Cristiano Santos Araujo
Doutor em Literatura e Práticas Sociais Universidade Nacional de Brasília (UnB). Doutor em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-Goiás). Professor efetivo da Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail: cristiano.araujo@uece.br
José Reinaldo
Doutor em Ciências da Religião e em Filosofia. Professor do quadro permanente do PPG em Ciências da Religião da PUC Goiás. E-mail: jreinaldomartins@pucgoias.edu.br
Resumo: Este artigo tem por objeto a obra Orchideas (1928), da poeta goiana Leodegária Brazília de Jesus (1889-1978). O objetivo deste texto é discutir a mística e a poesia do mundo leodegariano. Destacam-se as pertinências epistemológicas do olhar mais atento sobre a obra da pioneira da poesia feminina no estado de Goiás com vista à metacrítica literária e mística de sua segunda obra poética. Utiliza-se dois acessos à fonte primária de Orchideas. 1. A versão da edição integral de 1928 em PDF fac-simile (Biblioteca Central da UFG); 2. A obra integral republicada no livro “Lavra dos Goiases II” (DENÓFRIO, 2019), que também nos serve como fonte secundária em seus diversos comentários aos contextos literários sobre a obra e a poeta conjuntamente com França (1996). Para tal empreitada da base conceitual de mística e poesia destacam-se Maria Clara Bingemer (2020; 2022); Henrique Cláudio Lima Vaz (2000; 2014); Octávio Paz (1982); Giorgio Agamben (2002); Benedito Nunes (2007); Alberto Pucheu (2009). Dessa maneira, faz-se uma pesquisa qualitativa com a técnica de revisão bibliográfica da metacrítica literária da poesia e da mística como linguagens de empréstimo para pensar as dores do mundo sobrevivente no cotidiano possível a partir da poética de Leodegária de Jesus.
Palavras-chave: Orchideas. Mística. Poesia. Experiência. Cotidiano.
Abstract: This paper focuses on the work Orchideas (1928), by the goiâna poet Leodegária Brazília de Jesus (1889-1978). The objective of this text is to discuss the mystique and female poetry of the leodegarian world. The epistemological relevance of a closer look at the work of the pioneer of poetry in the state of Goiás stands out with a view to the literary and mystical analysis of her second poetic work. Use two accesses to the primary source of Orchideas. 1. The version of the complete 1928 facsimile edition in PDF (UFG Central Library); 2. The entire work republished in the book “Lavra dos Goiases II” (Denófrio, 2019), which also serves as a secondary source in its various comments on the extra-literary contexts about the work and the poet jointly with França (1996). For this undertaking of the conceptual basis of mysticism and poetry, we highlight Maria Clara Bingemer (2020; 2022); Henrique Cláudio Lima Vaz (2000; 2014); Octávio Paz (1982); Giorgio Agamben (2002); Benedito Nunes (2007); Alberto Pucheu (2009). In this way, qualitative research is carried out using the bibliographical review technique, a literary metacriticism of poetry and mysticism as borrowed languages to think about the pains of the surviving world in the daily life possible from the poetics of Leodegária de Jesus.
Keywords: Orchideas. Mystic. Poetry. Experience. Daily.
Verás, então, poeta destemido. Teu nome escripto em grandes letras d’ouro. Nas refulgentes páginas da história. Coragem! (Leodegária de Jesus).
Este artigo consiste numa pesquisa bibliográfica em fontes primárias e secundárias de Leodegária Brazília de Jesus com o escopo da fundamentação conceitual nas áreas da mística – poesia – linguagens em trânsito para um problema dialogal triplo, a saber: A experiência da poesia leodegariana. A mística cristã e a poesia se estabelecem na relação proximidade-distância do cotidiano e do pensamento. E por fim, há um caminho possível entre poesia, mística e especulação do cotidiano entre as dores do mundo. As artes da palavra podem, de alguma maneira, materializar o elemento místico e traduzi-lo ao nível do atravessamento da experiência humana (MARTINS FILHO; SILVA et al., 2023). É no entroncamento das tentativas de nomeações das dores do mundo, pela arte poética, que ocorre o exercício das gestualidades de mimesis e verossimilhanças entre versos, rimas e temas da poesia no mundo leodegariano[1].
As orbitações perenes da mística e da poesia que este artigo sinalizará entendem a arte da poesia de Leodegária como uma indecisão entre um som e um sentido, o silenciamento e a vociferação, ou seja, é “a arte de dizer apenas com palavras o que apenas palavras não podem dizer” (BUENO, 2007, p. 9). Assim, as experiências estilhaçadas na composição da vida e do olhar do eu lírico formam a poesia do mundo, bem como a experiência mística seja o elemento central de uma ambiência afetiva entre sinestesias, atravessamentos e devidas formas de expressão com o mundo do eu lírico quanto da autora. A partir dessas questões iniciais, propõe-se a seguir a metacrítica literária e mística de Orchideas (1928), da poeta, escritora, jornalista, professora, administradora escolar, mística do cotidiano e da experiência, Leodegária de Jesus.
Orchideas[2] (1928) é dedicada à memória do pai de Leodegária, José Antonio de Jesus, falecido em 1920, depois de lutar contra a cegueira e problemas de invalidez na coluna vertebral, bem como inúmeras mudanças de locais de moradia no decurso da busca por sobrevivência digna, trabalho e subsistência para a família, tendo, nesse caso, a jovem Leodegária assumido a liderança financeira da família por anos[3] quando o pai, ex-seminarista católico, professor e político experimenta os sucessivos declínios da existência.
A obra em questão é dividida em três blocos principais: o primeiro tem o título de “Folhas mortas” e é composto de 10 poemas; o segundo chama-se “Ramo florido” e tem também 10 poemas; e o último, chamado de “Gotas de orvalho”, tem 47 poemas. Uma espécie de proporção e anseio pelo gotejar do bálsamo da esperança. Percebe-se que o livro de poesias é uma obra da maturidade, a autora não mais está presa à forma clássica do soneto como em Corôa de Lyrios (1906), mantém uma versificação livre abordando temas recorrentes de sua poesia. Segundo Denófrio (2019, p. 22, 23), em Orchideas “a poetisa demonstra o crescimento de uma consciência crítica já capaz, pelo menos, da tentativa de distribuir os poemas em blocos semânticos com os quais guardam afinidade”.
Lellis Vieira, no prefácio intitulado “Abrindo o livro”, rasga elogios a Leodegária, destacando decisivamente que estávamos “diante de uma linda alma alvorizada de sonhos” (JESUS, 1928, p. 5). E ao propor uma discussão estilística acerca do fazer barulhos entre ideias e pensamentos, ou não, a autora de Orchideas “não é uma fazedora de phrases nem de rythymos bárbaros. É uma deliciosa cantora que embala pela sonoridade da voz e faz sonhar pelo perfume da estrofe...” (JESUS, 1928, p. 7). Como será demonstrado durante o artigo, essa efusão onírica expressada no prefácio não se verificará plenamente.
No poema “Hontem e Hoje”, talvez pela ligação entre a primeira obra (1907) e a segunda (1928), mas também entre as experiências da adolescência somadas à da vida adulta, a autora destaca o caráter solitária do existir: “havia no meu íntimo a frieza. De uma tarde de inverno nebulosa. E cheia de tristeza” (JESUS, 1928, p. 79). Leodegária, em Corôa de Lyrios tinha 17 anos, já em Orchideas, tinha 39 anos. Das andanças pelo estado de Goiás até sediar-se na Cidade de Goiás até sua migração ao estado de Minas Gerais e a chegada a Belo Horizonte, a poeta acumulou o experienciar do viver e da composição poética mais madura no que tange aos temas e profundidade das dores do mundo que aborda. Contudo, não obstante às interfaces da lida da vida, em “Ainda e sempre” a artista lança luzes dessa relação próxima da arte poética e as sombriedades da alma atravessada.
Partiste... desde a então, o mal secreto. Que aqui no fundo de minh’alma existe. É mais profundo e amargo, mais completo. E mais intenso, desde que partiste. A visa é muito triste... ah! Como é triste. A vida aqui, neste ermo em que vegeto! Nem mesmo sei em que o prazer consiste. Tão longe, assim, de ti, do teu affecto! E o tempo vae passando... o tempo corre. Mas em meu pobre coração não morre. Esta saudade enorme que me esmaga. Hontem, hoje, amanhã, agora e ainda. E sempre a mesma dor que não se finda, Sempre o mesmo punhal na mesma chaga (JESUS, 1928, p. 83).
A temporalidade não controla e não ameniza a dor, nem as partidas, entretanto, a vida, que pode ser muito triste e árdua também corre no desespero do existir com o mesmo punhal acertando a chaga. Nesse caleidoscópio temporal entre vida e morte, sons e silêncios, sombras e luzes, estão alguns nortes de sustentação mística da poeta: a família, a jornada, o labor intelectual, o sustento e a arte da poesia diante das pontadas perversas do mundo, bem como a dor de amar o impossível, ser excluída, ou silenciada, pelas prioridades dos que detinham o controle dos círculos culturais da velha capital de Goiás. E assim, a poesia foi uma decisão entre voz e o silêncio, e a mística o diapasão que especula e contempla na experiência da arte poética um compasso que congregue a vida, ontem e hoje, ainda e sempre.
Ao utilizarmos a palavra experiência, destacam-se três aspectos: em primeiro lugar, é o modo e o conhecimento de como se interioriza a realidade vivida, bem como a forma de se situar no mundo, e o mundo em nós, junto com os outros (BOFF, 2006); em segundo lugar, a experiência é o que nos perpassa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou que toca, ou seja, se o sujeito da experiência é um território de passagem, a experiência se dá naquilo que nos atravessa (BONDÍA, 2002); E por fim, e de modo específico, entende-se que não há uma oposição entre experiência e pensamento, sendo a experiência o exercício do pensamento que se volta para a penetração da plenitude da presença pelo ato de pensar (VAZ, 2014). Assim, torna-se em uma forma ativa entre consciência atravessada e o fenômeno criativo na qual se manifeste como uma “uma forma de expressão ou linguagem da presença [...] nesse espaço do universo simbólico, ou do universo da experiência humana, cresce e se multiplica ao longo da história a floresta dos sentidos” (VAZ, 2014, p. 245-246).
Por exemplo, as experiências na Velha Serra, que no caso da poesia de Leodegária de Jesus, destaca-se aquilo que atravessou a existência individual da poeta, aquilo que se transformou em expressão artística experiencial através dos poemas, assim como aquilo que se tornou presença na floresta dos sentidos da poesia e da mística do cotidiano, isto é, dores, amores, angústias, tristezas e tantas outras dimensões da condição humana. Na primeira parte do bloco de poemas intitulado de “Folhas mortas” aparece na temática “À Velha Serra”, ou seja, a vida nas serranias azuis e as pensativas montanhas da terra amada Cidade de Goiás:
Gosto de ver-te assim; perante a magestosa. Angústia que te envolve sempre... eternamente. Eu me sinto feliz; esqueço inteiramente. A mágoa que me punge e a vida tormentosa. E quando nessas tardes languidas de inverno. Vejo teu grande vulto imerso nesse eterno e túrbido tristor, eu penso consolada: que guardas em teu seio enorme de granito. Mudo e cheio de dor, um coração aflito. Uma alma que soluça, exhausta, torturada! (JESUS, 1928, p. 17).
Nessa mesma poeticidade do espaço e da vivência, o poema “Goyaz” alude à “Goyaz querida! Pérola mimosa destes sertões soberbos do Brasil! Terra que amo, que minh’alma adora. Ao ver-te longe, tão distante, agora, quero-te mais ainda. Minha terra gentil!” (JESUS, 1928, p. 18). Essa terra da adolescência, com efervescência cultural, está o lócus da memória e da identidade da poeta. O poema “Goyaz” tem a sinestesia propícia para a floresta dos sentidos através da lírica, a saber: dia e noite, dor e alegria, aromas, sons, pessoas, lugares, ventos que tão de perto marcaram a persona de Leodegária para a vida: “Aqui, onde exilou-me a desventura. E a mocidade minha saturada. De amargores falece, tristemente. Vivo a sonhar contigo, eternamente. Ó terra de minh’alma! Ó Patria idolatrada!” (JESUS, 1928, p. 20). Destacam-se mais dois poemas da terra, Supremo Anhelo, o desejo da volta à Serra e ao velho rio, e em Ao partir, tem-se a dimensão da vontade de um retorno, ou à infância naquela terra, ou aos espaços da identidade da mocidade donde “a hora em que deixaste, entre gemidos. Goyaz – o ninho frio da tristeza” (JESUS, 1928, p. 22).
À margem das clareiras que a razão poética vai abrindo nos mistérios do universo e da composição dos versos, a terra Goyaz tem o seu devido destaque pontual na vida, família e escrita de uma experiência da poesia bem como a experiência que dá poesia. Em tudo, o atravessamento do campo lírico na identidade da poeta de Coroa de Lyrios (1906) tem um retorno dos espaços e da memória em Orchideas (1928), uma espécie de retournement, ou inversão permanente na maturidade dos contornos da infância, cuja impossibilidade do esquecimento faz a integração poética da poeta Leodegária, não mais de Goyaz, mas sim das Minas Gerais. Em todo caso, na Velha Serra, capital do estado, em seus contornos simbólicos nas relações com a arte poética de uma jovem autora, que no início do século ocupa seu lugar e vez na capital cultural à época, e tem ali o amálgama de experiências pessoais, familiares, educacionais, sociais e artísticas entre as limitações presentes na história e no texto de Leodegária.
Dessa forma é que se pensa na interface de que a experiência mística da poesia, no caso leodegariano, é a experiência mística da poesia sobrevivente, a poesia do mundo na relação proximidade-distância com o cotidiano possível. Ou seja, há imbricamentos formais entre poesia e poema, entre o pensamento e as palavras na qual a poesia é conhecimento, salvação e poder na operação revolucionária capaz de transformação de mundo: “um exercício espiritual, é um método de libertação interior, que ao revelar o mundo cria outro” (PAZ, 1982, p. 15).
Já que “o poema é basicamente uma estrutura sonora” (CANDIDO, 1996, p. 37), também como expressão prática da poesia entre rimas e métricas “é um caracol onde ressoa a música do mundo” (PAZ, 1982, p. 15). Sendo assim, o poema é “o lugar de encontro entre a poesia e o homem, ademais, é um organismo verbal que contém, suscita ou emite poesia” (PAZ, 1982, p. 17). Assim, a experiência que dá poesia parte do estilo da poeta no qual o é o ponto de partida de todo o projeto criador, assim, algo que a artista aspira transcender.
Alfredo Bosi em “O Ser e o tempo da Poesia” (1977), aponta que a experiência da imagem é anterior à da palavra e que vem enraizada no corpo, nesse caso, aproxima-se à verossimilhança horaciana do ut pictura poesis[4], “onde a imagem seja um modo de presença da realidade do objeto em sai e a sua existência em nós” (BOSI, 1977, p. 12) através da imagem ativa no pensamento e na escrita. Logo, “nos dá a sensação de franquear impetuosamente o novo intervalo entre a imagem e o som” (BOSI, 1977, p. 23). Assim, todo ente em disposição poética é antes estado que objeto, e esse é o modo de ser do homem e da natureza na poesia lírica (STAIGER, 1997, p. 29). Em outras palavras, a existência lírica recorda, a épica torna presente, a dramática projeta. Esses termos recordar, tornar presente e projetar devem estar bem definidos porque são gêneros básicos da teoria da literatura. Contudo, como ousamos agora a interpretação temporal, que sempre conduz a enganos, nenhuma explicação faz-se supérflua (STAIGER, 1997) porque
a alma transforma-se. O poeta lírico comove-se, enquanto o místico conserva uma serenidade imperturbável em Deus. Pode ser que a disposição lírica se clarifique em serenidade mística, como na vida uma coisa passa imperceptivelmente a outra. Porém a ciência, necessária e obrigada à distinção dos conceitos, terá que definir claramente o que vem a ser "lírico" e ''místico", para que seja possível alguma orientação dentro da realidade que se transforma e flui (STAIGER, 1997, p. 30).
Sendo a literatura “a linguagem carregada de significado” (POUND, 2006, p. 32), por poesia, entende-se uma arte de dizer com as palavras o que apenas palavras não podem dizer (BUENO, 2007). Entre o conceito e o som está a expressão humana da poeta e do silêncio (MARTINS FILHO, 2023b). De forma semelhante, a mística, como experiência da delicadeza da vida transita também entre o arrebento do mistério e dos sentidos da vida que se aquieta nos espaços da memória e da identidade de cada sujeito. As escrevivências leodegarianas formam o próprio chão da escrita de uma mística do cotidiano, ora repeleto de dores, ora cheio de esperas. No poema “Esperança”, Leodegária de Jesus (1928) aponta este caminho da experiência e manutenção da mística do caminho cotidiano entre poesia e mundo:
Fulge através do apérrimo caminho. Que trilho agora, tímida, indecisa. O seu clarão celeste, luz de arminho. Que d’alma enferma as chagas cicatriza. Serenamente, assim, como um carinho. Seu perfume dulcíssimo desliza. Dentro em minh’alma, desolado ninho. De secretos pesares que ameniza. Ella é farol augusto que consola. Que dulcifica as dores mais profundas. Num sorriso de luz – sagrada esmola. Bendita és tu que as mágoas afugentas. Que os infelizes corações inundas. De fé, de paz, no seio das tormentas (JESUS, 1928, p. 48).
A poesia de Leodegária dá experiência em relação à poesia que há no cotidiano do mundo da autora. Em Orchideas (1928), ela avança nessa perspectiva, de modo interessante, no poema “Imprensa”, destacando de modo experiencial que a imprensa é “um farol cujo clarão ingente derrama no universo estranha claridade! Um astro que dissipa as trevas refulgentes. A deusa do poder guiando a humanidade” (JESUS, 1928, p. 60). A partir da biografia da autora (DENÓFRIO, 2019), sabe-se da oportuna participação insistente na vida cultural da cidade em periódicos e jornais de circulação na antiga capital do estado de Goiás, bem como dos inúmeros infortúnios existenciais enfrentados por Leodegária e sua família na Cidade de Goiás. Cortes e assaltos na formação, subsistência, trabalho cultural, exercício da maturidade poética e tantas outras questões que afugentaram a família para as Minas Gerais.
Para Antonio Geraldo Ramos Jubé (1977), em “Síntese da história literária de Goiás”, a literatura goiana não pode ser desvinculada do regionalismo, ou a expressão estética da realidade regional, assim, é uma “forma artística que intenta exprimir os estados mentais de nosso povo, as maneiras típicas de sentir, reagir e expressar-se do homem goiano, há de revelar-se, por isso, um acentuado caráter ecológico” (JUBÉ, 1977, p. 10, 11). Ao que parece, o autor pensou em caráter ecológico recortando dois elementos importantes que ultrapassam a perspectiva do sertanismo espacial apenas, o destaque da ecologia humana de Goiás é relevante, a alma goiana, tanto no caso da antiga capital, Cidade de Goiás; e posteriormente, a nova, Goiânia. Dessarte, entende-se outras duas questões: a primeira, “a arte, partícipe do processo vital, não se exerce em abstrato, desligada das circunstâncias de tempo e espaço” (JUBÉ, 1977, p. 10); a segunda, “a literatura como comunidade experiência comunizada” (JUBE, 1977, p. 11). Em ambos os casos, uma expressão estética de uma realidade regional, mas também de uma ecologia humana interessantemente peculiar.
E dessa forma, entre dores experienciadas e as impossibilidades do exercício pleno do ser e fazer cultura na antiga capital, parece-nos que, em substituição ao silenciamento e aos gemidos das dores do mundo, a poesia leodegariana é essa insistência do farol poético entre a proximidade-distância de pensar o mundo, e no caso, a mística do cotidiano como uma estranha claridade dissipadora dos espinhos que empoderam o caminho e a caminhada da autora. Logo, se a experiência é aquilo que atravessa, a poesia seria um modo atravessado de ser neste mundo. E em Leodegária, a experiênca dá poesia, assim, na ponte entre o silêncio e a voz se perfaz o cerne e o caminhar da poesia da autora.
Entre atravessamentos existenciais, e também conceituais, mais um é necessário enfrentar: a mística. Neste artigo que trata das relações entre poesia, mística e sentido da linguagem, por si só, chamam-se mediações e pontes conceituais para fazer as curvas da estrada da pesquisa e da busca de respostas na ciência dos desafios da palavra e do silêncio em seu trabalho de representar o que pode ser cognoscível (MARTINS FILHO, 2019; MARTINS FILHO, 2022). Destaca-se, então, a mística como experiência pessoal da união e do mistério de Deus para a vida no cotidiano mimetizado, ou não, pela linguagem humana.
A preservação da intimidade da experiência que também pode, ou não, depender de religião e da instituição religiosa para o acionamento e o condicionamento das vontades humanas inerentes à estruturação da vida. Mais que mística religiosa, entende-se a mística como itinerário de atravessamento crítico da condição humana de duras cotidianidades pelo mistério, também como um êxodo para dentro e para fora, ou quiçá, o silêncio que está antes e depois da primeira e da última palavra, numa espécie de passagem semelhante ao percurso de todos os rios, entre tantas nomeações, alguma hora eles perdem o nome quando chegam no encontro com o mar, a infinitude aparente (ARAUJO, 2022). Esse encontro em que se perde, se encontra, ou se funde em outro, é o que performa a correlação tríplice deste artigo: mística – poesia – linguagem como empréstimos epistemológicos para a compreensão da condição humana.
Inicialmente, faz-se o recorte da mística pensada na realidade brasileira pensadores bingemerianos. Na obra “A Mística e os Místicos” (2022) tem, de modo didático, a questão da mística em três momentos, a saber: as origens, o conceito e os problemas.
Em relação à origem na tradição Ocidental, parte-se dos mistérios gregos (Dionísio Aeropagita) e posteriormente cristão (Clemente de Alexandria), e muitos outros adiante, seguindo, assim, num itinerário platônico, bem como da patrística, a partir dos termos mystérion (ritual secreto), mystiké (relativo ao ritual secreto) e mystés (iniciado). Originários do mistério grego, conecta-se ao verbo mýeun (silenciar-se) para a ékstasis (sair de si) e epoptiké (iniciados aos mistérios). E dessa forma, o mystikós em relação à questão da textualidade, estaria veiculado à interpretação da linguagem para além do literal por via dessa experiência.
O conceito de mística[5] depende do referencial, religioso ou não, autor antigo ou moderno, sobretudo em relação ao conhecimento experimental de afeto e pensamentos acerca dos mistérios de Deus e do mundo. Por exemplo, para William James, a inefabilidade, qualidade noética, transitoriedade tolerante e a incapacidade de produzir por si só a experiência entre o afeto e o pensamento. Para Karl Hahner há dois sentidos quando se fala em mística: Em primeiro lugar, o misticismo da vida cotidiana das descobertas de Deus em todas as coisas os substratos experienciais. Em segundo lugar, existem experiências místicas especiais e solitárias nos desertos, monastérios dentre outros espaços tempos. Para Velasco, a união íntima com Deus como conteúdo e meta da experiência nos rastros divinos na alma tendo o amor como caminho e meio da união. E assim, tantos outros relevantes autores que escreveram sobre mística, como Raimon Panikar e Henrique Lima Vaz, que será nossa fundamentação teórica principal para pensar a mística e a linguagem de empréstimo.
E os problemas são inúmeros: mística se refere ao que não é racional? É tudo aquilo que não é Ocidental? Atua na região do desconhecido icognoscível? A questão básica da escrita da linguagem com o real humana é a seguinte, a teologia, religião e a mística são objetos de estudo dentro das chamadas ciências humanas, que na verdade, também têm sua origem no entroncamento da teologia e da filosofia. E assim, não há como desprezar esses elementos como menores, desprezáveis e não estudáveis. Nesse caso, a rejeição à mística como substantivo, porque antes era apenas adjetivo, como teologia mística. A dimensão do conteúdo substantivado da palavra mística é um movimento da percepção do mistério e da experiência de um jeito de lidar com a divindade na apofática da negação mediada pelo sujeito humano. Assim, mística aponta para a modernidade das experiências do mistério para o humano religioso, ou não (BINGEMER et al., 2022).
Este artigo destaca a poesia de Leodegária como uma mística substantiva a partir da voz poética atravessada pela decisão do silêncio – som – sentido de uma jovem mulher poeta goiana no início do século XX (ARAUJO, 2021). Os versos, mais que forma, métrica e rima, são a própria misticidade e ritualidade daquela que se descobre como poeta e mística do cotidiano no percurso duro do viver. Ou seja, o silêncio místico fez nascer a poesia sobre-vivente de uma voz poética possível. Dessa forma, Leodegária e o mistério cristão estabelecem um aporte básico de tradição cristã em diversos poemas representantes da tradição nunca abandonada por ela. E que é uma boa demarcação para o início da tradição literária feminina em Goiás.
Em Orchideas, na parte das Gotas de orvalho, o poema “Maria” (1928, p. 50) destaca o centro da mística mariana da autora: “lírio do céu em que resplandece a graça. Sol que ilumina a via dolorosa. D’alma que a vida soluçando passa”. Maria é um presente de Deus na qual “canta em minh’alma o hino da Esperança”. A seguir, em “Regina coeli” (1928, p. 51), mantém a mesma tônica do sustento da fé como via essencial da esperança no mundo: “teu nome é luz que ilumina as noites de minha vida”. Essa interface permanente com o mistério cristão anda paripasso com a vida e a arte do fazer poética leodegariano em Orchideas, assim como nos poemas inéditos.
Ao final de Orchideas (1928), é apresentado uma sequência da mística cristã da Semana Santa (Jesus, 1928, p. 97-100), em quatro poemas a saber: I. no horto [“Meu Deus! Passa de mim tanta amargura”]; II. no pretório [“Num vago olhar repleto de amargura”]; III. levando a cruz [“Um dolorido pranto de amargura”]; IV. no calvário [“Enquanto aflita amarguradamente”]. Isto é, o percurso do mestre Jesus poematizado sob o signo da palavra “amargura” reiterada na sequência de poemas celebrativos da tradição da Semana Santa, poemas sobre a mística cotidiana e teleológica de Jesus Cristo na terra de sua existência. Do jardim do Getsêmani até o palco da cruz há um caminho árduo, mas também fecundo, no qual o silêncio e o calvário do Cristo possuem uma voz que sustenta Leodegária a levar também sua própria cruz. O mistério de cada um que iniciar-se no Getsemani pessoal, cada um em seu “jardim da prensa do azeite”, nele, e na vida, o mistério cristão não apenas sobrevive, mas também se consolida entre experiência–silêncio–voz–cotidiano–dores–sentido nos atravessamentos destacados anteriormente.
O mistério institucionalizado é potente na tradição brasileira cristã, mas também, imanente ao mistério internalizado no humano consciente das vozes e dos silêncios que operam na essência do humano, que pode depender, ou não, das ordenações estruturantes da religião. A sobrevivência do mistério se dá na amplitude de sua existência operante no cotidiano de cada um. Nele, o mistério anda diametralmente ligado à vida, com as dores e as alegrias do mundo. Assim, a poesia e o poema são o fazer, construir e expressar de um olhar místico e especulativo da linguagem sobre os mundos interior e exterior da autora, uma relação de proximidade-distância com o mundo, contudo, com uma potente e persistente mística sustentadora e orientadora do existir, portanto, a mística como uma força arcaica da experiência humana com o encontro do mistério.
O humano é o lugar do acontecimento da experiência, podendo o silêncio ser o companheiro para esse fenômeno (BINGEMER; PINHEIRO, 2016). O Ocidente, privilegiador da razão instrumental, deixou de lado outras concepções de mundo como a própria mística e seus modos de conhecimento de mundo onde, sob o governo da razão, os limites da vida não são ressignificados, contudo, outras formas como a mística, a arte e a poesia se colocam nessa mediação humana como possibilidade de pontes entre razão e outras formas de conhecimento de mundo.
O termo "mística" indica uma relação direta com o mistério, como fonte primeira do ser, de todo o existente passado, presente e futuro, sem tempo e sem espaço, perceptível à interioridade, que contém toda a realidade na sua plenitude (BINGEMER, 2014, p. 852).
Maria Clara Bingemer, no editorial da Revista Teopoética (2019), dialoga e destaca a relevância da obra de Bernard MacGinn e a definição da “mística como consciência da presença divina” (MACGINN, s/d apud BINGEMER, 2019, p. 5). Dessa maneira, três concepções sobre a mística cristã no Ocidente podem ser acolhidas: mística como um elemento, ou parte da religião cristã, mística como processo e modo de vida, mística como expressão da consciência da presença do mistério Deus no cotidiano. Assim, isso é relevante para a análise literária e mística na obra de Leodegária.
A poesia pode ser um campo de expressão da experiência mística e o desafio para os limites da linguagem entre símbolos, sons, silêncios, dores e sentidos na correlação entre linguagem da poesia e a mística experiencial a fim de que o humano perceba a poesia da mística e a mística da poesia. A associação entre poesia e mística está na capacidade de superação da linguagem como expressão e desvelamento do eixo fenomenológico entre as fronteiras da poesia e da mística como linguagens da experiência humana diante do mundo. Leodegária é uma mística? Não no sentido clássico da tradição dos mestres místicos do Ocidente, contudo, sim em relação ao mistério que alicerça e pacifica a alma dolorosa e triste da poeta através da experiência de sua voz na arte poética. Nesse recorte com o texto literário, a poesia e a mística da autora tangenciam com a obra da autora.
O que se reitera na abordagem deste artigo é a análise textual, parte-se do que, de fato, temos para analisar, e no caso, não há o que inventar nem forçar temas, como por exemplo, recentemente, identitarismo negro como uma hermenêutica possível a partir da obra e da vida da autora. Em relação às obras da autora não há uma palavra, ou norteamento, sobre a pauta identitária negra. Sabe-se do valor dessas discussões, mas como provar a partir do texto de Corôa de Lyrios (1906) e Orchideas (1928)? Não tem como. Agora, mediante uma análise biográfica e documental sobre os efeitos da relação cor/raça que se avolumaram em perseguições e silenciamentos em relação a Leodegária e à família, na perspectiva daquele tempo em Goiás (do século XIX para o século XX), há amplos e oportunos espaços para esse tipo de pesquisa que, através de fatos, dados e documentos, age com ciência e consciência. Entretanto, a partir do texto literário, a pesquisa genética/biográfica/documental terá dificuldades para alinhar a obra de Leodegária de Jesus às pautas de nosso tempo.
Pode-se, em parte, discutir a relação da perseguição sofrida pela família, a exclusão da possibilidade de acesso ao ensino superior, a trajetória jornalística na Cidade de Goiás, dentre outras questões sobre os reais desafios de Leodegária e família, quer pela opção política do pai, quer pela questão racial da época, contudo, até aqui, parece-nos que as discussões recentes, dos múltiplos artigos e pesquisas que começam a surgir, e o reaparecimento do nome da autora no século XXI, deve-se a uma interpretação pautada por questões que ainda exigem uma metodologia mais científica em relação aos estudos literários, e menos com a cabeça identitária do tempo presente em relação ao temas e pautas que se levantam hoje.
Leodegária Brazília de Jesus foi uma mulher negra que fez poesia e mística cristã como forma de uma leitura de mundo sobrevivente possível nos estados de Goiás e de Minas Gerais, e dessa forma, apesar de silenciamentos[6], através da palavra e da escrita, quer seja nos livros, quer seja nos jornais, quer seja no ensino, quer seja na administração escolar e tutela familiar de mantenedora, teve a força de lutar bravamente com a palavra e com o mundo dentro do espaço e do tempo de sua existência possível. Isso pode ser visto claramente nos dois livros publicados e nas fontes secundárias sobre a vida da autora. E nisso, este artigo se mantém.
Ademais, a metodologia da pesquisa em literatura, e também em religião, é um veículo onde o combustível é a inteligência do pesquisador e dos leitores a partir de três pilares, a saber: o crivo crítico, a postura investigativa e um posicionamento entre a interpretação e o devido aparato crítico (DURÃO, 2020). Como Poesia e Mística são linguagens carregadas de significados da proximidade-na-distância entre linguagem e pensamento, o chão da pesquisa não está no vácuo, mas sim no texto literário trabalhado nos limites da relação entre liberdade e o devido academicismo, nesse caso, a pesquisa nas áreas de literatura e religião, mais que a relação clássica das ciências exatas na interface da razão, objeto e hipóteses, adentra nas ciências humanas, sobretudo na área de artes e linguagens, onde “a pesquisa deve estar comprometida com a produção de um conhecimento novo” (DURÃO, 2020, p. 36).
Incluir conceitos teóricos como mística e poesia na máquina acadêmica postula-se a produção de conhecimento novo, e ele, cada vez mais interdisciplinar entre áreas do conhecimento, e/ou transdisciplinar a partir de um eixo temático repassado pelo crivo crítico de campos do saber alicerçados. E dessa forma, os esforços se multiplicam na ocupação tensa de espaços e territórios na correlação entre uma mística e poesia oriunda dos sons, silêncios e sentidos das palavras.
O mistério cristão não apenas faz parte da vida da autora e da família, assim como foi um sustento e norte para o existir de Leodegária Brazília de Jesus, e também sua leitura de mundo, ou, o encontro producente de uma mística do cotidiano, do fazer poético e para a sobrevivência às dores do mundo.
Denófrio (2019, p. 279-291) coletou onze poemas inéditos que também abordam a mística cristã poética. O poema “Rio bagagem” é o registro do retorno de Leodegária com o encontro com o rio Vermelho, cidade de Goiás, o rio da infância, “na tua superfície transparente. Como que existem, rio sossegado. A mansidão acética do crente. E a limpidez de uma alma sem pecado” (DENÓFRIO, 2019, p. 279). Quem sabe, no retorno à cidade da adolescência em 1930, época da escrita desse poema, a justiça das águas do rio lave a alma como as tristezas e as dores do mundo Goiás registradas tanto em Corôa de Lyrios (1906), quanto em Orchideas (1928).
Na sequência dos poemas inéditos, além de Rio Vermelho, os temas cristãos ocupam os títulos e a temática, a saber: “abandonado”, “votos”, “tarde no campo”, “a samaritana”, “Bethania”, “profissão de fé”, “a Jesus hóstia”, “à virgem Maria”, “ave Maria”, “natal”, “hino a Jesus”. Ao todo, onze poemas no curso da maturidade vivida em Minas Gerais, a vida além da Cidade de Goiás. Alguns desses poemas foram descobertos por Pedro Nolasco Araújo no “jornal Lidador” entre os anos e edições de 1909 e 1910, assim como no “jornal Católico Vida”, em Rio Claro - SP, nos idos de 1940. Outros poemas foram, de fato, escritos nas Minas Gerais, na qual Leodegária concentra-se na poesia de temática essencialmente católica (DENÓFRIO, 2019). Reafirma-se, então, o pensar numa correlação imediata entre Poesia e Mística, ou uma poética do discurso místico em que
(...) a poesia é experiência do silêncio da linguagem como palavra totalmente condensada, voz do silêncio colhida pelo poeta e transposta em uma língua. O pensamento de infinito que projeta a poesia não indica necessariamente uma experiência mística. A poesia permite ao místico libertar a palavra simples de seu significado para falar da sua experiência, mas nem toda libertação da palavra provocada pelo poeta é resultado de uma experiência mística religiosa (CARVALHO, 2012, p. 64).
Poesia e pensamento místico performam a relação proximidade-distância como sobre-vivência na injustiça e seus terríveis simulacros possíveis na existência humana. Assim, a presença do mistério na poesia não expressa nenhuma novidade. A poeta, como serva do mistério, da linguagem e do cotidiano, está entre as dores de si e do mundo no mergulho da arte na profundidade de uma apofática do vazio nas constestações do viver, nas afirmações e nas negações dos abismos entre o mistério e a humanidade vivido. Em Leodegária, incorre-se na voz poética de uma relação com o mistério divino cristão, e há no texto de Orchideas a sua especulação de sentidos desse encontro através da poesia como sustentáculo das dores do mundo. Entre o cotidiano do viver leodegariano está o percurso do silêncio do mistério e a voz da poesia. O lugar onde razão e silêncio abraçam a beleza do cotidiano e do mistério através da poesia, que seria o resultado da experiência da poeta diante do mistério.
Em “Suprema dor”, entre os gemidos e as lágrimas, na proximidade e na distância do mistério, bem como na interface da poiesis necessária na qual poetas existencialmente se locomovem, Leodegária se expressa de modo contundente na linguagem poética do mundo leodegariano (1928):
Não é o sentimento dolorido. Que há muito, escondo d’alma nos refolhos. O que me faz viver neste gemido. Trazendo sempre lagrymas nos olhos. Não são também os ásperos abrolhos. De que vejo meu trilho entretecido. Que assim me affligem, não, não teme escolhos. Um coração, na fé fortalecido. O que me opprime tanto e me entristece. O que me arranca prantos tão amargos. E me aniquila e mata e me enlouquece. É saber-te, adorável criatura. Infeliz; e, trilhando, a passos largos. O caminho da eterna desventura! (JESUS, 1928, p. 24).
Poesia e as dores do mundo[7] tem a relação direta da expressão do eu lírico desde a própria essência do romantismo de segunda geração no Brasil. A estética romântica em Goiás tem em Leodegária uma representante digna de louros e de análises, visto que os temas tratados pela poeta são pertinentes à poesia das tensões daquilo que não apenas é próprio do humano, mas também é amplificado pela poeta em suas experiências e escrita. A poesia é um veículo de ideais, que mormente também é um transporte de um silêncio impregnado da experiência da poeta, e assim, de certa forma, a experiência que dá poesia é também a experiência da poesia e da dor da poeta, ou seja, é uma forma de comunicação de um eu lírico duplicado que transita entre mim e os outros conjugando as dores de si no mundo.
Leodegária tem poesia e desejos para cada dor[8], também a dor sem nome, assim como a trilha de um caminho superável pela via da palavra diante do mistério da vida. À semelhança da poesia brasileira romântica de segunda geração, a poeta goiana entre sombras e luzes faz seus atravessamentos poéticos em busca da relação de si e do outro no mundo. No poema “Meu desejo” temos essa perspectiva retroalimentada no percurso poético da autora:
Não quero o brilho, as sedas, a harmonia. Da sociedade, dos salões pomposos. Nem a fallaz ventura fugidia. Desses festins do mundo, tão ruidosos! Prefiro a calma solidão sombria. Em que passo meus dias nebulosos. Sinto-me bem, aqui, à sombra fria. Da saudade de tempos mais ditosos. Eu quero mesmo, assim, viver de lado. Das multidões passar desconhecida. Me alimentando de algum sonho amado. Nada mais quero, a nada mais aspiro: teu casto affecto que me doira a vida. Meus livros, minha mãe e meu retiro (JESUS, 1928, p. 27).
A interface no mistério com o cotidiano é uma morada capaz de agenciar o suporte necessário ao existir da poesia quanto da poeta: entre tantos desejos, o possível acolhedor foi livro, mãe e a casa: a ambiência da palavra, da família e do esconderijo. Nessa afetividade que dourava a vida, em tempos sombrios da alma e da vida comum fria, a solidão habitual da poeta foi passo fundante de sua percepção do mundo.
Especificamente em relação à mística[9], como dito, originariamente está ligada a uma forma de experiência de natureza religiosa ou filosófica que se passa no plano transracional (não aquém, mas além da razão) e na qual mobiliza potentes energias psíquicas do indivíduo, assim, nessa realidade que transcende tem-se, também, uma forma de conhecimento entre sujeito e objeto no universo da experiência humana. Logo, segundo Henrique Cláudio Lima Vaz (2000, p. 11), pode-se entender a “mística como autorrealização do indivíduo na abertura para o Absoluto e para o Outro”, e nessa direção ao mistério e suas realizações no humano, sobretudo na antropologia da experiência mística, da qual a poesia seria um arquivo, registro e interpretação sob o olhar da poeta. Dessa forma, a experiência mística está no centro da triangulação místico - mistério - mística, ou seja, ela ocorre na intencionalidade experiencial que une o místico ao mistério. Assim, “o místico é o sujeito da experiência, o mistério, seu objeto, a mística, a reflexão sobre a relação místico-mistério” (VAZ, 2000, p. 17).
A experiência mística é um dado antropológico original na qual sua interpretação exige, pois, uma concepção do ser humano apta a dar razão dessa originalidade. Sobretudo como uma metáfora espacial (inferior-superior e do interior-exterior) do olhar da alma, ou seja, um movimento “para si, para o outro”. Assim, poesia e mistério fazem essa via que pavimenta os dados humanos como arte em processos de experiência carentes de metáforas, explicações e explicadores. Logo, a experiência mística dever ser reconhecida como “um fato antropológico singular, cuja singularidade só pode ser reconhecida e interpretada nos quadros de uma adequada filosofia do ser humano” (VAZ, 2000, p. 26).
Para Henrique Cláudio Lima Vaz, em “Experiência mística cristã e filosofia na tradição ocidental” (2000, p. 29-75), existem três formas de experiência mística na tradição ocidental: a mística especulativa, a mística mistérica e a mística profética.
A mística especulativa é um prolongamento do experiencial do saber e da contemplação como uma forma de conhecimento (crescimento na interiorização do Mistério pela contemplação). É uma mística do conhecimento, isto é, a intensidade experiencial voltada para o mistério do Ser (esforço humano descritivo, no roteiro do logos, diante do natural/sobrenatural... eixo objetivo/eixo subjetivo). A mística mistérica é um pleonasmo nominal do espaço interior-superior que ordena uma mística da vida em relação ao Absoluto (celebração eclesial do Mistério) que perpassa pela experiência de Deus no mistério cristão sacramental e litúrgico (catequese mistagógica). A mística mistérica cristã organiza-se em torno das categorias batismo, ressurreição e vida nova. A mística profética é uma mística da audição da Palavra que floresce no terreno das Escrituras (a força operadora da Palavra). A articulação entre fé e a Palavra é, portanto, a articulação fundamental na estrutura da mística profética.
Neste artigo, entende-se mística como o encontro de aproximação na distância entre silêncio, mistério e voz poética como força potente da linguagem humana, logo, destaca-se também que na poesia de Leodegária de Jesus há uma mística especulativa cristã que “tem seu lugar próprio de crescimento na interiorização individual do Mistério pela meditação e pela contemplação” (VAZ, 2000, p. 65). Dessa forma, se constrói e contorna o mundo ora possível, ora impossível da autora e de sua obra. Fazendo um retorno à obra primeira, Corôa de Lyrios (1906), Leodegária no poema “inverno”, por exemplo, assim como em diversos poemas sobre as estações do ano, também meses do ano, e quiçá da vida, mantém-se nesse meio da contemplação, produção poética e especulação do mistério da natureza mediante a espacialidade interior/exterior, alto/baixo, a saber:
Por entre nuvens lívidas, sombrias. No occaso o sol, tristíssimo, declina. A noite desce; um manto de neblina. Envolve, além, as altas serranias. Ronca o trovão; e a semear ruina. Ulula o vento pelas cercanias. Gemem florestas, bastas ramarias. E o rio brame, em cólera felina. Nuvens rasgando, a chuva cae pesada; Cruzam-se os raios; vejo então travada. Lucta terrível entre terra e céos. Ante este quadro horrendo, pavoroso. Fende minh’alma. O espaço tenebroso. Pairando, humildemente, aos pés de Deus (JESUS, 1906, p. 31, 32).
Entre sombras e luzes da alma, das estações e da vida possível, entre as impossibilidades experimentadas, há uma rendição pós-especulações poéticas da autora aos pés do mistério familiar e pessoal. A própria estruturação do livro de poesias Orchideas (1928) dá indícios dessa questão: folhas mortas, ramo florido, gotas de orvalho, e dentro dessas gotas de esperança está a intitulada semana santa, uma série de quatro poemas que narram o percurso místico do Cristo até o calvário.
No poema “Adeus”, que poderia ser chamado de “a dor Djalma”: ir, partir e se distanciar daquele que mais se ama do que a própria vida, que interioriza uma chaga incurável no coração, uma das dores do mundo, a quebra do amor romântico, ou a ruptura do endereçamento lírico da autora: “n’alma um milhão de dores palpitando. Toda a minha existência vae boiando. No grande mar de pranto que me ala; E ao peso enorme dessa dor que esmaga. Sinto o peso da sorte me arrastando” (1928, p. 69).
Denófrio (2019)[10] aborda o platônico e a perda do que teria sido o primeiro e único amor de Leodegária: Djalma Guimarães. Na Cidade de Goiás, ela tinha 14 anos, ele tinha 17. Se fruto de uma idealização romântica adolescente, ou não, no campo biográfico da poeta e em diversos poemas como “Supremo goso”, “Suspiros”, “Teus olhos”, “Ainda e sempre”, “Adeus”, “Último adeus” etc, destaca-se o rompimento forçado quando veio os 15 anos da autora. Na obra primeira e segunda, termos como dor, lágrimas, desventura e a chaga incurável se proliferaram em poemas da poeta em suas memórias do amado impossível.
Não obstante à perda e à dor de um cotidiano primevo, inúmeros outros impossíveis se somaram na formação do que chamamos anteriormente de mística experiencial da autora através da arte poética: pessoas, família, mitos cristãos, natureza, vida, amor, estações e meses do ano, tristeza e dores do mundo diante da sobrevivente mística cristã especulativa para o exercício da poesia e do pensamento, porventura, a mística para uma poesia possível. Em “doce mágoa” (1928):
Trago-a há tempos comigo bem guardada. E oculta ao mundo que aborreço tanto. É tão somente minha, e, assim, velada. Ninguém no mundo lhe conhece o encanto. Pela estrada da vida salpicada. De espinhos duros que percorro em prantos. Ela segue a meu lado disfarçada. Sem que ninguém o saiba, no entretanto. Quer faça tempestade ou haja calma. Passa aqui, nos desertos de minh’alma. Como um raio de sol bem claro e louro. E embora me encha a vida de amargura. Eu vivo dessa dor que me tortura. Que foi sempre o meu tesouro (JESUS, 1928, p. 94).
O tesouro da poeta, da intelectual, da jornalista e da professora Leodegária tem a insistente mística dos tempos dos meses e das estações de um relógio que não passa ante às tristezas e mágoas operadoras de sua voz poética na velha serra de Goiás. No caso, sobreluz, evidencia-se a poesia e a mística como decisão entre som e sentido na linguagem do mundo sobrevivente da autora. A base é a mística cristã que transita da mística mistérica institucionalizada católica romana para a mística cristã poética, portanto, especulativa do cotidiano da poeta, como por exemplo, em “A relíquia” (1928), poema no qual a autora enfatiza a cruz de madeira que carrega no leito, e da qual o coração se inclina, a que beija com amor quando se deita: “foi essa cruz a doce companheira. De um longo martírio... da cegueira. Embalsamou-me a noite tormentosa” (JESUS, 1928, p. 81).
A essência do cotidiano primeiro da Leodegária é a família, por exemplo, “A meu pae”, “Feliz”, “A neném”, “Mysteriosa”, assim, em “Mãe” (1928, p. 108), poema que encerra Orchideas, ela enfatiza: “Iluminando os ásperos abrolhos. Da perigosa estrada em que prossigo. Sinto seguir-me como um astro amigo. A claridade augusta de seus olhos [...] e os seus exemplos santos, Mãe querida! Dão-me esta força estranha que me assiste. Nas grandes lutas trágicas da vida”. A mística familiar prepondera nos poemas dedicados ao pai José Antonio de Jesus, à mãe Ana Isolina Furtado e às irmãs: Zenóbia Palmira e Maria Aurora.
Em Orchideas, o eu lírico místico cristão da poeta se funde entre os espaços e tempos da vida, dessa forma, cotidiano, poesia e sentido dentre as linguagens do mundo que promovem uma ruptura das formas do silêncio através do fazer e do sobreviver de uma poesia especulativa do cotidiano experiencial. Mesmo com uma longa tradição da produção de conhecimento socialmente relevante na qual “a experiência mística na modernidade ocidental tem seu destino ligado a uma profunda mudança de códigos epistemológicos que separam o saber dos tempos antigo-medievais e o saber dos tempos modernos” (VAZ, 2000, p. 77).
Este artigo percebe que os objetos materiais e simbólicos, dentro de uma razão antropocêntrica e poética, que transita da mística como adjetivo para a mística como substantivo, apontam a relação da poesia e do mistério com um saber exterior amalgamado diante do objeto experienciável, que por si só, é atravessante interiormente, e expressado de um modo sobrevivente através da arte poética.
Como mulher de seu tempo, desde a adolescência, até a morte do pai em 1920, e durante todos os processos de ser arrimo de família, e mais, uma mulher intelectual que fora podada em seus voos possíveis, entretanto, exerceu seu ofício de modo pleno através da palavra como poeta, jornalista e professora, de forma corajosa deixou, de fato, seu nome nas letras goianas: “verás, então, poeta destemido. Teu nome escripto, em grandes letras d’ouro, nas refulgentes páginas da história” (JESUS, 1928, p. 28).
A poesia vive da hesitação prolongada na tensão e no contraste entre o som e o sentido, entre a série semiótica e a série semântica (AGAMBEN, 2002), e o verso seria como um ser que reside nesse interregno e cisma. E no caso em questão, o diálogo entre poesia e mística. um evento semiótico e um evento semântico. Logo, o poema “é um organismo que se funda sobre a percepção de limites e terminações das unidades sonoras, ou gráficas, e unidades semânticas” (AGAMBEN, 2000, p. 143). Dessa forma, o poema desvela o escopo da sua orgulhosa estratégia: que a língua consiga no fim comunicar ela própria, sem restar não dita naquilo que diz como uma hesitação prolongada.
Se cada poeta instaura um modo de dizer, com a versura do enjambement, ele introduz no poema um modo de não-dizer, que se confundem com um modo de dizer todos os possíveis então permitidos, uma maneira de fazer o verso escapar do dado de si mesmo para um fora de si que o constitui, produzindo um ato terrorista no que está sendo dito; colocando o dito em suspensão, a versura é a dicção do não-dito e de todos os dizeres possíveis (PUCHEU, 2009, p. 29).
A versura, como passagem e articulação entre os versos, possibilita a elasticidade para além da pausa métrica de um fim de verso ao início do outro [enjambement]. Ou seja, o retorno e a continuidade da força criadora da palavra dos dizeres possíveis para o poeta nas relações entre ritmo-métrica-semântica. Assim, o caminho possível do silêncio confundido com a linguagem da ideia na abertura das infinitas possibilidades da tensão de dizer, ou do devir possível da arte da palavra no operário poema que não pode acorrentar a obra poesia. Explicado de outro jeito, Alberto Pucheu destaca que “enquanto a poesia é passagem, o poema é sempre passageiro: ele passa, sendo levado pela passagem da poesia” (PUCHEU, 2009, p. 46).
Dessa forma, o poema é sempre passado onde a poesia é presente futuro. Logo, o “poema leva a palavra ao limite da linguagem, ao seu ponto cego, ao seu nascimento, ao silêncio inerente a ela” (PUCHEU, 2009, p. 47), isto é, ele faz parte da essência da poesia, a incorporação do indizível, nesse caso, o silêncio é linguagem, ou uma revelação da linguagem. Na materialidade do poema, a poesia é linguagem sem fim.
Essa questão é pontual do diálogo entre mística e poesia forma, entre diversas possibilidades epistemológica, o que Henrique Cláudio Lima Vaz (2014) chama de “linguagens de empréstimo”, entre áreas do saber de letras, filosofia, teologia e artes, ou seja, linguagens de empréstimo buscam traduzir a perplexidade hermenêutica da existência humana em três esferas, a saber (VAZ, 2014, p. 185-189): 1. A linguagem das reivindicações humanas; 2. A linguagem das explicações humanas; 3. A linguagem da condição humana[11]. Assim, numa refundição profunda das linguagens como áreas do saber em diálogos possibilitam um novo tempo-eixo de contestações para a sobrevivência sociocultural a partir do fenômeno dialogal característico do século XXI nas múltiplas experiências do ser humano em sociedade.
Portanto, entende-se que a obra de arte poética de Leodegária Brazília de Jesus, pelo caminho do encontro da poesia e da mística, oportuniza e expressa uma reivindicação, uma explicação e uma condição humana a partir dos atravessamentos experienciados pelo eu lírico e pela autora, entre 1906 e 1928, nos embates possíveis do cotidiano, de outro modo, a poesia, a mística e a especulação do cotidiano (im)possível entre as dores do mundo.
Ou, como delineia a reflexão de Benedito Nunes em “Hermenêutica e Poesia”, há um intercurso dialogal de proximidade-na-distância entre poesia e pensamento, uma vizinhança essencial de uma escala poética do pensamento ao encontro e desencontros da finitude do ser: o mergulho na interioridade, de si e do outro, na qual busca-se reivindicar, explicar e apalavra-se com a condição humana possível.
Basileu França, em Poetisa Leodegária de Jesus, afirma que “é inaceitável e ridículo que alguém se insurja com a opção espontânea de Leodegária, que traz a marca da singeleza de uma garota do sertão de Goiás” (FRANÇA, 1996, p. 13). Para tanto, e por seu turno, a interação mística e literária entre autora, biografia e obra poética de Corôa de Lyrios e Orchideas, “trata-se de um nascer de um lado e do renascer de outro, que nunca se excluem, pelo contrário eles se completam. Nascer e renascer” (FRANÇA, 1996, p. 14).
Sob o selo da eterna melancolia dos poetas, e através de um eu lírico do amor e do bucolismo, temos lírios e orquídeas, a poesia como signo de salvação de quem fez seu êxodo heroico de Caldas Novas, Jataí para a antiga capital Goyaz, depois Catalão, Araguari e São Pedro de Uberabinha (Uberlândia) onde publicou Orchideas em 1928, e fundou em 1921 o Colégio São José com a ajuda da mãe das irmãs. Dali, entre espaços e tempos, muitos outros caminhos e superações da ida para Belo Horizonte em 1946, onde criou o Lar de São José, até sua morte no dia 12 de julho de 1978, na rua dos Otonis, n° 46, aos 89 anos de idade. Em suas últimas semanas de vida, segundo França (1996, p. 22), lia diariamente “os Evangelhos – uma das lições do velho pai - e trechos de “Le divin ami: pensées de retraité”, ou algumas páginas de “Cristo em minha vida”, obra de Clarence J. Ensler”.
Deve-se ao fim deste texto retomar e encerrar questões propostas anteriormente pela pesquisa, entretanto, mais que pontuar, que seria interessante e não faltariam pontos, é pertinente destacar o silenciamento, e certo ineditismo, em relação à temática da mística cristã a partir das duas obras livrescas de Leodegária (1906; 1928). Percebeu-se nesse percurso, a centralidade da tríade: dores do mundo – poesia – mística cristã. Essa amalgamar é bem delineado na biografia familiar, pessoal e na poética da autora.
A partir do desafio imediato, pensou-se em analisar a obra Orchideas (1928), da poeta goiana Leodegária Brazília de Jesus (1889-1978). Assim, discutiu-se a mística e a poesia do mundo leodegariano com um olhar mais atento sobre a obra da pioneira da poesia no estado de Goiás com vista à analise literária e mística de sua segunda obra poética. O destaque que se fez foi no texto literário, logo, utilizou-se da fonte primária de Orchideas através da versão da edição integral de 1928 em PDF da Biblioteca Central da UFG, e da obra integral republicada no livro “Lavra dos Goiases II”, que também nos serviu como fonte secundária em seus diversos comentários aos contextos extraliterários sobre a obra e a poeta. Fez-se uma pesquisa qualitativa com a técnica de revisão bibliográfica com o propósito de realizar uma metacrítica literária da poesia e da mística como linguagens de empréstimo para pensar as dores do mundo sobrevivente no cotidiano possível na poética de Leodegária de Jesus. As palavras-chave, então, mantiveram-se firmes na caminhada e olhar, mística, poesia, experiência e cotidiano. E os silenciamentos, no século XXI, também se verificaram e os questionamos.
A primeira ênfase deste artigo foi levantar alguns elementos sobre o valor da experiência como atravessamento do ser entre dores da vida, o que dá um tipo de conhecimento e ciência de suas limitações, mas também potencializa um exercício de arte poética como foi o caso de Leodegária: a experiência dá poesia, e também é da poesia, e assim, se encontram com a mística, o interregno diante do mistério e do cotidiano. Em ambos os casos, linguagens do mundo pela via da experiência.
A segunda perspectiva entra diretamente na mística como substantivo duplo, a mística no centro da discussão, e se a autora é mística. Logo, verificou-se em Orchideas, assim como nos poemas inéditos, há uma mística de tradição cristã católica romana. E não apenas isso, essa mística não apenas está presente, contudo, exerce papel preponderante na existência da autora e no ofício poético tanto em temas quanto na aplicabilidade da correlação entre dores do mundo, da experiência e na relação com o mistério cristão para a sobrevivência ante aos desafios do cotidiano.
Por fim, apontou-se um caminho tese que perpassou o artigo, mística e poesia são linguagens de empréstimo com vistas às tentativas de nomeação de reivindicações e explicações da condição humana entre os diversos atravessamentos da experiência ante às dores do mundo. Assim, entre versos, sons e silêncios o fazer adjetivo da mística tem sua interface dialogada no fazer da arte poética, a poesia, onde se impõe o imperativo do dizer o que nem palavras conseguem expressar plenamente, entretanto, entre os dizeres possíveis a poesia e a mística performam um tipo de especulação do cotidiano, ora possível, ora impossível.
Leodegária Brazília de Jesus, a mulher preta intelectual que sob o signo da mística cristã e da arte poética iniciou a tradição literária feminina em Goiás, e que sob a batuta dos silenciamentos e das perseguições ao seu nome e intelectualidade, corajosamente, inscreveu-se na história literária goiana e brasileira como a primeira mulher a publicar livro de poesia em Goiás, apesar daqueles que lá em 1906, ou em 1928, ou ainda em 2023, cegam-se diante dela e de sua obra. A eles e a elas: coroa de lírios e orquídeas de uma corajosa trabalhadora intelectual da linguagem sustentada por sua mística.
AGAMBEN, Giorgio. O fim do poema. Tradução de Sérgio Alcides. Revista Cacto, número 1, agosto de 2002. p. 142-149.
ARAUJO, Cristiano Santos. O Jogo entre o Tempo e o Destino em João Guimarães Rosa. São Carlos: Pedro e João Editores, 2022.
ARAUJO, Cristiano Santos. Letramento Universitário: a língua portuguesa no ensino superior. São Carlos: Pedro e João Editores, 2021.
AZEVEDO, Francisco Ferreira dos Santos. Annuario Historico, Geographico e Descriptivo do Estado de Goyaz para 1910. Reedição fac-similar. Brasília: Fundação Nacional Pró-memória, 1987.
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti; BOAS, Alex Villas. Teopoética: mística e poesia. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo, 2020.
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti; LOSSO, Eduardo Guerreiro; PINHEIRO, Marcus Reis. A Mística e os Místicos. Petrópolis: Vozes, 2022.
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti et al. Mística e poesia. Teoliterária. V. 9, N. 17, p. 05-12, 2019.
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Mística e secularidade: impossível afinidade? Horizonte - Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 12, n. 35, p. 851-885, 29 set. 2014.
BOFF, Leonardo. Experimentar Deus: a transparência de todas as coisas. Petrópolis: Vozes, 2006.
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. In: Seminário Internacional de Educação de Campinas, 1., 2002, Campinas. Revista Brasileira de Educação. Campinas: Leituras SME, 2002. p. 20-28.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.
BUENO, Alexei. Uma história da poesia brasileira. Rio de Janeiro: G. ErmaKoff Casa Editorial, 2007.
CARVALHO, Vinícius Mariano de. A poesia da mística e a mística da poesia. Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 25, p. 53-74, jan./mar. 2012.
DENÓFRIO, Darcy França (org.). Lavra dos Goiases III: Leodegária de Jesus. Goiânia: Cânone Editorial, 2019.
DURÃO, Fabio Akclerud. Metodologia da pesquisa em literatura. São Paulo: Parábola, 2020.
FRANCA, Basileu Toledo. Poetisa Leodegária de Jesus. Goiânia: Kelps, 1996.
JESUS, Leodegária de. Corôa de Lyrios. Campinas: Livro Azul, 1906.
JESUS, Leodegária de. Orchideas. São Paulo: Ave Maria, 1928.
JUBÉ, Antônio Geraldo Ramos. Goiânia: Oriente, 1977.
MARTINS FILHO, José Reinaldo F. Intencionalidade, sentido e autotranscendência: Viktor Frankl e a fenomenologia. Ekstasis Revista de Hermenêutica e Fenomenologia, v. 8, p. 21-37, 2019.
MARTINS FILHO, José Reinaldo F.; VELOSO, Marcelo Gabriel de Freitas. A religião como fonte de sentido nas poesias de Seu Freitas. Interações – Cultura e Comunidade, v. 16, p. 73-92, 2021.
MARTINS FILHO, José Reinaldo F. Religião e construções de sentido. Jundiaí: Paco Editorial, 2022.
MARTINS FILHO, José Reinaldo F. Mística e espiritualidade vivencial na literatura de Cora Coralina. Caminhos, v. 21, p. 380-404, 2023a.
MARTINS FILHO, José Reinaldo F. Das modulações do silêncio em Heidegger: uma leitura a partir de Ser e Tempo. Griot, v. 23, p. 67-78, 2023b.
MARTINS FILHO, José Reinaldo F.; SILVA, Daniel Carvalho da. et al. (org.). Religião, arte e cultura: multiplicidades convergentes. Porto Alegre: Fi, 2023.
NUNES, Benedito. Hermenêutica e Poesia. O pensamento poético. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007.
PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. 2. ed. São Paulo: Nova Fronteira, 1982.
POUND, Ezra. ABC da literatura. 11. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
PUCHEU, Alberto. Do começo ao fim do poema. Boletim de Pesquisa NELIC, v. 9, nº 14. 2009. p. 18-53.
SANTOS, Giovana Bleyer Ferreira dos; CAMARGO, Goiandira Ortiz de; BUARQUE, Jamesson. Considerações sobre poesia goiana. Goiânia: Cânone Editorial, 2018.
VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Experiência mística cristã e filosofia na tradição ocidental. São Paulo: Loyola, 2000.
VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Problemas de fronteira. Escritos de filosofia I. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2014.
SCHOPENHAUER, Arthur. As Dores do Mundo. São Paulo: EDIPRO, 2013.
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
------------
[1] Esta reflexão é parte integrante da pesquisa sobre mística e poesia goiana no período da realização do estágio de pós-doutorado em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Goiás, sob a supervisão do prof. Dr. José Reinaldo Felipe Martins Filho, entre 2023 e 2024. Objetivou-se a incursão analítica no livro de poesias Orchideas (1928), de Leodegária Brazília de Jesus (1889-1978) dentro do recorte imediato da correlação entre mística e poesia na relação da proximidade-distância, em terras goianas, das formas da linguagem da condição humana em suas reivindicações.
[2] Utilizou-se dois acessos à fonte primária de Orchideas. 1. A versão em PDF fac-símile da edição integral de 1928 (Biblioteca Central da UFG); 2. A obra integral republicada no livro “Lavra dos Goiases II” (DENÓFRIO, 2019).
[3] Cf. “Se não bastasse o que pusemos num dos pratos da balança, como parte do literário ou de suas pré-condições, deitemos, no outro, suas qualidades humanas e morais. Fica ainda sua obstinação em vencer por métodos com base na lealdade e na ética, quando foi posta à prova pela vida que dela, muito cedo, exigiu, também o posto de chefe de família” (DENÓFRIO, 2019, p. 17, 18).
[4] Cf. O poeta pode muito bem tentar realizar o "ut pictura poesis" de tal maneira, que procure representar em palavras a sucessão no espaço (STAIGER, 1997, p. 45).
[5] A etimologia da palavra “mística” vem do termo “myein” [fechar os lábios ou os olhos], que mediante uma transposição metafórica de “mýstes” [iniciado], ou “mystikós” [iniciação secreta], ou “mystiká” [ritos de iniciação], e finalmente, “mysterión” [objeto da iniciação] (VAZ, 2000, p. 17, nota 6).
[6] Soa como um acinte não haver um verbete com Leodegária de Jesus no “Dicionário do Escritor Goiano”, obra de José Mendonça Teles, publicada em 1999 pela Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico. Nessa obra, tendo na maior parte uma celebração de escritores homens, há algumas escritoras, entretanto, em relação à primeira escritora goiana, no que tange àquela que iniciou a tradição literária em Goiás, nada. Na mesma tonicidade, em “A poesia em Goiás”, de Gilberto Mendonça Teles, na terceira edição revista e publicada em 2018, tem-se brevíssimas linhas biográficas e o texto de três poemas de Leodegária apenas: nada substancioso. Para esse autor, “o príncipe da poesia goiana”, somente depois da década de 1930 é que se pode pensar em uma literatura goiana, mesmo que com expressão insipiente, segundo ele. Em “síntese da história literária de Goiás”, Antonio Jubé (1977) faz alguns apontamentos rápidos colocando-a numa parte secundária chamada de “outros românticos”, donde defende que em Leodegária há inicialmente “ingênuo lirismo com acentos amargos”, assim como “uma evolução da escrita em Orchideas” (Jubé, 1977, p. 38). No “Annuario Historico, Geographico e Descriptivo do Estado de Goyaz” de 1910 aparece apenas parte do poema “Símile”, annuario reeditado por Azevedo (1987, p. 218), nessa obra de 1910 há rápido elogio anacrônico à jovem Cora Coralina: “é a maior escriptora do nosso estado, apesar de ainda não ter 20 annos de edade” (AZEVEDO, 1987, p. 209). Assim seguem outras publicações clássicas da literatura em Goiás, como Coelho Vaz (Literatura goiana: síntese histórica), dentre outras tantas que se silenciam e silenciam Leodegária. Também em organizações literárias de Goiás (até femininas), bem como outros espaços que reinam telesianamente a literatura em Goiás: uma espécie de silêncio obsequioso do qual o feminino é alijado, e talvez nem percebem isso atualmente na AFLAG (Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás), ou quiçá, isso é naturalizado subservientemente. Questiono-me em 2023, por que não há um “Dicionário da Escritora Goiana”? Verbas existem. Além de chás e reuniões cobertas de neves há que se renovar e posicionar-se engajadamente pensando na dimensão presente-futuro do feminino literário goiano. Ainda deseja-se ver novas escritoras goianas representativas das identidades e camadas sociais nos espaços selecionados da AFLAG, da ABLGO e da UBE Goiás como continuidade da chama literária para o futuro goiano, ou seja, ver mulheres escritoras de diversas camadas sociais e identidades nas reuniões e publicações seria novos lírios e orquídeas para a vida socio-cultural-literária de Goiás. Aqui deixa-se um elogio a Darcy Denófrio (Lavras dos Goiases III) e a Basileu França (Poetisa Leodegária de Jesus), graças a ela e a ele temos duas importantes fortunas críticas leodegarianas.
[7] Cf. Arthur Schopenhauer em As Dores do Mundo (2013, p. 104): “A vida nunca é bela, só os quadros da vida são belos, quando o espelho da poesia os ilumina e os reflete, principalmente na mocidade, quando ignoramos ainda o que é viver. Apoderar-se da inspiração no seu voo e dar-lhe um corpo nos versos, tal é a obra da poesia lírica. E é, contudo, a humanidade inteira, nos seus íntimos arcanos, que reflete o verdadeiro poeta lírico; e todos os sentimentos que milhões de gerações passadas, presentes e futuras experimentaram e hão de experimentar nas mesmas circunstâncias que se reproduzirão sempre encontram na poesia a expressão viva e fiel… O poeta é homem, universal: tudo o que agitou o coração de um homem, tudo o que a natureza humana, em todas as circunstâncias pôde experimentar e produzir, tudo o que reside e fermenta num ser mortal – é esse o seu domínio que se estende a toda a natureza”.
[8] C.f. As Dores do Mundo (2013, p. 104): “É um fato deveras notável e realmente digno de atenção que o objeto de toda a alta poesia seja a representação do lado medonho da natureza humana, a dor sem nome, os tormentos dos homens, o triunfo da maldade, o domínio irônico do acaso, a queda irremediável do justo e do inocente: é este um sinal notável da constituição do mundo e da existência”.
[9] Existem palavras que são assoladas por uma deterioração semântica, algo que consequentemente, provoca um esvaziamento semântico, e entre elas estão, ética e mística. Por exemplo, entre usos, estão termos como “a mística da camisa do flamengo”, a mística do Maracanã”, a “ética dos desfiles das escolas de samba” e assim vai (VAZ, 2000, p. 9). Doravante, delineia-se o conceito de mística vaziana como aproximação necessária à poética leodegariana e suas devidas aplicações para a compreensão da intersecção entre aproximação-distância da poesia e do mistério.
[10] Djalma Guimarães teria se enamorado de outra moça, mais experiente, disso resultou um filho e a obrigação de casar, contudo, acabou não casando, e por fim, parou de estudar, trabalhar e se entregou à bebida, ficando ao chão nos batentes das portas e ruas da cidade. Durante a vida em Goyaz e Minas Gerais, Leodegária teve vários pedidos de casamento, mas os negou.
[11] Cf. CERTEAU, Michel de. La parole du croyant dans le langage de l’homme. In: Sprit, out. 1967, p. 455-473.