César Martins de Souza
Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Pará (UFPA). Contato: cesarmartinsouza@yahoo.com.br
Weverton Castro
Mestre em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Pará. Contato: weverton.castro@live.com
Resumo: No final do século XX começou a se construir um campo de pesquisa importante para os estudos sobre a Bíblia, no diálogo com a literatura. Apesar de desconfianças mútuas de teólogos e de críticos literários, o campo progressivamente mostrou sua relevância por trazer temáticas humanas e sociais importantes à análise, a partir do olhar de diferentes literatos. Personagens e narrativas presentes no livro sagrado dos cristãos e trazidos a cena em obras literárias, trazem diversas possibilidades de compreensão sobre dramas e desafios vivenciados nas experiências da humanidade em diferentes tempos e espaços. Assim, a intertextualidade marca presença nestes diálogos, assim como a abordagem sobre problemáticas que permitem vislumbrar novos campos de investigação para a Teoria Literária, Ciências da Religião, Teologia, História, Filosofia e outros campos do conhecimento. O presente artigo analisa como os estudos sobre a Bíblia e Literaturas se consolidam cada vez mais, investigando sobre diferentes obras brasileiras e universais, adentrando em temas importantes para pensar humanos e sociedades, o que mostra a relevância do desenvolvimento deste campo de estudos.
Palavras-chave: Bíblia; Literatura, Interdisciplinaridade; Cristianismo.
Abstract: At the end of the 20th century, an important field of research began to be built for studies on the Bible, in dialogue with literature. Despite mutual distrust among theologians and literary critics, the field progressively showed its relevance by bringing to analysis important human and social themes, from the perspective of different literati. Characters and narratives present in the holy book of Christians and brought to the scene in literary works, bring different possibilities of understanding about dramas and challenges experienced in the experiences of humanity in different times and spaces. Thus, intertextuality is present in these dialogues, as well as the approach to issues that allow us to glimpse new fields of investigation for Literary Theory, Religious Sciences, Theology, History, Philosophy and other fields of knowledge. This article analyzes how studies on the Bible and Literature are increasingly consolidated, investigating different Brazilian and universal works, delving into important themes for thinking about humans and societies, which shows the relevance of the development of this field of studies.
Keywords: Bible; Literature; Interdisciplinarity; Christianity
Os encontros entre a Bíblia e a literatura atravessaram diversos momentos históricos e de concepções teóricas, bem como a desconfiança mútua e até mesmo a recusa a algumas possibilidades de estudos. Muitos religiosos entendem como a negação da sacralidade da Bíblia o desenvolvimento de pesquisas que lançam olhares da crítica literária para compreender figuras de linguagem e até mesmo aspectos ontológicos e teológicos, ao analisar personagens e narrativas complexas e instigantes como o livro de Jó ou o relato da criação do mundo.
Ao mesmo tempo, a Bíblia é uma obra composta por dezenas de livros escritos ao longo de diferentes tempos e espaços, e é vista como o epicentro da narrativa sagrada cristã, provocando até hoje desconfiança em muitos estudiosos da literatura que não enxergam possibilidades de diálogos por entenderem que poderão cair em um algum tipo de processo proselitista ou pelas dificuldades em se afastar da religiosidade, para conseguir adentrar em aspectos hermenêuticos da construção literária (MANZATTO, 2021).
Literatos que se auto-identificam como cristãos, ateus ou de outras religiões e crenças, se debruçaram sobre a Bíblia, pois compreendem que a sua construção artística não está presa às suas próprias biografias, mas se expandem para outras possibilidades de diálogos com a realidade social. Suas obras, por outro ângulo, destacam a literariedade de personagens e narrativas bíblicas e o quanto são importantes para entender a complexidade, sobretudo das sociedades ocidentais, fortemente marcadas pelo pensamento cristão, para além das próprias experiências e crenças pessoais dos autores.
Sobre esse tema, Conceição (2013) defende que o autor não é escravo de sua biografia. A genialidade de um escritor repousa justamente sobre a capacidade do ineditismo, que pode desprender-se de suas experiências pessoais. Assim, a literalidade das declarações de um autor, “mesmo as palavras que saem da boca de suas personagens se entendidas como declarações do próprio autor, de pouco valem para as análises de temas complexos ou para a elucidação da dimensão criativa da expressão artística” (CONCEIÇÃO, 2013, p. 98). Brum (2009, p. 21) alerta que “não podemos misturar o homem com o autor, isto é, não se pode concluir uma posição pessoal a partir de um comentário de personagem, ainda que seja o criador de outro”.
Os estudos que relacionam a Bíblia com as narrativas literárias, mais do que uma nova possibilidade, se constituem um campo de estudo que permite enxergar personagens e narrativas por ângulos diversos e que nos conduzem para um outro olhar sobre campos muito presentes em nossas sociedades ocidentais, fortemente marcadas pelas crenças judaico-cristãs, o que em si mesmo torna relevantes os estudos de diferentes disciplinas sobre o livro sagrado do cristianismo: a Bíblia.
Assim, a proposta do presente texto é fazer um passeio teórico em um capítulo de revisão bibliográfica sobre a construção deste campo de estudo, problematizando embates e (des) encontros nos trabalhos sobre a Bíblia e a literatura, bem como sobre as novas alternativas de pesquisas que se desenham sobre um livro tão presente em muitas sociedades e que, por isso mesmo, impacta às vidas de mais de um bilhão pessoas em todo o planeta.
Alfonseca (2008, p. 291), ao analisar as obras literárias recheadas de temáticas de fantasia, considera que o cristianismo está presente mesmo em livros que não trazem personagens ou narrativas bíblicas, pois tendo a liberdade para criar metáforas e alegorias possibilitam aprofundar temáticas próprias da Bíblia, criando novos espaços de interlocução entre diferentes campos do conhecimento e trazendo uma multiplicidade de novos estudos que envolvem várias disciplinas. O autor propõe romper com os muros da separação que isolam o sagrado do não sagrado para que se possa compreender temáticas e linguagens da Bíblia e da literatura em sua profundidade intertextual.
Nesse sentido, podemos destacar o Guia literário da Bíblia, editado por dois importantes críticos literários, o inglês Frank Kermode, e o norte-americano Robert Alter. A obra, publicada pela Editora da UNESP, em 1997, traz uma análise de cada livro bíblico a partir da perspectiva literária, e, sem dúvida, é uma obra de referência em português, que aponta a possibilidade de novos olhares sobre o principal livro sagrado dos cristãos. O livro é introduzido explicitando seu objetivo de apresentar “uma nova concepção da Bíblia como obra de grande força e autoridade literária” (ALTER; KERMODE, 1997, p. 12). É notável a preocupação inicial:
Tampouco se deve pensar que descuidamos do caráter religioso do material em discussão simplesmente porque nossas finalidades não são teológicas e não estão relacionadas, no sentido comum, à edificação espiritual. Na verdade acreditamos que os leitores que veem a Bíblia primeiramente à luz da fé religiosa podem encontrar aqui instrução juntamente com aqueles que desejam compreender seu lugar em uma cultura secularizada (ALTER; KERMODE, 1997, p. 12).
A ressalva feita pelos editores revela a tensão que gira em torno da Bíblia por ela ser um livro considerado sagrado, mas que faz parte de um mundo literário e acadêmico. Diante desta tensão, brota a intolerância, como parte de um processo de não abertura para a compreensão de um outro universo cosmológico ou de campo do conhecimento. De um lado se ergue a teologia, armada com sua apologética, muitas vezes marcada pela tentativa de separar a forma “correta”, da maneira “errada” de se entender os textos bíblicos, criando diretrizes para se identificar as “heresias” ou manifestações de falta de entendimento. Da mesma forma, a crítica literária moderna, em muitos casos, incorre no risco de menosprezar a tradição religiosa em torno da Bíblia e assim rejeitar toda uma riqueza de narrativas importantes para a análise e reflexão sobre práticas importantes, principalmente para as sociedades ocidentais.
Diante dos cruzamentos textuais, onde o presente encara o passado, Ferraz apresenta uma interessante metáfora do caleidoscópio, “na qual textos se misturam a outros textos oriundos de mil lugares e culturas diferentes”. Nesse caleidoscópio “a tradição é retomada, exaltada, relativizada e, por vezes, até negada.” (FERRAZ, 2013, p. 113). A autora ressalta ainda que as múltiplas possibilidades de análise, também perpassam pela recriação de narrativas bíblicas em diversas narrativas literárias que atravessam temporalidades e períodos teóricos:
E nossos escritores aqui citados... fazem o papel de Peixe mil bocas, mergulham na tapeçaria líquida do grande mar de História que é a Bíblia, trituram o antigo e apresentam com uma maravilhosa roupagem, assinam as suas bem ou aventuranças, demonstrando que não há nada de novo debaixo da terra, mas que suas obras são reescrituras de obras do passado, com a assinatura do gênio (FERRAZ, 2013, p. 125).
A pluralidade de abordagens exige que a liberdade seja usada como espaço onde todos podem apresentar seu olhar, o qual, provavelmente, poderá contrariar o ângulo visto por outros observadores. Neste cenário, a Bíblia, como texto, será lida e abordada de diferentes formas, gerando incômodo nos indivíduos, organizações e setores que se julguem proprietários de suas interpretações. Porém, vale a ressalva de Ferraz, a qual defende que “o texto não é de ninguém e é de todos” (FERRAZ, 2013, p. 123), por isso as possibilidades de análises e interpretações em diferentes campos do conhecimento, permanecem em aberto, evocando permanentemente o desenvolvimento de novos estudos.
É uma abordagem mais próxima de Alfonseca (2008, p. 291-292) que enxerga na literatura um campo aberto de possibilidades para olhar o universo do cristianismo a partir de metáforas, diálogos metafísicos, sistemas de organização social, narrativa e códigos éticos, para além de abordagens doutrinárias que se detenham nas visões de alguns segmentos. No mesmo sentido que analisado ao longo deste texto, a rígida separação entre a Bíblia e literatura levaria a impossibilidade de olhar para o texto por diferentes ângulos que permitam a reflexão e a compreensão.
Segundo Moisés, tais relações não são novas e sempre estiverem presentes na atividade literária, não apenas no universo das pesquisas realizadas neste campo, como até mesmo do dos leitores:
Em todos os tempos, o texto literário surgiu relacionado com outros textos anteriores ou contemporâneos, a literatura sempre nasceu da e na literatura. Basta lembrar as relações temáticas e formais de inúmeras grandes obras do passado com a Bíblia, com os textos greco-latinos, com as obras literárias imediatamente anteriores, que lhes serviam de modelo estrutural e de fonte de “citações”, personagens e situações (A Divina Comédia, Os Lusíadas, Dom Quixote etc)... (MOISÉS, 1978, p. 59).
A observação que Moisés faz sobre as relações entre textos, coloca diante de nós uma profundidade analítica nos estudos sobrea Bíblia e literatura. Alfonseca (2008, p. 290-291) analisa que no presente século houve significativos avanços nos estudos sobre o tema, os quais têm rompido com as dicotomias até então existentes.
O adjetivo sagrado, em sua etimologia hebraica, traz o sentido de “separado”. A separação dos textos sagrados cria, em contrapartida, um universo considerado não sacro, o que também pode abrir margem para a construção de visões estereotipadas em relação à intertextualidade entre obras literárias e a Bíblia.
Segundo Lima (2015, p. 154), os indivíduos que definem a Bíblia como uma obra marcada por elementos próprios da literatura “geralmente são críticos literários seculares que precisam romper alguns preconceitos para que definitivamente incluam-na entre as obras clássicas que frequentemente avaliam, obra que merece ser lida e estudada independentemente de sua importância religiosa”. Assim, Lima destaca que tanto nos estudos literários quanto na teologia, é necessário romper preconceitos para que se possa avançar nas possibilidades de leitura e compreensão das narrativas bíblicas.
Talvez uma abordagem que não soube equalizar o estudo acadêmico da Bíblia levando em consideração seu valor literário é o método histórico-crítico. Tal metodologia, em sua abordagem racional, classificou a Bíblia como um registro histórico, caracterizado por distorções, afastando a atenção de seus aspectos religiosos, narrativos, poéticos e literários. Nesse período, uma abordagem clássica era procurar nos livros bíblicos a existência de obras históricas que os precederam.
A título de exemplo, podemos citar a Teorias das Fontes desenvolvida por Julius Wellhausen (2003), o qual defendia que os cinco primeiros livros da Bíblia, conhecidos também como Pentateuco, seriam resultado de uma composição de diversos autores, e não somente de Moisés, tido como o autor das obras pela tradição judaico-cristã.
Segundo a proposta de Wellhausen, os escritos primários da Bíblia seriam compostos por pelo menos quatro fontes principais, a saber: Eloísta, Javista, Sacerdotal e Deuteronomista. Abordagens semelhantes às de Wellhausen foram feitas em estudos de praticamente todos os livros da Bíblia, motivados pelo senso histórico de descobrir como essas obras chegaram até nós.
Porém, a abordagem histórico-crítica trouxe efeitos colaterais para os estudos literários da Bíblia, ao reduzir os textos bíblicos a mero ecos de textos anteriores a eles, dirigindo assim o foco para os textos que não se encontravam disponíveis para a pesquisa ao invés de nos aprofundar nos que estavam em nossa frente. O olhar se desviou da Bíblia e voltou-se para os documentos que deram origem a ela, os supostos textos “originais”.
Rudolf Bultman (1999), declarava que o Novo Testamento apresentava um Jesus envolto por mitos oriundos do pensamento pré-científico da cultura do primeiro século. Segundo ele, esses mitos não teriam mais validade para o homem do século XX e por isso, para se transmitir o evangelho com eficiência no contexto moderno, era necessário retirar a mitologia do Novo Testamento a fim de se encontrar o Evangelho histórico (kerigma).
A teoria de Bultman, denominada por ele de demitologização, foi para os textos do Novo Testamento, o que a teoria documentária de Wellhausen foi para o Antigo Testamento. Bultman lançou descrédito sobre os textos bíblicos ao reduzir a importância dos elementos classificados por ele como míticos e fantasiosos, buscando resgatar um texto “primário” que se perdera ao longo do tempo. Assim, a Bíblia era vista como uma impostora que havia tomado o lugar de textos de real valor. “Contudo, permanecia o fato de os textos bíblicos serem valorizados menos pelo que realmente eram, do que pelo que nos diziam sobre outros supostos textos ou eventos aos quais não havia acesso direto” (ALTER; KERMODE, 1997, p. 14).
Visões como as de Bultman e Wellhausen trouxeram ainda mais dificuldades para o desenvolvimento de pesquisas interdisciplinares sobre os textos bíblicos, pois contribuiu para intensificar as barreiras temáticas, bem como um cenário de desconfianças e preconceitos que se desenvolveram nos diferentes campos, como o teológico e a teoria literária.
Em seus estudos sobre textos bíblicos ou na sua intertextualidade com obras literárias, Conceição (2013) eleva a análise literária, ao declará-la como espaço autônomo para a produção de reflexões teológicas. A partir das reflexões de Conceição é possível então concluir que mesmo frente às críticas e problematizações que muitos estudos literários e obras fazem da religião tradicional, não significa a ausência de construções teológicas sobre os escombros deixados. Até mesmo na crítica existe uma relação de dívida e de entrelaçamento ao que se pretende negar.
Enquanto a pluralidade de textos e os elementos chamados de míticos e fantasiosos, presente nos textos bíblicos, eram usados pelos teóricos crítico-históricos, como Bultman (1999) para diminuir seu valor, através dos estudos literários eles foram resgatados e (re)valorizados. A Bíblia tomada como obra literária “é lida em sua pluralidade de narrativas”, a partir do pressuposto que “a Bíblia é rica e plural” (MAGALHÃES, 2008, p. 14). Aliás, no campo literário, Genette (2010), destaca que a premissa básica é que nenhum texto é formado sem a dívida à textos anteriores, e que este pressuposto fundamental para os estudos literários, não torna as obras menos importantes.
Um autor que conseguiu chamar atenção para os aspectos literários da Bíblia foi Jack Miles, que acumula o conhecimento técnico tanto da Teologia Clássica quanto da Crítica Literária. Jornalista premiado e integrante do corpo editorial de Los Angeles, ele também carrega em seu currículo uma extensa formação teológica. Graduado em Teologia na Universidade Gregoriana, de Roma e na Universidade Hebraica, de Jerusalém e com doutorado em línguas do Oriente Próximo antigo, na Universidade Harvard. Como resultado de sua erudição versátil, Miles escreveu o livro Deus, uma biografia, com o ousado objetivo de apresentar a Bíblia como uma obra literária, na qual, o personagem central não é o homem, a criatura, mas Deus (MILES, 1997, 15).
Sua premissa é que o personagem Deus passa por uma espécie de evolução ao longo do enredo progressivo dos livros bíblicos. Usando a sequência de livros disposto na Tanach, cânon judaico, a obra descreve Deus sob uma ótica diferente da apresentada pela teologia clássica. O Deus de Miles não é onisciente, antes, ele é descrito em uma jornada de autoconhecimento. Ao defender uma progressão no desenvolvimento do amor de Deus, Miles começa com um Deus solitário na eternidade, que ao longo da criação aprende a amar suas criaturas. Segundo ele, “não é exagero dizer que, a julgar pelo texto inteiro da Bíblia desde o Gênesis 1 até Isaías 39, O senhor não sabe o que é o amor” (MILES, 1997, p. 270).
O livro de Miles foi alvo de críticas por parte de exegetas biblistas, que alegaram a violação de diversos princípios da teologia reformada[1]. Porém, independentemente das críticas apresentadas a Miles, é notável a forma com que ele valoriza o texto bíblico através da ótica da literatura. Embora ele reconheça a existência de obras anteriores ao texto bíblico, Miles não as coloca no centro de sua reflexão (como se fazia na perspectiva histórico-crítica), pelo contrário, o estudo de Deus é construído exclusivamente a partir do conjunto de textos que se encontram dentro da Bíblia. Assim, independentemente das convicções teológicas defendidas por Miles, sua obra merece destaque, mesmo pela Teologia clássica, ao valorizar o estudo de personagens bíblicos a partir do próprio texto bíblico.
O teórico-literário canadense Northrop Frye (2004), é o autor do livro traduzido para o Brasil com o título "O código dos códigos: a Bíblia e a literatura". Na introdução da obra ele deixa bem explícito que seu objetivo é “estudar a Bíblia do ponto de vista de um crítico literário” e não é “um trabalho de erudição bíblica, muito menos de teologia”. Frye define a obra como “expressão de um encontro pessoal com a Bíblia” (FRYE, 2004, p. 9). A partir da introdução de sua obra, Frye nos leva a reflexão: como a Bíblia seria lida por alguém que não conhecesse toda a gama de ideologias e dogmas que se opõem às interpretações consideradas heréticas por muitos religiosos cristãos.
Talvez, o resultado seria semelhante à leitura de Frye: a Bíblia é um livro que conta histórias, com diversos personagens intrigantes e temas interessantes. Por isso, não é surpresa que a Bíblia possa ser analisada sob a ótica de uma obra literária, pois, nas palavras de Frye, “nenhum livro poderia ter uma influência literária tão pertinaz sem possuir, ele próprio, características de obra literária” (FRYE, 2004, p. 14).
A abordagem de Frye contraria o método crítico-histórico. Ao passo que teólogos clássicos se detinham em fatiar os livros bíblicos, enfatizando a falta de unidade entre as partes, Frye admite que a Bíblia é uma coleção de pequenos livros. Porém, existe uma estrutura unificante em toda ela.
Aqueles que conseguirem ler a Bíblia do começo ao fim descobrirão pelo menos que ela tem um começo e um fim – e resquícios de uma estrutura completa. Ela começa com o começo do tempo, na criação do mundo; e termina com o término do tempo, no Apocalipse. No meio do caminho ela resenha a história humana, ou o aspecto da história que lhe interessa, sob os nomes simbólicos de Adão e Israel. Há também um corpo de imagens concretas: cidade, montanha, rio, jardim, árvore, óleo, fonte, pão, vinho, noiva, carneiro e muitas outras. Elas são tão recorrentes que indicam claramente a existência de um princípio unificador (FRYE, 2004, p. 11).
Frye enfatiza a forma unificada da Bíblia, visto que tal visão é importante para a análise literária pois “nenhum livro pode ter um significado coerente se não possuir alguma coerência em sua forma” (FRYE, 2004, p. 11). O autor desfere um golpe em direção à erudição bíblica da crítica textual, a qual, segundo ele, fez muito barulho no século XIX prometendo uma crítica “superior” dos textos bíblicos, porém, “a maior parte daquela erudição enterrou-se numa crítica de porão onde desintegrar o texto virou um fim em si mesmo” (FRYE, 2004, p. 16).
Diante dos argumentos de Frye, poderíamos questionar se a literatura, contrariando os prognósticos de teólogos conservadores, seria um espaço onde a Bíblia, como texto, é elevada? O racionalismo moderno tentou extirpar o religioso do meio científico e, como consequência, o valor da Bíblia na literatura. Contudo, cabe ressaltar que nunca houve um período no qual a religião ou a Bíblia desapareceram das sociedades em que já haviam se afirmado. O que os novos estudos trouxeram foi o reconhecimento da Bíblia como obra literária relevante e influente sobre outras literaturas no contexto ocidental.
Saindo do contexto religioso cristão, diversas outras obras literárias não religiosas tomaram emprestados temas e personagens bíblicos para construir novas tramas. Sua influência pode ser notada em grandes clássicos como Salomé, de Oscar Wilde, O diário de Adão e Eva, de Mark Twain; A divina comédia, de Dante Alighieri, Moby Dick, de Herman Melville, ou nas obras de José Saramago, escritor português que ganhou o prêmio Nobel em Literatura (1998), autor de O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) e Caim (2009). Esse último livro, publicado um ano antes de sua morte, foi alvo dos estudos de Laura Ximenes, que em seu trabalho intitulado Palimpsestos bíblicos em Caim, de José Saramago, analisa como o autor resgata temas e personagens bíblicos como Adão, Eva, Caim, Abel, Abraão, Isaque, Torre de Babel, Moisés, Sodoma, Gomorra, o Dilúvio e a Arca de Noé (XIMENES, 2016, p. 277).
No Brasil, a Bíblia também está presente em diversas obras literárias. Discutindo como os textos literários se configuram por meio de intercâmbio com diversas formulações oriundas da cultura, Eliene Medeiros da Costa (2012) analisa, em seu trabalho, Palimpsestos Bíblicos em Sombra Severa, de Raimundo Carrero, como os personagens da obra de Carrero, denominados Judas e Abel, fazem referência à história de Caim e Abel, do livro de Gênesis, do Antigo Testamento, e Judas e Jesus, do Novo Testamento. Para a autora, esta variedade encontrada na Literatura é o que faz dela uma representação artística tão rica. “E, dentre as suas variedades, intercâmbios e relações, destacamos aquela que se faz presente entre Literatura e a Bíblia, que se constitui numa das interfaces mais ricas da Literatura” (COSTA, 2012, p. 27).
Judas, personagem apontado pelos Evangelhos como o traidor do filho de Deus, está presente em diversas obras literárias: Judas, de Aristides Ávila; O Judas em Sábado de Aleluia, de Martins Pena; Uma história de Judas, de João Alphonsus; O livro de Judas, de Assis Brasil; Malhação do Judas Carioca, de João Antônio; Judas Iscariotes, de Carlos Nejar e Judas e a irmã de Jesus, de José Fernandes. Sobre este personagem, a pesquisadora Késsia Rodrigues de Oliveira (2016) desenvolveu um interessante trabalho intitulado Sob o signo de Judas: reescritas literárias da traição, onde é enfatizado a forma com que Judas se tornou uma metáfora explorada pela literatura, ora se aproximando da narrativa bíblica, ora se afastando de tal forma, que ele aparece em certos lugares como o discípulo mais sábio e mais amado:
Os escritores retomam uma tradição religiosa e apontam, simultaneamente, para outros desdobramentos da história do discípulo pela ficção. Suas narrativas se configuram como versões profanas da história bíblica que são, às vezes, similares ou transgressoras, a ponto de colocar em xeque a própria noção de original, porque, calcadas no texto bíblico, elas podem, muitas vezes, confundir o leitor desavisado que for buscar, na ficção, o texto religioso (OLIVEIRA, 2016, p. 24).
As transformações feitas com os livros da Bíblia levam Oliveira a classificá-la como uma obra aberta, possibilitando novos desdobramentos. No caso de Judas, os Evangelhos canônicos se tornam o ponto de partida, mas ao longo da jornada o personagem é desconstruído e reconstruído em novas formas.
Outra obra de grande repercussão sobre o controverso personagem que se consolidou para além do imaginário cristão, como a representação da ideia de traição é Judas, de Amós OZ, um reconhecido escritor, de origem judaica, nascido em Jerusalém, que recria em sua narrativa o universo cristão sobre as contradições e complexidades do, provavelmente, mais controverso discípulo de Jesus. Ele não se detém na traição ou mesmo na narrativa bíblica sobre Judas, mas ambienta seu romance no pós-Segunda Guerra, para trazer os desafios criados à compreensão da realidade, bem como investigar sobre um personagem que se cristalizou para muito além de seu tempo, como o próprio mito da traição, da negação do bem, do abandono, da rejeição aos valores éticos e no cerne do sacrifício da figura central do cristianismo: Jesus Cristo.
Assim, na fala do protagonista de sua obra, Shmuel, jovem estudante, que desenvolvia pesquisas em Jerusalém sobre as visões dos judeus a respeito de Jesus, a figura de Judas Iscariotes parecia ser a síntese da vil traição e da baixeza ético-moral:
Os judeus quase nunca falavam sobre Judas. Em lugar algum. Nenhuma palavra. Tampouco quando ridicularizavam a crucificação e a ressurreição que aconteceu, segundo os evangelhos, ao cabo de três dias. Os judeus de todas as gerações, mesmo os que escreveram palavras de contestação ao cristianismo, tinham muito medo de Judas.
(…) Tinham vergonha dele. Ignoravam-no. Talvez tivessem medo de conjurar um fantasma, a lembrança do homem para cuja figura haviam se canalizado rios e rios de ódio e aversão durante oitenta gerações. Não provoquem, não despertem. Shmuel lembrava-se muito bem da figura de Judas em alguns quadros famosos da Última Ceia: uma criatura retorcida e asquerosa sentada como um verme na extremidade de uma mesa… (OZ, 2014, p. 220)
A figura de Judas se consolida não apenas entre cristãos, mas no universo literário e em diferentes sociedades, como alguém sobre o qual se deve silenciar e a quem são atribuídos diversos adjetivos representativos, como vil, torpe, asqueroso, para se destacar muito além da traição a Cristo, a própria negação do bem, da amizade e da ética.
Além dos autores citados, o peso das narrativas marcadas pela traição,uma temática com forte presença no imaginário cristão, trazem uma intertextualidade com o personagem Judas, o qual passou a sintetizar a metáfora da traição, mesmo quando não é diretamente mencionado, como ocorre em obras de escritores brasileiros, como Dom Casmurro, de Machado de Assis (1899). Neste livro, consolidado como um dos maiores clássicos da literatura brasileira, a narrativa atinge seu ápice na possibilidade de infidelidade conjugal de Capitu com Escobar, amigo de seu marido, Bentinho. Em Escobar, o homem que poderia ter se envolvido com a esposa de seu amigo, há um marcante discurso religioso e uma intertextualidade com Judas, pois mais forte do que a infidelidade conjugal viria a ser a traição ao amigo que o recebe no interior de seu lar. Pelo fato de a infidelidade conjugal de Capitu não ser confirmada e nem negada ao longo da obra, ao mesmo em que se explora as excessivas preocupações de Bentinho neste sentido, esse tema ficou conhecido nos estudos literários como “o enigma de Capitu”.
Dentre os escritores brasileiros, um nome que se ergue como um gigante das letras é o de Joaquim Maria Machado de Assis. Seus livros têm sido alvo de intensas análises, dentre as quais, um crescente número de estudiosos tem se dedicado ao estudo da interface religiosa nas obras machadianas.
Fernando Brum, também reconhece a presença de temas religiosos em Machado de Assis. Em seu trabalho Literatura e Religião: estudo de referências religiosas na obra de Machado de Assis Brum enfatiza como o contexto religioso do autor Machado de Assis aparece em suas obras:
Machado deu provas de conhecer a fundo cada um dos mecanismos presentes na religião – em especial a católica – e fazê-los falar na sua obra. Seus contos e romances estão repletos de padres e ritos, mas, mais que isso, estão cheios, direta e indiretamente, também de passagens bíblicas, imagens da tradição católica e personagens dessa tradição e, ainda, símbolos que se identificam com o pensamento cristão (BRUM, 2009, p. 16).
A importância da Bíblia para a confecção de temas e personagens na obra de Machado de Assis não é diminuída por Bressane, mesmo quando este dedica na parte final de seu livro uma nota mais negativa para o conhecimento que o autor tinha dos textos bíblicos. Contudo, na concepção de Brum (2009), Machado de Assis era conhecedor das personagens e narrativas bíblicas, assim como das tradições católicas:
Machado deu provas de conhecer a fundo cada um dos mecanismos presentes na religião – em especial a católica – e fazê-los falar na sua obra. Seus contos e romances estão repletos de padres e ritos, mas, mais que isso, estão cheios, direta e indiretamente, também de passagens bíblicas, imagens da tradição católica e personagens dessa tradição e, ainda, símbolos que se identificam com o pensamento cristão. (BRUM, 2009, p. 16)
A incorporação da religião e de temáticas próprias do cristianismo nas obras machadianas é um ato que atravessa diversas de suas obras, se constituindo em um elemento de relevância para os estudos sobre as interfaces entre a literatura e a Bíblia, pois, como afirma Brum, em seus textos o escritor:
Exprimiu estados de alma, figurou situações religiosas, entrou nas crendices populares, criticou algumas práticas espirituais, mas, acima de tudo, representou o ser humano na sua profundidade e nas suas mais diversas nuances. É tarefa da crítica não deixar esse manancial de informação bruta, de possibilidade interpretativa, desperdiçado por conta de um desinteresse ou desconhecimento na matéria religiosa. (BRUM, 2009, p. 20)
Segundo Brum, é a partir deste contexto religioso que Machado vai construir suas obras, trazendo para dentro delas estas realidades, de forma direta ou indireta, utilizando a religião diversas vezes como metáfora para realidades políticas e econômicas. Assim, “e não somente por que formou a sua expressão intelectual, mas também porque acabou formando o contexto representado nos seus livros é que o fenômeno religioso ganha importância” (BRUM, 2009, p. 19).
Obras como a de Amós Oz, Machado de Assis e outros escritores referidos no presente texto, explicitam a relevância acadêmica dos estudos que se dedicam a compreender a presença de temas bíblicos na literatura, assim como da Bíblia enquanto uma obra de literatura. É um campo de pesquisas que ainda enfrenta desconfianças de lado a lado, mas que vem se ampliando progressivamente, como a participação de diversos pesquisadores e grupos de pesquisa no Brasil e no mundo.
O termo teologia, como bem declararam Libanio e Murad (1996), passou por diversas transformações ao longo da história. No Ocidente o termo se vinculou fundamentalmente à tradição bíblico-cristã. Porém, o termo remonta ao contexto grego clássico, no qual os teatros reservavam um lugar para os deuses chamado “theologeion”, o qual apontava para o ato de discursar sobre os deuses.
“Na teologia latina cristã antiga, o termo ‘teologia’ conservou o significado grego de estudo dos deuses, ciência dos deuses” (LIBANIO; MURAD, 1996, p. 57). Assim, por teologia entendemos a concepção que cada religião tem sobre a divindade. Esta concepção se traduzirá em doutrinas, as quais são a sistematização das crenças que compõem todo o conjunto da cosmovisão religiosa. No contexto cristão, o livro base, no qual as doutrinas se baseiam, é a Bíblia.
Na tentativa de mostrarmos a Bíblia presente na literatura, é impossível não nos esbarrarmos em concepções teológicas que acompanham o texto. Dessa forma, na literatura lemos não apenas o texto bíblico como uma entidade esterilizada, mas uma tradição teológica que o acompanha. Seus personagens, histórias, tramas e temas são acompanhados por interpretações teológicas advindas, geralmente de instituições religiosas hegemônicas. Nisto, não queremos afirmar que tal fenômeno é uma regra, sem suas eventuais exceções. Cabe ressaltar que o literato pode fugir da interpretação teológica corrente, criando assim, o que podemos chamar de uma espécie de nova teologia a partir da ótica da literatura secular. Porém, mesmo novas interpretações podem resgatar, ainda que para contradizer, tradições teológicas correntes no seio da religião.
Entre o sagrado e o não sagrado do universo acadêmico, várias leituras tentam limitar a compreensão de textos bíblicos ao campo teológico ou ao campo literário, perdendo diversos ângulos possíveis para a compreensão das narrativas. Em obras literárias de diversos autores consagrados da literatura brasileira e universal, como Amós Oz, Fiódor Dostoiévski, Machado de Assis, Liev Tolstói, José Saramago e Cecília Meireles, personagens e temas bíblicos surgem como ideias, representações, metáforas, sínteses de visões, demonstrando a importância de interlocução em pesquisas sobre o tema.
No estudo que Oliveira (2016) desenvolveu sobre o personagem Judas, é interessante notar como o personagem bíblico é trazido à baila, juntamente com toda a interpretação histórica que o mesmo recebeu da teologia cristã. Desta forma, temos a Bíblia presente na literatura, porém, para além do simples texto bíblico, encontramos rastros de diversas interpretações dadas ao personagem encontradas no seio do cristianismo. A autora avança, apresentando novos olhares sobre o personagem, se distanciando da teologia clássica, evidenciando a liberdade que a literatura tem ao tratar de temas dogmáticos da teologia.
Em seu texto A Bíblia na Crítica Literária, Antônio Magalhães amplia este debate entre Teologia e Literatura ao problematizar as diferenças e dificuldades enfrentadas por muitos teólogos e também por críticos literários:
O problema é que temos uma exigência nem sempre atendida, redundando em oposições estranhas à própria Bíblia. Por um lado, os teólogos querem explorar conteúdo. Do outro, os críticos literários não se preocupam com os temas e conteúdos e muito rapidamente encapsulam o texto em formas e estruturas narrativas, reprimindo os temas que não seriam importantes para o debate teórico, com destaque para o tema da religião, ainda ausente em muitas críticas literárias (MAGALHÃES, 2015, p. 135).
Magalhães considera ainda que:
O primeiro motivo é que a Bíblia foi vista, por alguns, como livro da instituição religiosa e não como livro da cultura e de processos civilizatórios complexos. Nesta pré-compreensão teológica ou confessional dos textos, como se ali fosse seu único reduto hermenêutico permitido, encontramos um dos principais fatores que obstaculizam o grande trabalho de crítica e teoria literária sobre o papel da Bíblia no desenvolvimento da literatura ocidental. Esta dificuldade existe de ambos os lados, seja pelos que se consideram guardiões da Bíblia como livro sagrado e inspirado, seja pelos que se consideram defensores de uma crítica literária que não reconhece o tema da religião como constitutivo e estruturante de parte da literatura ocidental. (MAGALHÃES, 2008, p. 16)
Segundo Magalhães, a literatura coloca os textos bíblicos sob novos olhares, os quais, geralmente, se distanciam dos pressupostos teológicos confessionais. Enquanto que estes usam a Bíblia “para a confirmação de determinadas crenças da religião”, as hermenêuticas literárias a abordam a partir de sua pluralidade. Para o autor, as pessoas que leem a Bíblia somente com a visão teológica ou de suas confissões não se abrem para o reconhecimento da variedade existente no texto bíblico por priorizar o olhar doutrinário e unívoco, não a polissemia e oscilação das personagens e das tramas. Porém, Magalhães também alerta os críticos literários que evitam o tema da religião por acharem que isso significa a perda ou comprometimento da obra literária.
O autor questiona inclusive a ideia de pertencimento da Bíblia à instituições religiosas, que muitas vezes exigem leituras que partam tão somente de suas próprias visões, deslegitimando outras possibilidades e também considerando como algo próximo a uma heresia dessacralizadora qualquer possibilidade de análise que não traga como componentes as visões cristãs, em geral vinculadas às igrejas, sobre a compreensão dos textos bíblicos.
Ainda persistem muitos preconceitos em alguns universos acadêmicos que afastam ou impedem os estudos sobre textos bíblicos, pôr os considerarem como uma espécie de proselitismo, ignorando que as sociedades ocidentais são fortemente marcadas por concepções judaico-cristãs da realidade, o que em si justificaria as pesquisas neste campo, devido a abertura para um mergulho na interpretação de diversos fenômenos sociais.
Estas visões acabam por limitar tanto as diferentes pesquisas sobre a Bíblia no campo da análise literária, quanto a investigação teológica, pois não se parte além de olhares já consolidados, geralmente por tradições acadêmicas ou religiosas, se atendo somente a visões limitantes da compreensão de um livro que, para além do campo sagrado, traz metáforas e outras figuras de linguagem como parte indissociável da escrita-leitura, por se tratar de textos elaborados em diferentes contextos históricos e culturais.
Mas o afastamento entre os campos teológico e literário nos estudos sobre a Bíblia podem levar a perda de oportunidades de compreensão deste conjunto de livros que, mesmo sendo considerado sagrado pelo cristianismo e em parte dele pelo judaísmo, é composto por narrativas que passeiam entre a oralidade, história, tradições, práticas culturais e palavras escritas, levando a uma complexa rede de possibilidades analíticas que podem passar por diferentes disciplinas e áreas de conhecimento.
A consolidação de um campo de estudos interdisciplinar sobre as inter-relações entre Bíblia e literatura, assim como cristianismo na literatura, abre diversas possibilidades de pesquisas que podem compreender personagens e narrativas presentes no livro sagrado dos cristãos. Os estudos trazem temáticas fundamentais para compreender as sociedades humanas, sobretudo ocidentais, fortemente marcadas pelas crenças e narrativas cristãs, mesmo entre os não praticantes ou não adeptos.
Amor, ódio, momentos históricos, personagens sagrados, leis divinas, aspectos sobrenaturais, valores ético-morais, gênero, religiosidade, e na diversidade de outros temas têm sido explorados pela literatura, e também por pesquisadores e pesquisadoras que se dedicam ao estudo de obras de literatura brasileira e universal em diálogos com o cristianismo.
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[1] Sobre o tema, consultar o texto de Caldas Filho (2002).