nesse jogo a empatia que se coloca a serviço do outro, que se faz pela atividade interventiva no mundo, sendo necessário cruzar outra fronteira a do imobilismo e também dos sentidos reproduzidos e cristalizados. Certamente, como lemos na epígrafe do tópico anterior, a vida precisa mesmo de muito olho para ser vista, principalmente se é considerada a materialidade das relações, o poder em curso de fazer destruir e de fazer matar. É necessário, por fim, seguir o Cristo solitário das ruas de São Paulo para nos fazer enxergar a nós mesmos, aos outros e o mundo em que nos (des)encontramos. 

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