O ASPECTO RELIGIOSO NA OBRA CRIME E CASTIGO DE DOSTOIÉVSKI

THE RELIGIOUS ASPECT IN DOSTOYEVSKY'S CRIME AND PUNISHMENT

Diego Carmo de Sousa
Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC. Contato: adv.diegosousa@hotmail.com

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Resumo: Este trabalho tem por finalidade analisar a importância do cristianismo na vida e obra do escritor russo Fiodor Dostoiévski e apresentar sua concepção peculiar sobre o cristianismo russo e sua ideia de que o povo da Rússia carregaria a essência do cristianismo dentro de si. Usaremos para essa análise como obra de apoio o seu Diário de um escritor. Ainda, buscaremos demonstrar como Dostoiévski fora capaz de compreender os conflitos políticos e sociais de seu tempo e captar as ideias que efervesciam na Rússia do século XIX, introduzindo-as na boca de seus mais diversos personagens naquilo que ficou conhecido pela crítica literária como romance polifônico. Para fazer essa contraposição exporemos as críticas de Dostoiévski ao filósofo revolucionário russo Nicolai Tchernichevski. Tentaremos, por fim, perquirir se há alguma influência religiosa relevante para o deslinde do romance Crime e castigo em especial se é possível afirmar, com base exclusivamente na mencionada obra, que houve uma efetiva conversão ao cristianismo do personagem principal Rodion Românovitch Raskolnikov.

Palavras-chave: Cristianismo; Conversão; Dostoiévski; Crime e castigo.

Abstract: The purpose of this work is to analyze the importance of faith in the life and work of the Russian author Fyodor Dostoevsky, and to present his peculiar conception of Russian Christianity, and his belief that Russians carry Christ's essence within themselves. For this analysis, we will use his Diary of a Writer as a support work. Our goal is to demonstrate how Dostoevsky understood the political and social conflicts of his time, captured the ideas that ebbed in Russia during the 19th century, and put them into the mouths of his most diverse characters in a novel that is now referred to as polyphonic by literary critics. This opposition will be made by exposing Dostoevsky's criticism of Russian revolutionary philosopher Nicolai Chernyshevsky. Finally, we will try to inquire if there is any religious influence relevant to the outcome of the novel Crime and Punishment, in particular whether it is possible to state, solely based on the aforementioned work, that Rodion Românovitch Raskolnikov effectively converted to Christianity.

Keywords: Christianity; Conversion; Dostoevsky; Crime and Punishment.

Introdução

Diante do aumento da russofobia no mundo em razão da eclosão da Guerra Russo-Ucraniana, iniciada em fevereiro de 2022 com a invasão militar do território ucraniano por tropas russas, torna-se imperiosa a revisitação das obras do escritor russo Fiodor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1881), considerado um dos maiores escritores da história moderna e suas obras já inseridas nos cânones da literatura mundial.

Como grande escritor que fora, Dostoiévski foi capaz de compreender os conflitos políticos e sociais de seu tempo e captar as ideias que efervesciam na Rússia do século XIX, introduzindo-as na boca de seus mais diversos personagens naquilo que ficou conhecido pela crítica literária como romance polifônico. Um dos romances mais notáveis da verve, força e gênio dostoievskiano é Crime e castigo, o qual fora grandemente discutido desde sua publicação em 1866.

No presente trabalho buscaremos apresentar o que seria esse aspecto polifônico nos romances sociais do referido escritor russo e quais as principais ideias que agitavam a Rússia dos anos 60 do século XIX que foram captadas e expostas de forma crítica nas obras de Dostoiévski, em especial em Crime e castigo, e alguns dos expoentes dessas ideias, como o filósofo e revolucionário russo Nicolai Tchernichevski (1828-1889).

Ao final, tentaremos apontar a importância do cristianismo na vida e obra de Dostoiévski e sua concepção peculiar sobre o cristianismo russo, usando como obra de apoio o seu Diário de um escritor, e perquirir se há alguma influência religiosa relevante para o deslinde do romance Crime e castigo em especial se é possível afirmar, com base exclusivamente na mencionada obra, que houve uma efetiva conversão ao cristianismo do personagem principal Rodion Românovitch Raskolnikov.

1. A polifonia nos romances sociais de Dostoiévski

Sigmund Freud (1996), em seu ensaio sobre o parricídio nas obras dostoievskianas, faz um rico estudo sobre a personalidade de Dostoiévski e a apreende numa complexidade repartida em quatro particularidades: o artista, o neurótico, o moralista e o pecador. Multifacetadas também são suas personagens, o que constitui a extraordinária peculiaridade ficcional do referido escritor russo. Este, ao romper com as formas já integradas do romance europeu (BAKHTIN, 2022, p. 100), dá voz a um gênero para além dos limites esquemáticos circunscritos na história da literatura.

O filósofo e crítico literário soviético Mikhail Bakhtin (1895-1975) explora, em uma de suas obras mais importantes, a ideia de polifonia no romance literário de Fiódor Dostoiévski. O livro Problemas da poética de Dostoiévski foi publicado pela primeira vez em 1929, ficando mais conhecido a partir de sua segunda edição em 1963, e se trata de um importante estudo do caráter polifônico nas obras daquele autor. Nele, Bakhtin ressalta que a vereda da filosofia da monologação é justamente o principal apelo da crítica sobre o criador do romance polifônico. Para Bakhtin, Dostoiévski foi, de fato, o criador desse tipo de romance:

A multiplicidade de vozes e consciências autônomas e imiscíveis, a polifonia autêntica de vozes plenivalentes, é efetivamente a particularidade fundamental dos romances de Dostoiévski. Não é uma grande quantidade de destinos e vidas em um único mundo objetivo à luz de uma única consciência autoral que se desenrola em suas obras, mas é justamente uma multiplicidade de consciências com direitos iguais e seus mundos que se reúnem aqui, conservando sua imiscibilidade na unidade de um certo acontecimento/coexistência (BAKHTIN, 2022, p. 56)

Dostoiévski conseguia captar as diferentes ideias políticas e sociais que pululavam na Rússia de meados do século XIX e as colocava na boca de seus personagens, abordando de forma perspicaz e magistral o aspecto social das distintas correntes de pensamento de sua época. A polifonia, assim, foi um instrumento utilizado pelo autor para representar a multiplicidade dessas vozes, presente em toda a movimentação social da Rússia de então. Ele teria encontrado e sabido perceber “a multiplanaridade e a contraditoriedade não no espírito, mas no mundo social objetivo” (BAKHTIN, 2022, p. 97). Prossegue Bakhtin:

A própria época tornou possível o romance polifônico. Dostoiévski foi um participante subjetivo dessa multiplanaridade contraditória do seu tempo; ele mudava de posição, passava de um a outro lado, e nessa relação os planos que coexistiam na vida social objetiva eram, para ele, etapas do seu caminho de vida e de sua formação espiritual. Essa experiencia pessoal foi profunda, mas Dostoiévski não deu a ela uma expressão monológica direta na sua criação. Essa experiência só pode ajudá-lo a compreender mais profundamente as contradições coexistentes e extensivamente desdobradas, contradições entre pessoas, e não entre ideias em uma única consciência (BAKHTIN, 2022, p. 97).

No romance polifônico, as vozes ficcionais não são apenas componentes do discurso, mas o constroem e estruturam. Com o sr. Goliadkin, por exemplo, protagonista de O duplo (1846), Dostoiévski concebe aquilo que foi uma de suas primeiras experiências de toda a sua criação romanesca: a personalidade multiplicada ou desdobrada, num herói polifônico, que se depara e se eleva (e sofre) com um outro self – uma outra consciência, independente de si mesmo, de forma quase ameaçadora. Diz-nos o narrador: “Era um outro senhor Goliádkin, completamente diferente, mas em tudo semelhante ao primeiro.” (DOSTOIÉVSKI, 1963, p. 320). 

Para além da personagem, o narrador também é colocado numa posição metalinguística, possuidor de certa autonomia, ao ponderar sobre o próprio fazer narrativo – sua incumbência primeira: “Como poderia eu, [...] modesto narrador, [...], exprimir esta amálgama surpreendente de beleza; [...] como descrever-vos [...] (DOSTOIÉVSKI, 1963, p. 306).

O que era o todo, se torna parte. O que era uno, se torna aspecto. De ânimo quase musical, composições como as de O duplo, Memórias do subsolo (1864) e Crime e castigo (1866) representam os complexos contrastes do sofrimento humano através de diversas vozes. Do artista ao pecador, do duplo ao homem do subterrâneo, o que se constata aqui é, sobretudo, uma revolução artística própria de grandes mentes, conforme já antevisto por Bakhtin quase no começo do século passado.

2. Dostoiévski como crítico de seu tempo

A Rússia do começo do século XIX estava passando por intensas mudanças sociais, políticas e econômicas. Na época, aquele Estado, ainda czarista, girava em torno do poder absoluto do czar com uma economia baseada na propriedade rural e exploração de mão-de-obra campesina. Para o historiador inglês Eric Hobsbawn (1917-2012), a falta de liberdade do servo russo era tamanha que muito se assemelhava à escravidão, podendo ser vendido separadamente da terra, inclusive (2017, p. 38).

Entretanto, a Grã-Bretanha já experimentava, na ocasião, um grande avanço rumo à revolução industrial, exercendo grande influência sobre outras nações europeias e também sobre a Rússia. Hobsbawn aponta que o ponto de partida do período de industrialização inicial da Grã-Bretanha deu-se entre 1780 a 1800 (2017, p. 60). A partir de 1830 começam a surgir na Europa movimentos nacionalistas que pretendiam uma fraternidade de todos, mas justificando a preocupação com sua própria nação (HOBSBAWN, 2017, p. 214). Nessa senda, desenvolve-se o eslavofilismo russo e sua defesa da Sagrada Rússia.

Entre 1844 e 1854 houve 348 movimentos de agitação camponesa na Rússia (HOBSBAWN, 2017, p. 459), culminando na emancipação dos servos em 1861 pelo czar Alexandre II. A partir da década de 1860, a Rússia vivia uma dicotomia entre uma sociedade que começava a se industrializar e, ao mesmo tempo, conservava uma agricultura atrasada (VILLELA, 1970, p. 34). Essa espécie de contradição, de uma Rússia aristocrática e outra que visava se modernizar, também repercutia na intelectualidade da época.

Não havia até então, em razão dessa industrialização tardia, uma estruturada classe intermediária entre a aristocracia e o campesinato, como a burguesia europeia. Mais tarde, surge então uma classe social defensora de reformas sociais, a qual ficou conhecida como intelligentsia russa (ANTONIASSE, 2016, p. 78). Havia também parte da antiga aristocracia russa que estava vivendo esse momento de mudanças na sociedade de então, mas mesmo almejando solucionar problemas sociais da época, via-se incapaz de adotar ações práticas. A esse tipo característico da sociedade russa o escritor Ivan Turguêniev (1818-1883) denominara de “homem supérfluo” (FARJADO, 2020, p. 97).

Dostoiévski mostrava pouca simpatia por eles, como também para a assim chamada intelligentsia russa, a qual considerava distante do povo. No livro Notas de inverno sobre impressões de verão (1863) Dostoiévski chega a dizer que (2011, p. 94):

E até hoje, em nosso meio, quantos destes progressistas de estufa não existem que formam entre os nossos mais avançados homens de ação, que estão extremamente satisfeitos com a sua condição de criaturas de estufa e nada mais exigem? 

Na mesma obra, prossegue (2011, p. 95):

Atualmente, o povo já nos considera de todo estrangeiros e não compreende uma palavra, um livro, um pensamento nosso, e isto, digam o que quiserem, é progresso. Agora, já desprezamos tão profundamente o povo e os princípios populares que até o tratamos com certa repugnância nova e insólita (...)

Fazendo-se um paralelo com a obra Pais e filhos (1862), do escritor Turguêniev, é possível identificar os revolucionários da geração dos anos sessenta do século XIX como os filhos, a qual era marcada pela atitude revolucionária em relação à política russa da época. Essa nova geração conflitava-se com a predecessora geração dos anos quarenta, os pais, de cunho liberal e reformista. Por exemplo, na mencionada obra a nova geração era representada pelo personagem Bazárov e na obra O que fazer?, do Nikolai Tchernichevski, pelos personagens Vera, Lokupov e Kirsanov, “pessoas honestas comuns da nova geração” (TCHERNICHEVSKI, 2015, p. 319).

Nessa época de intensa agitação social, emerge também um novo movimento político-social denominado de pótchvienitchestvo (do russo potchva, que significa “solo”), do qual os irmãos Dostoiévski eram adeptos e divulgadores (FRANK, 2013, p. 67). Esse movimento visava promover uma nova síntese cultural na Rússia surgida a partir da fusão entre o povo e a intelectualidade russa. Entretanto, para Dostoiévski essa transformação deveria ocorrer de forma pacífica, gradual e não violenta, diferentemente do que pregado pelos radicais russos (FRANK. 2013, p. 69). Em Notas, ele criticava: “não gostamos do esforço, não estamos acostumados a avançar passo a passo, queremos voar até o objetivo numa passada ou figurar entre os Régulos” (2011, p. 101).

Os defensores desse movimento, inicialmente, tomavam o cuidado de afastar sua posição dos eslavófilos, os quais eram impopulares na época. De fato, a Rússia estava dividida entre os assim chamados eslavófilos – os quais entendiam que o povo russo rejeitava as reformas de Pedro, o grande, de europeizar a Rússia – e os ocidentalistas – que defendiam que a tentativa do povo de preservar o passado se devia ao seu atraso ancestral, do qual deveria ser afastado (FRANK, 2013, p. 70).

Em uma passagem do Notas, Dostoiévski conta, com indignação, a crítica publicada em um jornal de São Petersburgo que considerava atrasado e incivilizado o costume popular na Rússia de então de levar aos pais da noiva recém-casada o traje de núpcias. Diz ele: 

naquele artigo, não se maldizem simplesmente os trajes noturnos, não se dizia simplesmente que era uma barbárie, mas evidentemente acusava-se a barbárie do povo simples, o nacional, o espontâneo, em oposição à civilização europeia da nossa alta e nobre sociedade. O artigo bazofiava, o artigo como que não queria reconhecer que, no meio dos próprios acusadores, talvez tudo fosse mil vezes mais feio e pior e que nós apenas trocamos uns preconceitos e baixezas por outros ainda maiores (2011, p. 99).

Um dos pensadores revolucionários da época com o qual Dostoiévski travou intenso embate teórico foi o filósofo materialista russo Nikolai Tchernichevski (1828-1889), autor de obras como Relações estéticas da arte com a realidade (1855), O que fazer? (1862) e O princípio antropológico na Filosofia (1860). Praticamente toda a primeira parte de Memórias do subsolo foi dedicada para criticar as ideias de Tchernichevski, inclusive. Ao comentar sobre esse pensador russo, o historiador Isaiah Berlin (1909-1997) assim o resume:

Nikolay Chernyshecsky não era um homem de ideias originais. Ele não possuía a profundidade, a imaginação ou o intelecto brilhante e o talento literário de Herzen; nem a eloquência, a ousadia, o temperamento ou o poder de raciocínio de Bakunin, nem o gênio moral e a visão social única de Belinsky. Mas ele era um homem de integridade inabalável, imensa diligência e uma capacidade rara entre os russos de se concentrar em detalhes concretos (1994, p. 224).

Conforme dito alhures, havia na Rússia de então um conflito geracional entre os chamados filhos, expoentes da nova geração dos anos 60 do século XIX, a qual Tchernichevski exercia influência, e os pais, geração dos anos 40. Na introdução à publicação alemã de O que fazer?, George Lukács (1885-1971) assim resumia a situação:

Nessa questão dividia-se, na Rússia, os caminhos do liberalismo e da democracia. Essa é a diferença entre a luta de Tchernichévski e a daqueles dos anos 1840. A luta contra o tzarismo intensificava-se dia a dia, pois ela se concretizava, mas a crítica à Rússia atrasada e reacionária se intensificava por meio de uma nova nota: por meio da crítica ideológica ao liberalismo. Esse motivo passava por toda atuação de Tchernichévski, seja na filosofia, na economia, na estética ou na crítica literária, em um romance ou em uma análise histórica. A luta contra a ideologia liberal fez com que Tchernichévski se tornasse o grande professor de uma nova geração revolucionária (2017, p. 8).

Em O princípio antropológico, por exemplo, Tchernichevski defendia que o egoísmo é a base da ação humana, pelo que se deveria educá-lo para compreender que a busca do bem comum gera seu bem-estar individual. Ele afirmava que “um homem é bom quando, para obter prazer para si, ele deve dar prazer a outros” (TCHERNICHEVSKI, 1957, p. 97), defendendo o que se convencionou chamar de egoísmo racional. Para ele, sabemos por experiência que o ser humano sempre buscará o prazer e evitará a dor.

Essa concepção de egoísmo abrange um conceito de ética utilitarista para o qual a noção de bem significa tão somente a análise de sua utilidade. Para ele, “só aquilo que é útil para o homem em geral é considerado como verdadeiro bem” (TCHERNICHEVSKI, 1957, p. 126). Essa ideia de utilidade também é expressa pelo personagem Andriêi Semiónovitch Liebezyátnikov em Crime e castigo, o qual representa, na referida obra, as ideias socialistas. Em conversa com o personagem Piotr Pietróvitch Lújin, ele argumenta: “Nisso não há apenas trabalho, uma atividade nobre, útil à sociedade, que está acima, bem acima, por exemplo, da atividade de algum Rafael ou Púchkin, porque é mais útil” (DOSTOIÉVSKI, 2019, pp. 377-378).

Defendia, ainda, a crença na inexistência do livre-arbítrio e na correção das leis da natureza. Além disso, punha grande fé na ciência para obtenção do progresso da humanidade. Para ele, a ciência moral, por exemplo, já possuiria as respostas teóricas para quase todos os problemas que são importantes para a vida (TCHERNICHEVSKI, 1957, 98). Ainda, afirma que basta “examinar mais de perto uma ação ou sentimento que pareça altruísta para ver que eles se baseiam no pensamento do interesse pessoal” chamado de egoísmo (TCHERNICHEVSKI, 1957, 120).

Essa ideia de egoísmo defendida por Tchernichevski teve forte inspiração do filósofo alemão Ludwig Feuerbach (1804-1872), o qual exerceu grande influência no pensamento filosófico daquele. De fato, quando publicou sua dissertação intitulada As relações estéticas da arte com a realidade (1855), Tchernichevski procurou incorporar a filosofia feuerbachiana à sua concepção estética da arte enquanto subordinada às exigências reais da vida (DOMINGUES, 2015, p. 91). Na obra A essência do cristianismo (1841), Feuerbach afirma que “o egoísmo recolhe, concentra o homem sobre si mesmo; ele lhe fornece um princípio de vida sólido” (2012, p. 131). Para o filósofo alemão, o egoísmo natural, guiado pelo instinto de conservação, independeria da vontade humana.

No romance O que fazer?, Tchernichévski aplica as ideias já anunciadas em O princípio antropológico na Filosofia apresentando aspectos práticos do seu pensamento por meio da interação entre um grupo de personagens. Referido romance exerceu forte influência não somente na geração revolucionária da época, mas na geração pós-revolução socialista russa de 1917, inclusive. No premiado livro O fim do homem soviético, um dos entrevistados diz:

Mas agora pronunciaram a nossa sentença: vocês acreditavam numa utopia... Acreditávamos! Meu romance favorito, O que fazer?, de Tchernychévski... Agora ninguém mais lê. Acham chato. Leem só o título, a eterna questão russa: o que fazer? Para nós era a catequese. Um manual da revolução. Decorávamos páginas inteiras (2016, p. 239).

A obra O que fazer?, que começa com um capítulo intitulado de O tolo, inicia-se com a narração de um suicídio, cujos reais motivos não são explicados ao leitor. Os personagens principais da história são Vera Pavlovna, Dmitri Lopukhov, Aleksandr Kirsanov e o herói Rakhmetov, que encarna o ideal do revolucionário. A primeira, junto com outros personagens, cria uma comuna socialista disfarçada de ateliê de costura. O personagem Lopukhov, estudante de medicina e conhecedor da situação da personagem Vera, uma jovem oprimida pela sua família, planeja um casamento para “salvá-la”.

Após o casamento, logo que percebe que o verdadeiro amor de Vera era seu amigo Kirsanov, também estudante de medicina, Lopukhov, em um ato “egoísta”, mas racional, forja seu suicídio para deixar o caminho livre à sua esposa. O que descobrimos no decorrer da obra como tendo sido um falso suicídio segue os critérios da teoria ética utilitarista de Tchernichévski, uma vez que fora calculado para o bem-estar da personagem Vera que, por consequência, seria o próprio bem-estar do marido Lopukhov. Afinal, em conversa com Kirsanov, ele argumenta:

Vou lhe propor uma pergunta, que não é ligada a coisa nenhuma, exceto como explicação de alguma verdade abstrata, sem qualquer utilidade para quem quer seja. Se alguém puder dar prazer a alguém, sem causar insatisfação a si, então, em minha opinião, o cálculo exige que ele o faça, pois isso vai lhe dar satisfação também, certo? (TCHERNICHEVSKI, 2015, p. 262)

Esse pensamento utilitarista e do egoísmo racional foi duramente criticado por Dostoiévski na obra Memórias do subsolo (1864). Nela, o personagem principal assume as premissas das teses de Tchernichevski e as conduz para suas últimas consequências, em verdadeira redução ao absurdo. Isso porque, conforme Frank, “o homem do subterrâneo aceita intelectualmente esse determinismo; mas na verdade é-lhe impossível viver com suas conclusões” (2013, p. 440). Esse determinismo defendido por Tchernichevski conduziria, para Dostoiévski, unicamente ao vazio moral, à “inércia consciente” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 50).

Outra teoria muito em voga na Rússia do século XIX, importada da Europa, foi a do utilitarismo, de cariz liberal e que reduzia as relações humanas ao padrão da felicidade como o supremo objetivo de cada indivíduo e a maior felicidade do maior número de pessoas como o objetivo da sociedade. Os seus maiores expoentes foram os filósofos ingleses Jeremy Bentham (1748-1832), cuja principal obra foi a Introdução aos princípios da moral e da legislação (1780), e James Stuart Mill (1773-1836), pai do também filósofo e economista político John Stuart Mill (1806-1873).

Hobsbawn assim resumia o pensamento utilitarista defendido por ambos:

No curso da busca desta vantagem pessoal, cada indivíduo nesta anarquia de competidores iguais achava vantajoso ou inevitável entrar em certos tipos de relações com outros indivíduos, e este complexo de acordos úteis constantemente expressos na terminologia francamente comercial do “contrato” constituía a sociedade e os grupos políticos ou sociais. É claro que tais acordos e associações implicavam alguma diminuição da naturalmente ilimitada liberdade do homem para fazer aquilo que quisesse, sendo uma das tarefas da política reduzir tal interferência a um mínimo praticável. Exceto talvez para certos grupos sexuais irredutíveis como pais e filhos, o “homem” do liberalismo clássico (cujo símbolo literário foi Robinson Crusoe) era um animal social somente na medida em que ele coexistia em grande número. Os objetivos sociais eram, portanto, a soma aritmética dos objetivos individuais. A felicidade (um termo que deu a seus definidores quase tantos problemas quanto a seus perseguidores) era o supremo objetivo de cada indivíduo; a maior felicidade do maior número de pessoas era claramente o objetivo da sociedade (2017, p. 366).

Um dos personagens da obra dostoievskiana que encampa essa ideia do utilitarismo, por exemplo, é o Piotr Lújin, da obra Crime e castigo. Nela, o personagem defende: “já a ciência diz: ama acima de tudo a ti mesmo, porque tudo no mundo está fundado no interesse pessoal” (DOSTOIÉVSKI, 2019, p. 156). O próprio personagem Raskólnikov, da mesma obra, adere ao utilitarismo quando, ao cometer o assassinato da usurária, assim o faz realizando um cálculo do que seria de maior interesse para a coletividade. Ele argumenta com um oficial de polícia:

Escute mais isso. Por outro lado, forças jovens, viçosas, sucumbem em vão por falta de apoio, e isso aos milhares, e isso em toda parte! Cem, mil boas ações e iniciativas que poderiam ser implementadas e reparadas com o dinheiro da velha, destinado a um mosteiro! Centenas, talvez milhares de existências encaminhadas; dezenas de famílias salvas da miséria, da desagregação, da morte, da depravação, das doenças venéreas – e tudo isso com o dinheiro dela. Mate-a e tome-lhe o dinheiro, para com sua ajuda dedicar-se depois a servir a toda a humanidade e a uma causa comum: o que você acha, esse crime ínfimo não seria atenuado por milhares de boas ações? Por uma vida – milhares de vidas salvas do apodrecimento e da desagregação. Uma morte e cem vidas em troca – ora, isso é uma questão de aritmética. (DOSTOIÉVSKI, 2019, p. 73)

Piotr Lújin também representa as ideias capitalistas em desenvolvimento na Rússia do século XIX, defendendo os princípios da liberdade econômica. Em diálogo com o personagem Razumíkhin, ele assim defende sua “filosofia dos cafetãs inteiros”:

Já a verdade econômica acrescenta que quanto mais negócios privados organizados houver numa sociedade e, por assim dizer, cafetãs inteiros, tanto mais sólidos serão seus fundamentos e tanto mais organizada será a causa comum. Logo, ao adquirir única e exclusivamente para mim, precisamente dessa forma eu adquiro como que para todos e levo a que o próximo receba um cafetã um tanto mais rasgado, porém não mais de favores privados isolados e sim como resultado do avanço geral. (DOSTOIÉVSKI, 2019, p. 156).

Também na obra inacabada O crocodilo (1864) Dostoiévski tece várias críticas às novas ideias capitalistas de liberdade econômica que fervilhavam na sociedade da época. Em que pese ser ele um crítico ferrenho dessa concepção político-econômica em desenvolvimento, não se pode concluir, como fez Tchirkóv que Dostoiévski “não podia deixar de sentir que o socialismo era uma saída para o caos gerado pelo capitalismo” (2022, p. 116), considerando que ele foi um grande crítico de regimes políticos que usurpam a liberdade individual.

3. Filosofia da religião e a obra Crime e Castigo

A religião cristã exerce grande influência na vida e na obra do escritor russo Fiodor Mikhailovitch Dostoiévski principalmente após sua prisão na Sibéria. Em carta datada de começo de março de 1854 endereçada a sra. N. D. Fonvisin, Dostoiévski chega a dizer que “se alguém pudesse me provar que Cristo está fora da verdade, e se a verdade realmente excluí Cristo, eu preferiria ficar com Cristo e não com a verdade” (DOSTOIÉVSKI, 1917, pp. 67-68). Em outra carta, a Nikolaievitch Maikóv escrita em 25 de março de 1870, ele confessa que a ideia fundamental que o atormentou, “conscientemente e inconscientemente, durante toda a minha vida: é a questão da existência de Deus” (DOSTOIÉVSKI, 1917, p. 180).

De fato, a imagem do Cristo era um grande modelo para Dostoiévski:

Somente Cristo podia amar o homem como a si mesmo, mas Cristo era um ideal eterno permanente que o homem se esforça, e seguindo a lei da natureza, deveria esforçar-se para alcançar. Enquanto isso, desde o aparecimento de Cristo como o ideal do homem na carne, tornou-se tão claro como o dia que o mais elevado desenvolvimento final da personalidade deve chegar a isso (ao próprio fim do desenvolvimento, à consecução final do objetivo): esse homem acha, sabe – e está convencido disso, com toda a força de sua natureza – que o uso mais elevado que um homem pode fazer de sua personalidade, do pleno desenvolvimento de seu Ego, é por assim dizer aniquilar esse Ego, entrega-lo totalmente e a cada um de forma indivisa e altruísta (DOSTOIÉVSKI apud FRANK, 2002, p. 412).

Assim como na obra Memórias do subsolo[1], Dostoiévski advoga em Crime e castigo em favor de uma ética baseada no cristianismo, mostrando ao leitor as consequências da adoção de uma ética baseada no egoísmo, na autoafirmação, representada na figura do personagem Rodion Raskólnikov. Este, mesmo portador de um elevado espírito moral, capaz de atos de sublime magnanimidade, é também capaz da prática de ato de grande repulsa moral em nome de uma ideia.

Deve ser ressaltado que essa influência da ética cristã nas obras de Dostoiévski e a concepção de que o povo russo expressaria esse ideal cristão foi alvo de críticas inclusive na Rússia. Uma delas foi lançada pelo romancista Vladimir Nabokov (1899-1977) de forma assaz ácida:

Vou citar uma observação muito apropriada de Mirski sobre Dostoiévski: “Sua cristandade: é de um tipo muito duvidoso... trata-se de uma formação espiritual mais ou menos artificial que é um perigo identificar com a verdadeira cristandade”, se a isso acrescentarmos que ele se arrogava a condição de genuíno interprete da cristandade ortodoxa e que, para desatar qualquer  laço sociológico  ou  psicopático, invariavelmente nos conduzia a Cristo (ou à sua própria interpretação de Cristo e da sagrada Igreja Ortodoxa), compreenderemos melhor a faceta realmente irritante  de  Dostoiévski como filósofo (2014, p. 175).

Na década de 1860, enquanto editor da revista O tempo, Dostoiévski já criticava o racionalismo europeu afirmando que os europeus não poderiam compreender a Rússia porque seus países estariam permeados por conflitos de classe, enquanto que na Rússia elas se unem de forma pacífica. Para ele, a noção de humanidade tinha se tornado cada vez mais frágil na Europa porque o elo cristão que os unia estava se esgarçando (FRANK, 2002, p. 95).

Fiodor Dostoiévski foi preso em abril de 1849 sob acusação de conspirar contra o czar Nicolau I e condenado a ir para a Sibéria e se submeter a trabalhos forçados, de onde saiu apenas em fevereiro de 1854. Essa experiência exerceu forte influência no espírito do autor, tendo sofrido o que William James (1842-1910) chama de “experiência de conversão”. Para James, a característica central desse tipo de experiência é “a perda de todas as preocupações, o sentido de que tudo está finalmente bem conosco, a paz, a harmonia, a disposição de ser, ainda que as condições exteriores permaneçam as mesmas” (1991, p. 213).

De fato, Frank afirma que foram os resquícios do cristianismo tradicional que tornou possível a vida do escritor russo no presídio (2002, p. 28). Além disso, ao sair da prisão, Dostoiévski levava consigo um conjunto de “sentimentos-ideia” diferentes de quando entrou, os quais usaria como guias no enfrentamento das questões que pululavam na nova sociedade russa (idem, ibidem). E esses “sentimentos-ideia” estão também expostos em suas obras posteriores, por exemplo, em Crime e castigo.

A história de Crime e castigo gira em torno do assassinato que o personagem principal, Rodion Românovitch Raskólnikov, comete contra uma velha usurária e sua irmã, Lisavieta. No decorrer da narração, notamos que o motivo do crime é mais complexo do que se supunha: Raskólnikov mata a velha impelido por puro desejo de se tornar um homem extraordinário. Conforme ele mesmo afirma, “eu queria tornar-me um Napoleão e por isso matei” (DOSTOIÉVSKI, 2019, p. 420).

A personagem Sônia Semyonovna Marmieládova é um personagem-tipo que encarna a ética cristã formando com Raskólnikov uma relação dialógica intensa. O narrador nos diz, inclusive, que o “assassino e a devassa” se haviam unido estranhamente durante a leitura de um trecho da Bíblia (DOSTOIÉVSKI, 2019, p. 335). Apesar de o narrador usar o termo “estranhamente”, deve ser notado que a relação entre as personagens não surge neste momento, mas vem sendo construída desde a primeira vez que Raskólnikov ouve a história de Sônia da boca do pai dela. Esta personagem, aliás, é a imagem do autossacrifício em prol dos outros, a autonegação e autoabnegação. 

O crítico literário russo Nikolai Tchirkóv (1891-1950) realiza uma interpretação nesse sentido. Para ele há uma consonância nos destinos dos dois protagonistas: Raskólnikov caminha para o assassinato por força de uma extrema autoafirmação e Sônia se torna prostituta por força de uma extrema autonegação (2022, p. 111). Como o próprio Raskolnikóv afirma, “tudo em Sônia ia assumindo um aspecto cada vez mais estranho e maravilhoso para ele” (DOSTOIÉVSKI, 2019, p. 330), o que demonstraria a forte impressão que a história de vida dela causou nele.

Essa personagem, incorporando o ideal cristão, sacrifica-se e se compadece pela madrasta e irmãos e por isso acaba se prostituindo para ter com o que os sustentar. Ao falar para Raskolnikóv sobre a volta de Cristo, no dia do juízo final, Semion Marmieládov, pai de Sônia, diz que Cristo perguntaria: “Onde está a filha que se sacrificou por uma madrasta má e tísica, por crianças estranhas e pequenas? Onde está a filha que teve piedade de seu pai terrestre, um bêbado indecente, sem lhe temer a crueldade?” (DOSTOIÉVSKI, 2019, p. 29).

Sônia Semiónovna, diante de um pai beberrão e pródigo, uma madrasta tísica e três irmãos não consanguíneos, menores de idade e indefesos, decide sacrificar-se na prostituição em prol deles, para evitar que passem fome, em uma atitude de autonegação por amor ao próximo, ação de acordo com os preceitos cristãos. Por agir por piedade aos outros, sem titubear, exigir algo em troca ou reclamar, ela encarna, na história, o ideal de amor cristão desprendido.

E, ao final, também acontece com Raskolnikóv, ajudado e influenciado pelo testemunho silencioso de vida de Sônia, uma possibilidade de conversão gradual. Ele “ressuscitara, e o sabia, sentia todo o seu ser plenamente renovado” (DOSTOIÉVSKI, 2019, p. 562). Sônia, com sua bondade, paciência e amor desprendido, consegue suavizar a dureza e racionalismo que impregnavam a mente e coração de Raskolnikóv de modo que fosse possível construir “a história do seu gradual renascimento, da passagem gradual de um mundo a outro, do conhecimento de uma realidade nova, até então totalmente desconhecida” (DOSTOIÉVSKI, 2019, p. 563).

É possível advogar-se a ideia da ocorrência de uma reconciliação do aspecto ético e estético concretizado no amor de Raskolnikóv e Sônia que o direcionaria para a ética cristã. O filósofo alemão Friedrich Schiller (1759-1805) afirmava, por exemplo, que a verdadeira liberdade somente poderia ser alcançada através da arte e da beleza. Na obra A educação estética do homem (1795) ele defende a importância delas para a formação de um indivíduo verdadeiramente livre. Ele diz que “para resolver na experiência o problema político é necessário caminhar através do estético, pois é pela beleza que se vai à liberdade” (2002, p. 22).

Dostoiévski acredita que os russos possuíam uma sensibilidade estética especial que não poderia ser compreendida pelo resto da Europa. No Diário de um escritor de 1873, ele publicou o ensaio A propósito de uma exposição relatando suas impressões sobre uma exposição de pinturas russas enviadas ao exterior. Uma delas era a obra de Konstantin Makovsky (1839-1915) chamada Amateurs of nightingales' singing. A obra viajaria pela Europa, mas Dostoiévski se questiona: “Eu pergunto a vocês, o que um judeu alemão ou vienense (Viena, mesmo como Odessa, dizem eles, está cheia de judeus) entenderá nesta pintura?” (1919, p. 78).

Ressalte-se que o cristianismo defendido por Dostoiévski possui cariz antissemita e até antidogmático (ODO, 2016, p. 78). Dizemos antidogmático porque ele acreditava que o povo russo carrega a essência do cristianismo dentro de si só pelo fato de ser russo. Para ele, o povo russo é cristão por excelência, mesmo não sabendo as orações ou ritos religiosos. No Diário de 1877 ele diz que:

embora nosso povo não conheça as orações, a essência do cristianismo, seu espírito e sua verdade, são conservados e fortalecidos neles, apesar de seus vícios - tão fortemente quanto, talvez, nenhum outro povo no mundo (1919, p. 631).

Além disso, Dostoiévski, principalmente em seus escritos de maturidade, como em seu Diário, usa os termos cristianismo russo e socialismo russo de forma própria, diferente do conceito usual de socialismo (ODO, 2016, p. 74). No Diário de um escritor ele explica:

Estou falando da sede insaciável e inerente ao povo russo por uma grande comunhão fraterna universal em nome de Cristo. [...] Não é no comunismo, não é em formas mecânicas que o socialismo do povo russo se expressa. Eles acreditam que eles serão finalmente salvos por meio de uma comunidade universal em nome de Cristo. Este é o nosso socialismo russo! (DOSTOIÉVSKI, 1919, p. 1.029).

Ele entendia que o socialismo europeu estava impregnado de filosofia materialista, ateísmo e uma inaceitável concepção de autossuficiência do homem. No Diário de 1877 ele aponta:

Agora, quais são esses destinos da Ortodoxia? - Catolicismo Romano, que há muito tempo vendeu Cristo para o governo terreno; que obrigou a humanidade a se afastar de si mesma e que foi, portanto, a principal causa do materialismo e do ateísmo da Europa - esse catolicismo gerou naturalmente o socialismo. Pois o socialismo tem por objetivo resolver os destinos da humanidade não de acordo com Cristo, mas sem Deus e Cristo. Foi inevitavelmente gerado na Europa de forma natural no lugar do princípio cristão deteriorado e na medida de sua perversão e perda pela própria Igreja Católica (1919, p. 906).

Dostoiévski punha grande esperança no povo russo como expressão do ideal cristão. Ele afirmava, por exemplo, no Diário de janeiro 1877 que a magnanimidade é “um presente perpétuo e elementar que nasce com o povo, tanto mais valorizado quanto, apesar de séculos de escravidão, opressão e miséria, ainda se conserva intacto no coração do povo” (1919, p. 572). Para ele, o povo russo, por mais que cometa equívocos, possui uma noção intrínseca do certo e do errado, de uma ética verdadeiramente cristã. Por isso, por exemplo, os mujiques, mesmo estando presos por terem cometido crimes dos mais diversos, veem em Raskolnikov um herege por não crer em Deus e até tentam agredi-lo (DOSTOIÉVSKI, 2019, p. 556).

Para Tchírkov, o renascimento de Raskolnikov se dá, não só de sua confissão perante a terra, mas também do restabelecimento de uma conexão com o povo por intermédio de Sônia (2022, p. 112). Diz Raskolnikov: “Será que as convicções dela podem não ser também as minhas convicções? Os seus sentimentos, as suas aspirações, ao menos...” (DOSTOIÉVSKI, 2019, p. 563).

William James assim se refere ao processo de conversão, citando duas coisas que estariam na mente do candidato à conversão: “a primeira, o inacabamento ou erro presente, o “pecado”, de que ele tanto anseia por escapar; e, segunda, o ideal positivo que ele ambiciona levar a cabo” (JAMES, 1991, p. 181). De fato, no epílogo da obra, vemos o personagem Raskolnikov lançado aos pés de Sônia e depois com o Evangelho nas mãos, encaminhando-se para uma conversão a uma ética cristã, abrindo-se, então, uma possibilidade de cura de sua racionalidade excessiva e egoísmo hiperbólico.

Dizemos “encaminha-se” porque, de fato, considerando que o limite da interpretação deve ser o texto escrito, não se pode afirmar, com base exclusivamente na obra Crime e castigo, que o personagem Rodion Raskolnikov tenha se convertido ao cristianismo, mas tão somente que se pavimentara uma possibilidade para que ela ocorresse no futuro.

De fato, quando no epílogo, após o último encontro com Sônia, Raskolnikov diz que “ressuscitara, e o sabia” e se pergunta se acaso “tudo não deveria mudar?” (2019, p. 562), parece não haver dúvidas que lhe teria ocorrido algum tipo de transformação interior. Entretanto, o uso de condicionais deixa em aberto se houve ou não uma efetiva conversão do personagem ao cristianismo. Veja-se que, quase ao final do epílogo, Raskolnikov pega o Evangelho dado a ele por Sônia de maneira automática, “maquinalmente”. Livro que, até então, “ele nem o havia aberto” (2019, p. 563).

Ora, se houvesse ocorrido de fato uma conversão se esperaria que o novo convertido pegasse o Evangelho de forma efusiva, exultante, enérgica e não de forma maquinal, robótica. A história termina com o narrador indicando o começo da “história da renovação gradual de um homem, a história do seu gradual renascimento” (DOSTOIÉVSKI, 2019, p. 563). Apesar de a palavra renascimento ter um uso específico no meio religioso, mais relacionada a ideia de batismo, não há como se afirmar, de forma categórica, a ocorrência de uma conversão religiosa, mas tão somente que o personagem se encaminhara para que ela pudesse ocorrer no futuro.

Desse modo, embora o epílogo da obra possa ser objeto de críticas, como de fato o fora desde a sua primeira edição, o parágrafo final dela nos indica mais do que simplesmente uma reconciliação do caráter ético e estético por meio do amor de Sônia, mas a possibilidade futura da conversão do personagem Raskolnikov a uma ética cristã, regenerando-se perante a sociedade russa e evoluindo espiritualmente.

Conclusão

Fiodor Dostoiévski foi um escritor plenamente cônscio dos conflitos sociais e políticos que ebuliam na Rússia de sua época e conseguiu externá-los em seus romances sociais dando-nos uma visão arguta e perspicaz dessa agitação ideológica de então. Uma obra desse jaez foi Crime e castigo, publicada pela primeira vez em 1866.

Criador do romance polifônico, conforme assentado pelo crítico literário Mikhail Bakhtin, as vozes ficcionais de seus personagens não são apenas componentes do discurso, mas o constroem e estruturam. Com sua agudeza de espírito, Dostoiévski conseguia captar as diversas ideias políticas e sociais que pululavam na Rússia de meados do século XIX e as colocava na boca de seus personagens. A polifonia, assim, fora um instrumento utilizado pelo autor para representar a multiplicidade dessas vozes.

A Rússia, desde o começo do século XIX, estava passando por intensas mudanças sociais, políticas e econômicas. A partir da década de 1860, a Rússia vivia uma dicotomia entre uma sociedade que começava a se industrializar e, ao mesmo tempo, conservava uma agricultura atrasada. Essa espécie de contradição, de uma Rússia aristocrática e outra que visava se modernizar, também repercutia na intelectualidade da época.

Fazendo-se um paralelo com a obra Pais e filhos (1862), do escritor Ivan Turguêniev, é possível identificar os revolucionários da geração dos anos 1860 como os filhos, a qual era marcada pela atitude revolucionária em relação à política russa da época. Essa nova geração conflitava-se com a predecessora geração dos anos 1840, os pais, de cunho liberal e reformista. Um dos pensadores revolucionários dessa época com o qual Dostoiévski travou intenso embate teórico foi o filósofo materialista russo e revolucionário socialista Nikolai Tchernichevski (1828-1889), autor de obras como O que fazer? (1862) e O princípio antropológico na Filosofia (1860).

Dostoiévski entendia que o socialismo europeu estava impregnado de filosofia materialista, ateísmo e uma inaceitável concepção de autossuficiência do homem. A religião cristã exerceu grande influência na sua vida e obra, principalmente após sua prisão na Sibéria. Em suas obras, principalmente em seus escritos de maturidade, como em seu Diário de um escritor, ele usa os termos cristianismo russo e socialismo russo de forma própria, diferente do conceito usual de socialismo. Dostoiévski punha grande esperança no povo russo como expressão do ideal cristão. Para ele, o povo russo, por mais que cometa equívocos, possui uma noção intrínseca do certo e do errado, de uma ética verdadeiramente cristã.

Na obra Crime e castigo podemos notar muitas das críticas de Dostoiévski sobre várias ideias que grassavam na Rússia de então e também de sua visão sobre o povo russo enquanto expressão do ideal cristão. Nesse romance, ele advoga em favor de uma ética baseada no cristianismo, mostrando ao leitor as consequências da adoção de uma ética baseada no egoísmo, na autoafirmação, representada na figura do personagem Rodion Raskólnikov.

Entretanto, em que pese o epílogo da obra possa ser objeto de críticas, como de fato o fora desde sua primeira edição, o parágrafo final dela nos indica mais do que simplesmente uma reconciliação do caráter ético e estético por meio do amor de Sônia, mas a possibilidade futura da conversão do personagem Raskolnikov a uma ética cristã, regenerando-se perante a sociedade russa e evoluindo espiritualmente.

De fato, considerando que o limite da interpretação deve ser o texto escrito, não se pode afirmar, com base exclusivamente na obra Crime e castigo, que o personagem Rodion Raskolnikov tenha se convertido ao cristianismo, mas tão somente que se pavimentara uma possibilidade para que ela ocorresse no futuro.

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Notas

[1] Frise-se que, em Memórias, essa defesa não é tratada por Dostoiévski de forma explícita, mas não será objeto de análise no presente trabalho.