A construção de uma proposta de espiritualidade sensível-libertadora a partir de José Tolentino Mendonça e Gustavo Gutiérrez

The construction of a sensitive-liberating spirituality proposal based on José Tolentino Mendonça and Gustavo Gutiérrez

José Antônio Boareto
Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Contato: zeantonioboareto@gmail.com

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Resumo: Estamos vivendo uma mudança epocal, cujos efeitos se fazem sentir em todos os âmbitos, inclusive na espiritualidade. O atual sistema econômico neoliberal reforça uma cultura narcísica que se revela indiferente com a terra e os pobres. Esta realidade é objeto da reflexão teológica. Neste sentido, perguntamo-nos sobre a possibilidade de uma espiritualidade que esteja aberta a crentes e não crentes, e que colabore com a educação da consciência no cuidado da Casa Comum. A atual crise socioambiental precisa ser entendida a partir da dialética sensibilidade e libertação. O sensível é necessário para a empatia, enquanto a libertação, o processo histórico das lutas, para a solidariedade. A teopoética de José Tolentino Mendonça e a espiritualidade da libertação de Gustavo Gutiérrez oferecem a possibilidade de uma espiritualidade aberta a todos numa ética da responsabilidade do cuidado com o planeta, e em particular, a alteridade, considerando o outro, o excluído, referido enquanto sujeito do próprio movimento libertador. Uma consciência sensível-libertadora compreende a espiritualidade como aventura coletiva, participa do movimento das lutas por libertação e compromete-se com o mundo politicamente. 

Palavras-chave: Espiritualidade, Ética, Teopoética, Teologia da Libertação.

Abstract: We are experiencing an epochal change, the effects of which are felt in all areas, including spirituality. The current neoliberal economic system reinforces a narcissistic culture indifferent to the land and the poor. This reality is the object of theological reflection. In this sense, we ask ourselves about the possibility of a spirituality that is open to believers and non-believers and that collaborates with the education of conscience in the care of our Common Home. The current socio-environmental crisis needs to be understood from the perspective of sensitivity and liberation. The sensitivity is necessary for empathy, while liberation, the historical process of struggles, for solidarity. The theopoetics of José Tolentino Mendonça and the spirituality of liberation by Gustavo Gutiérrez offer the possibility of spirituality open to all in an ethic of responsibility for caring for the planet, and in particular, otherness, considering the other, the excluded, referred to as a subject of the liberation movement itself. A sensitive-liberating conscience understands spirituality as a collective adventure, participates in the movement of struggles for liberation, and commits itself to the world politically.

Keywords: Spirituality, Ethics, Theopoetics, Liberation Theology.

Introdução

O Magistério Pontifício Católico Romano atual tem apontado para a emergência de uma educação e espiritualidade ecológicas que possibilitem uma nova consciência de origem comum, recíproca pertença e futuro partilhado por todos. Na encíclica social “Laudato Si”, o Papa Francisco afirma: “Esta consciência basilar permitiria o desenvolvimento de novas convicções, atitude e estilo de vida” (FRANCISCO, 2015, p. 155). O Papa Francisco reconhece que vivemos numa situação de precariedade e insegurança que favorece formas de egoísmo coletivo. Diz: “Quando as pessoas se tornam autorreferenciais e se isolam na própria consciência, aumentam a sua voracidade: quanto mais vazio está o coração da pessoa, tanto mais necessita de objetos para comprar, possuir e consumir” (Ibid, p.156).

O Papa demonstra otimismo e afirma: 

Mas nem tudo está perdido, porque os seres humanos, capazes de tocar o fundo da degradação, podem também superar-se, voltar a escolher o bem e regenerar-se, para além de qualquer condicionalismo psicológico e social que lhe seja imposto (Ibid, p.157). 

O Papa está convicto que uma mudança nos estilos de vida poderia chegar a exercer uma pressão salutar sobre quantos detêm o poder político, econômico e social. Ele acredita que seja possível desenvolver uma nova capacidade de sair do mesmo rumo ao outro. Ensina o Papa: 

A atitude basilar de se auto-transcender, rompendo com a consciência isolada e a auto-referencialidade, é a raiz que possibilita todo o cuidado dos outros e do meio-ambiente; e faz brotar a reação moral de ter em conta o impacto que possa provocar cada ação e decisão pessoal fora de si mesmo (Ibid, p.158-159).

Diante das tendências culturais que supervalorizam tal perspectiva narcisista indiferente, faz-se necessário a afirmação de uma consciência social que nos ajude a propor uma busca pela alteridade, valor ético fundamental, numa era globalizada. Para André Luiz Bocatto de Almeida (2018, p.72-73): 

A Carta Encíclica Laudato Si consiste num projeto e itinerário de formação da consciência que convida toda a humanidade a abandonar uma perspectiva antropocêntrica ou narcisista para se colocar em um horizonte de atuação nas questões sociais e políticas.

A proposta do Papa Francisco em promover uma educação e espiritualidade ecológicas está em consonância com as reflexões atuais em torno da espiritualidade. O tema da espiritualidade ganha particular atenção no tempo atual e nas discussões acadêmicas. Não há dúvidas sobre o efeito crítico exercido no resgate dos caminhos tomados pela sociedade ocidental, fundada em outros valores, como competitividade, produtividade, consumismo e a “auto-referencialidade”, para utilizar uma palavra do Papa Francisco, ou ainda, “egolatria”.

A espiritualidade diz respeito ao cultivo de uma dimensão fundamental, que trata da interioridade do ser humano, envolvendo a “expansão da vitalidade” e da qualidade de vida. Ensina, Faustino Teixeira (2014, p.152):

A espiritualidade traduz um modo de ser, uma atitude essencial que acompanha o ser humano em cada passo de seu cotidiano. Ela expressa uma energia que é comum a todos, independentemente de crença religiosa, visibilizando a dimensão de profundidade da própria condição humana.

A espiritualidade diz respeito à mística, e hoje vivemos uma profunda crise de sentido, a qual se demonstra na incapacidade do ser humano maravilhar-se, pois numa lógica de uma razão instrumental, não há espaço para uma razão mais sensível que integre a vida em todas as suas dimensões. Neste sentido, a mística e a espiritualidade corroboram. Para Teixeira (2014, p.154-155): 

a mística diz respeito a todos os problemas humanos, bem como o caminho de sua realização, a espiritualidade. Daí afirmar, com razão, que se trata de uma “experiência holística da realidade”. O exercício da espiritualidade é o “respiro mesmo da vida”.

Pensar sobre estes novos hábitos, o estilo de vida alternativo, a mudança de mentalidade global, uma “experiência holística da realidade”; é refletir sobre a educação e espiritualidade, e aqui, a contribuição de Mendonça e Gutiérrez é fundamental. Construiremos esta proposta em quatro momentos. Primeiramente, refletiremos sobre a pertinência do método da correlação em Paul Tillich, o qual nos ajuda a fundamentar tal construção teologicamente. Num segundo momento, retomaremos a teopoética de José Tolentino Mendonça, e a pertinência da teologia sensível que encontramos em suas obras[1]. Num terceiro momento, demonstraremos o que é a espiritualidade da libertação. E no quarto momento, a construção de uma proposta de espiritualidade sensível-libertadora.

1. O método da correlação tillichiano

Paul Tillich em sua obra “Teologia Sistemática” (1967), ao tratar da problemática da cultura e da revelação, define a revelação como recepção em que a referência não muda, mas o ato de referir necessariamente precisa ser sempre de novo realizado. Como explica, Santos (2012, p.33):

O que, Tillich, porém, destaca é que a diferença substancial entre revelação original e dependente não está numa ontologia metafísica, mas permanece diferença histórica. É isso que implica a noção de correlação, isto é, a dinâmica pela qual o que fora vivido originalmente num evento revelatório possa ser recebido por novas gerações através da mediação escrita e do evento da leitura, seja litúrgica ou crítica. Isto é, a revelação é dialética porque contínua e de uma ontologia histórica. E neste caso, “se muda um lado da correlação, toda a correlação se transforma”.

Jesus é o mesmo ontem, hoje e sempre, e este é o ponto irremovível de referência a todos os períodos da história da Igreja, entretanto, o ato de referir-se a ele, nunca é o mesmo, já que novas gerações e novas potencialidades de recepção entram na correlação e transformam- na. Para Tillich, a noção de método e sistema se equivalem, e deve ser um “caminho através de” que deve ser adequado a seu assunto. Ele está sendo continuamente decidido no próprio processo cognitivo. O método é um elemento da própria realidade. Diz, Tillich (1984, p.57): “A teologia sistemática usa o método de correlação. Ela sempre o tem feito, às vezes mais conscientemente, outras vezes menos. E deve fazê-lo consciente e explicitamente, especialmente se deve prevalecer o ponto de vista apologético”.

O método da correlação explica os conteúdos da fé cristã através de perguntas existenciais e de respostas teológicas, em interdependência mútua. O termo “correlação” deve ser usado de três maneiras, inferindo-se, destas correlações, três sentidos, a saber: 

O primeiro sentido de correlação se refere ao problema central do conhecimento religioso (Parte I, Sec. I). O segundo sentido de correlação determina as afirmações sobre Deus e o mundo; por exemplo, a correlação do infinito e o finito (Parte II, Sec. I). O terceiro sentido de correlação qualifica a relação divino-humana dentro da experiência religiosa (TILLICH, 1984, p.58).

Faz-se necessário explicitar uma consideração sobre a terceira correlação, ou melhor, o seu sentido de correlação. A relação divino-humana é correlação, isto é, Deus, em sua natureza abismal, de forma alguma seria dependente do homem, em sua automanifestação ao homem é dependente da forma como o homem recebe sua manifestação. Explica Tillich (1984, p.58): 

Há uma interdependência mútua entre “Deus para nós” e “nós para Deus”. A ira de Deus e a graça de Deus não são contrastes no “coração” de Deus (Lutero), na profundidade de seu ser; mas eles são contrastes na relação divino-humana. A relação divino-humana é correlação. O “encontro divino-humano” (Brunner) significa algo real para ambos os lados.

No método de correlação, na relação divino-humana, Deus responde às perguntas do homem. E sob o impacto das respostas de Deus, o homem levanta perguntas. A teologia formula as perguntas implícitas na existência humana. E a teologia formula as respostas implícitas na existência humana. Pergunta e resposta não estão separadas, e são apenas um momento no tempo, não, elas pertencem ao essencial do humano. Assim, “As respostas implícitas no evento da revelação são significativas só na medida em que estejam em correlação com questões que dizem respeito à totalidade de nossa existência, com questões existenciais”, “Ao usar o método de correlação, a teologia sistemática procede da seguinte maneira: faz uma análise da situação humana, a partir da qual surgem as perguntas existenciais” (Ibid, p.59).

A análise da situação humana é feita em termos que hoje são chamados “existenciais”, ou seja, a partir da consciência que tem o homem de que ele mesmo é a porta para níveis mais profundos de realidade. Em sua própria existência, ele tem o único acesso possível a si mesmo. Isso significa que a experiência imediata do próprio existir revela algo da natureza da existência em geral. Assim, Tillich reconhece que para analisar a situação humana, pode o teólogo empregar os materiais utilizados pela auto-interpretação criativa do homem em todos os reinos da cultura, ou seja, a filosofia contribui, mas também a poesia, o drama, a novela, a psicoterapia e a sociologia.

Sobre o método da correlação, ressalta, Tillich, que a mensagem cristã fornece as respostas às perguntas implícitas na existência humana. O conteúdo da revelação não pode ser derivado das perguntas, isto é, da análise humana, pois como resposta, ela é “dita” à existência humana desde mais além dela. Há uma dependência mútua entre pergunta e resposta. Quanto ao conteúdo, as respostas cristãs são dependentes dos eventos revelatórios nos quais elas aparecem; quanto à forma elas são dependentes da estrutura das perguntas às quais respondem. Deus é a resposta implícita na questão da finitude humana. Explica, Tillich (Ibid, p.61):

Contudo, se a noção de Deus aparece na teologia sistemática em correlação com a ameaça do não-ser que está implícita na existência, Deus deve ser chamado de poder infinito de ser, que resiste a ameaça do não- ser. Na teologia clássica isto é o ser-em-si. Se definimos ansiedade como a consciência de ser finito, Deus deve ser chamado de fundamento infinito da coragem. Na teologia clássica isto é a providência universal. Se a noção de Reino de Deus aparece em correlação com o enigma de nossa existência histórica, Ele deve ser chamado de sentido, plenitude e unidade da história. Desta forma se consegue uma interpretação dos símbolos tradicionais do cristianismo que preservam o poder destes símbolos e que os abre às perguntas elaboradas pela nossa presente análise da existência humana.

Em Tillich, o empenho humano em compreender a “revelação-natural”, da qual compreende-se o homem a si mesmo, deriva da “existência de Deus”, uma vez que pela teologia natural analisa-se a própria existência, reduzindo a teologia sobrenaturalista a respostas dadas às perguntas implícitas na existência. Assim, pode-se afirmar que o método de correlação ou teologia sistemática procura ajudar o homem a responder as perguntas que faz a si mesmo enquanto existência, ou seja, nessa relação positiva, Deus “comunica” ao homem, mas também o homem “comunica” a Deus, mesmo reconhecendo que há uma diferença abissal entre eles. Deus é a resposta ao ser humano em suas perguntas existenciais, e na busca por essa compreensão de si mesmos, o ser humano aprofunda o sentido da própria existência, por meio da cultura que produz, e aqui, reconhecemos como mediação divino-humana, passível de correlação: Teopoética e Teologia da Libertação.

Nesse sentido, podemos afirmar que a teologia tillichiana pode ser denominada teologia da fronteira. Explica Carlos Alberto Motta Cunha (2016, p.29):

A teologia tillichiana é marcada por correlações próprias de quem habita esses espaços fronteiriços. Sua contribuição epistemológica, conhecida como método da correlação, consiste em estabelecer uma ponte razoável entre a fé, a Revelação Cristã e a cultura moderna.

Nesse caminho metodológico, Paul Tillich, demonstrou que a Revelação cristã se apresenta e demonstra como “resposta” às perguntas cruciais que brotam da existência do ser humano na modernidade. A correlação é mais do que um jogo de perguntas e respostas, ela se dá na realidade. Segundo Cunha, pensar teologicamente a teologia da fronteira de Paul Tillich significa reconhecer que:

A teologia de fronteira de Tillich evidencia-se, sobretudo, na relação que ele institui entre religião e cultura secular, mediado pelo método de correlação, segundo o qual o conteúdo da Revelação cristã se apresenta e demonstra como resposta às interpelações que emergem da existência do ser humano diante dos desafios dos tempos modernos. O caminho proposto por Tillich faz da fronteira o lugar ideal para que haja intercâmbio entre as situações concretas da vida e a perspectiva da fé. Portanto, aclarar o modo como a correlação é utilizada é fundamental para a teologia tillichiana (Ibid, p.38).

A criatividade do seu método de correlação é a riqueza de sua teologia da fronteira, pois a fronteira é o melhor lugar para a aquisição do conhecimento. A fronteira é o ambiente da mobilidade, onde permite-e o encontro com “o novo e o diferente”. O próprio termo “correlação” comporta em si mais de uma possibilidade, abrindo caminhos para expressar a relação entre conceitos, ideias e pensamentos que podem ser totalmente diferentes. Diz, Cunha (2016, p. 36): “No pensamento tillichiano, a “fronteira” (boundary) é chave hermenêutica de sua vida e teologia, a saber, a reivindicação do espaço fronteiriço entre diferentes saberes e possibilidades”.

A fronteira é o espaço de abertura e criatividade. O ambiente fronteiriço é lugar de diálogo relacional, para uma vivência aberta à interação entre dialogantes, possibilitando assim o deslocamento dos seus próprios lugares enunciativos para um “terceiro espaço” em que emerge a novidade. O lugar de fronteira é propício para refletir a partir do horizonte da fé, e neste espaço limítrofe, para além das tensões que nela surgem, realiza-se a experiência do encontro e do diálogo. Esta teologia de fronteira já é parte da história da teologia cristã, explica, Cunha (2016, p.29):

A história da teologia cristã é marcada por teólogos que ousaram pensar e fazer teologia de fronteira, isto é, habitaram espaços limítrofes como lugares ideais para a reflexão da fé cristã diante dos desafios das sociedades circundantes. Grandes teólogos do século XX, como Karl Barth (1886-1968) e sua teologia dialética, Rudolf Bultmann (1884-1976) e sua teologia existencial, o cristianismo a-religioso de Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), a controvérsia modernista e apologética de Alfred Loisy (1857-1940) e Maurice Blondel (1861-1949), Karl Rahner (1904-1984) e a teologia transcendental, a teologia da libertação de Gustavo Gutiérrez e a libertação da teologia de Juan Luis Segundo, como tantos outros teólogos e teólogas, de várias tradições cristãs, são exemplos de labores teológicos engajados.

Na ciência, “fronteira” dá a ideia da totalidade dos espaços existentes nas linhas fronteiriças entre os saberes. As margens são espaços de criação, de colaboração e de contestação, em que o sujeito peregrina numa experiência de travessia e retorno com os companheiros dos outros lugares, criando-se um terceiro espaço vivencial capaz de recriações. Diz Cunha, mencionando o pensamento de Homi Bhabha: “Conforme Homi Bhabha, as regiões fronteiriças são ideais para a construção de identidades porque favorecem a articulação de diferenças culturais num movimento de deslocamento e sobreposição das diferenças” (CUNHA, 2016, p.37).

A contribuição epistemológica, sintetizada no método da correlação, compreende que o conteúdo da revelação cristã se apresenta e demonstra-se como resposta às perguntas cruciais que brotam do ser humano na modernidade. O projeto tillichiano procura completar “a teologia querigmática” e leva em conta apenas o anúncio (Barth) olhando para o outro polo (destinatário), representado por todas as várias formas culturais que exprimem a interpretação da existência por parte do homem moderno. Assim, diz Cunha (2012, p.114): “O uso do método da correlação é uma opção pela fronteira entre perguntas e respostas. Numa época como a nossa, tão cheia de demandas, a teologia necessita ouvir o grito de uma sociedade plural que anseia por orientação”.

A existência na fronteira, em uma situação limite, é cheia de tensão e movimento. Não é estática, é travessia, um vai-e-vem, cujo objetivo é criar uma terceira área além dos limites territoriais onde pode permanecer sem ser encerrado hermeticamente. Pelo conceito de “fronteira”, Tillich quer colocar a teologia em zona de “encontro”, para experimentar, sobretudo, algo novo. Só há possibilidade de fronteira na abertura provocada pela situação. O próprio termo “correlação” comporta em si mais de uma possibilidade.

Cunha, ao refletir sobre a situação da teologia no Brasil, afirma que ela encontra-se numa “situação de fronteira”, em termos de sua legitimidade como conhecimento. A tensão entre “coisa de igreja” e “coisa pública” é intermediada por um lugar fronteiriço que permite a teologia situar entre a confessionalidade e a pluralidade de convicções da sociedade. Em termos práticos, pretende-se deixar a teologia (mensagem) ser interpelada pelos dilemas atuais (situação). Explica:

O lugar de fronteira é propício para refletir a partir de dois horizontes: do horizonte da fé, instituída em conteúdos objetivos no seio da confessionalidade religiosa, advém boa parte da matéria prima para a reflexão teológica: do horizonte comum da razão lógica e investigativa, instituída em métodos e teorias, advêm as regras do jogo do conhecimento, tanto quanto em outras áreas (2012, p.116).

Justamente é por conta deste espaço fronteiriço que possibilita a construção de identidades, pois favorece a articulação de diferenças culturais e traz novas perguntas “existenciais” ao “Deus-que-dá-respostas”, que assumimos a pertinência de pensar na construção de uma proposta de espiritualidade a partir dos interlocutores dialogantes, a saber, a teopoética de Mendonça, europeia, e a espiritualidade da libertação de Gutiérrez, latino-americana, isto é, a partir desta situação de fronteira, entre a confessionalidade e a pluralidade de convicções da sociedade, entre “coisa de igreja” e “coisa pública”.

2. Teologia sensível: a teopoética em José Tolentino Mendonça

José Tolentino Mendonça, teólogo e poeta português, oferece por meio de sua teopoética a possibilidade de elaborar também uma teologia da fronteira, pois reconhece que a contemporaneidade tem produzido, em torno da religião, uma literatura que tem tanto de copioso quanto de heterogéneo, não deixando margem para dúvidas: “a sua fisionomia histórica e as suas categorias mais reconhecíveis parecem atravessadas por notória turbulência” (MENDONÇA, 2013, p.285). Tal turbulência é fruto do processo de secularização. Mendonça ao fazer referência ao pensamento de Marcel Gauchet, o qual apropriou-se do sintagma “desencantamento do mundo” weberiano, mas redefinindo os seus contornos, afirma: 

Aí o “desencantamento” não aparece apenas associado ao crepúsculo da mentalidade mágica, no estrito sentido weberiano, mas liga-se àquilo que o autor designa como “o esgotamento do reino do invisível”, passando a incluir neste a religião” (MENDONÇA, 2013, p.287).

Segundo Mendonça, o que Gauchet está propondo com este entendimento do desencantamento do mundo, como esgotamento do reino do invisível, não é anunciar o fim da religião, mas descrever sim as transformações radicais que a época contemporânea registra, na relação do homem com as religiões. Nesse sentido, é interessante reconhecer um papel que ele atribui exclusivamente ao cristianismo enquanto reconhece-o como “a religião da saída da religião” em que estão em consonância com as suas duas teses, a saber: se com o processo de secularização, isto é, a partir do momento que as sociedades ocidentais se tornam prevalentemente políticas elas “já saíram da religião”, mas ao mesmo tempo, mesmo que as sociedades tenham se autonomizando da órbita do religioso não deixaram de ser marcadas por uma persistência do religioso, que emerge sempre de novo com novas tipologias, se não mais num conteúdo dogmático reconhecido, então, como experiência pessoal (MENDONÇA,2013, p.288).

Nesse sentido, Mendonça afirma que pouca atenção foi dada à noção de Resto que o autor evoca. Diante dessa evaporação da religião devido ao processo de secularização, o religioso persiste como resto, e segundo Marcel Gauchet, são três Restos de Religião, a saber: 1) A experiência do indiferenciado - o esquema dual de relação “Eu e/ Outro”, que por si só não produz fé, nem prolonga o sagrado, mas que serve de suporte à experiência religiosa; 2) A experiência estética - a habitação que fazemos do real não se resume a um neutral registro perceptivo de dados, mas pela virtualidade de uma experiência estética – a arte – enquanto, “proximidade fracturante do invisível no meio do visível”; e 3) A experiência do problema que nós somos para nós próprios - Somos uma pergunta que se sobrepõe às respostas que existencialmente (e historicamente) vamos encontrando - a consciência que vamos ganhando de nós mesmos constitui-se, antes de tudo para nós próprios, um enigmático objeto de pensamento (MENDONÇA, 2013, p.289-291).

A fratura que a Modernidade abriu no interior do fenômeno religioso não é completamente nova na história do cristianismo; a dialética do religioso e o secular, e suas variáveis, foram motivos de crises paradigmáticas no passado, e o são atualmente. Segundo Mendonça (MENDONÇA, 2013, p.292): 

No fundo, a grande crise da Modernidade coloca-nos face ao religioso, perante uma crise de paradigmas. Um paradigma de que nós resistimos a libertar é aquele que na tradição judaica e cristã fazem coincidir as fronteiras do religioso com as de nação (o ideal Mosaico e Davídico) ou as de império (o ideal constantiniano e de cristandade, nos seus vários regimes).

Nesse sentido, trata-se de afirmar um único modelo homogêneo, entretanto, explica Mendonça (MENDONÇA, 2013, p.293): “Mas na história da tradição bíblica, tanto no cânone judaico como naquele cristão, este está longe de ser o paradigma único de construção da experiência religiosa na história”.

A afirmação de Mendonça sobre a perspectiva dos “Restos de Religião” a partir do pensamento de Gauchet precisa ser compreendida a partir do entendimento que propõe o sociólogo ao refletir sobre a saída da religião na contemporaneidade. O religioso permanece após a religião, ou seja, a “divisão da realidade” continua sendo dada pela religião, não mais enquanto função social, mas privado, em uma experiência estética, pois a arte é a continuação da religião por outros meios, e ligados ao sentimento do sagrado, enquanto experiência subjetiva (LOTT, 2017).

Para Gauchet, a crença religiosa nunca esteve tão presente como hoje, nunca se expressou de forma tão autêntica e emancipada como nos dias atuais. A própria instituição religiosa continua a desempenhar um papel relevante em nossa sociedade. Embora, não ocupem mais o lugar do político como no passado, conservam um papel junto à sociedade civil.

A religião perde o seu estatuto público, mas, em contrapartida, encontra no estatuto privado a força de um novo papel. Em decorrência desta desinstitucionalização religiosa, as igrejas passam a buscar a livre adesão das pessoas, pois as sociedades modernas se definem cada vez menos pela religião. Nesse sentido, para o sociólogo, podemos afirmar que já não existe a civilização paroquial e temos cada vez mais uma fé que pertence à esfera da individualidade (LOTT, 2017).

O religioso permanece após a saída da religião como Restos de religião. Podemos afirmar que esta categoria de Resto favorece uma teologia da fronteira, conforme explicitamos a partir do método de correlação tillichiano. E a partir da noção de Resto, podemos reconhecer que a experiência religiosa pode dar respostas ao ser humano de hoje enquanto ela propicia a possibilidade de criar novos paradigmas considerando a experiência indiferenciada, a experiência estética e a consciência do problema que somos para nós mesmos, enquanto elaboramos as perguntas “existenciais” que pretendemos responder. Portanto, é neste espaço fronteiriço que podemos viver a experiência religiosa na história.

A poesia de Mendonça se inscreve como um “Resto de Religião” enquanto ela propicia uma teopoética, ou seja, é marcada por poesia e espiritualidade. Márcio Cappelli reconhece que no ensaio de Mendonça intitulado “Creio na nudez da minha vida - onde mística e literatura se encontram” (2020), ele aproxima a mística da literatura por meio da categoria de nudez fazendo referência ao texto da Carta de Filipenses que remete ao “esvaziamento”. Diz, Cappelli (2022, p.304): “Ou seja, JTM liga a espiritualidade cristã, que na sua perspectiva é kenótica, à poesia por meio da imagem da nudez”. Poesia e mística se aproximam em Mendonça por serem formas de “exercícios espirituais” inacianos, os quais são a rememoração com o objetivo da reprodução da vida de Cristo, mas cujo limite se estabelece na doutrina. Para Capelli (2022, p.309):

evidentemente, não se trata de separar completamente forma de conteúdo, tampouco de pensar que o procedimento criativo de JTM é uma espécie de emulação apenas, mas de perceber que sua poesia é uma espécie de processo alquímico singular. 

Este processo alquímico realiza-se a partir da proximidade com a espiritualidade cristã, da qual os exercícios espirituais fazem parte.

Entretanto, a poesia de Mendonça, afirma Cappelli, “pode até ser tida como exercício espiritual, mas está longe de corresponder à ascese que direciona o fiel nos limites bem determinados das doutrinas” Segundo Cappelli (2022, p.310):

Na poesia de JTM comparece uma apropriação da tradição espiritual cristã em modo de “torção” - entendido como uma dinâmica crítico-criativa de releituras das formas e conteúdos que marcaram presença no desenvolvimento da espiritualidade, especialmente no âmbito do cristianismo -, como sintoma da insuficiência das formas obtusas tanto da religião quanto de visões que esvaziam o mundo da possibilidade de qualquer vislumbre de transcendência. Por outras palavras, a poesia, no final das contas, estabelece-se a partir da consciência exígua de sua fragilidade, mas também de seu potencial. Mantém aberta a possibilidade de um rasgão transcendente, claro, na mais densa imanência.

Este rasgão transcendente, claro, na mais densa imanência, pode ser observado em seus poemas. Na obra “Teoria da Fronteira”, vislumbramos o invisível que se deixa encontrar na fronteira com o visível, como lemos no poema “Partir sem chegar”.

Precisarás de tempo para alcançar a margem / o ramo do tamarindo onde te espera / o assobio do barqueiro / não é o primeiro / deverás tactear a escuridão da folhagem. / e enganares-te tantas vezes / que te convenças que não sabes / estreita é a corrente invisível que nos conduz por corredores, registros, águas em queda / àquele momento talvez involuntário / onde palavra dita e palavra calada se tocam (MENDONÇA, 2017, p.15).

A fronteira é esse lugar onde a palavra dita e a palavra calada se tocam. E neste lugar de dialogantes, reconhecemos a pertinência de que neste espaço, este outro, diferente que dialogue, seja a espiritualidade da libertação de Gustavo Gutiérrez.

3. Espiritualidade da libertação: a Teologia da Libertação em Gustavo Gutiérrez.

Falamos de espiritualidade da libertação, até mesmo como primeiro momento da Teologia da Libertação, pois a teologia é uma linguagem sobre Deus. Segundo Pedro Igor Leite, para Gutiérrez a espiritualidade da libertação é “fundamentalmente, viver na ação do Espírito, é se abrir a uma experiência místico-contemplativa com forte incidência em um compromisso solidário e na conversão a Deus e ao outro: é, outrossim, a práxis cristã” (LEITE, 2022, p.7). Nesse sentido, falamos que a práxis cristã é ato primeiro, enquanto espiritualidade (experiência místico- contemplativa) e a teologia, ato segundo, pois é a reflexão sobre o contemplado. Não pode haver reflexão teológica sem um prévio contato com o Cristo transfigurado nos pobres. A perspectiva dos pobres não é acidental, mas, ao lado do método, constitui como a estrutura deste edifício teológico. Afirma, Leite (2022, p.8): “O pobre e o seu mundo próprio tem uma função hermenêutica, assim dizemos, porque através deles e de suas urgências libertárias é que haverá o desenvolvimento teórico da Teologia”.

A imersão no mundo dos oprimidos fará a Teologia reconhecer a necessidade de diálogo com as ciências sociais e seus instrumentos (inclusive marxistas). A metodologia da libertação precisa ser entendida como caminho espiritual, ou seja, a profundidade metodológica coincide com uma proposta de estilo de vida e de espiritualidade que tem como ponto de partida a espiritualidade dos anawin (os pobres da terra). Segundo Leite, aí encontra-se o grande paradigma do que Gutiérrez chama de espiritualidade da libertação:

Aqui está o grande paradigma daquilo que Gutiérrez chama de espiritualidade da libertação: o olhar para Deus passando pelo ser humano espoliado e oprimido. Este paradigma, em perspectiva teológica, traz duas consequências: de um lado aquilo que ele chama de circularidade hermenêutica e, de outro, algumas características de tal espiritualidade que a difere das demais, explicitamente das que têm caráter mais intimista, e por vezes, alienador (LEITE,2022, p.9).

Para Celso Pinto Carias, a Teologia da Libertação precisa tornar-se uma Teologia Espiritual da Libertação, em outras palavras, ela precisa continuar, e precisa haver quem continue a fazer Teologia da Libertação. Caso considerem que em 1990 ela foi enterrada, refuta Carias (2007, p.5):

Certamente se houve um funeral, não foi da Teologia da Libertação, talvez ela esteja em uma catacumba aguardando o melhor momento para se reapresentar à Igreja e ao mundo. E o momento está chegando. E ela sairá da catacumba renovada, ciente dos seus limites, mas fortalecida de suas convicções fundamentais, e não menos profética, como deve ser toda e qualquer teologia.

Carias reconhece o processo histórico da Teologia da Libertação e, por isso mesmo, afirma: 

Se o Magistério vê com preocupação uma teologia com fundo marxista, então não se use tal mediação. Porém, a necessidade de viver o Amor de Deus nunca se encerrará. Em toda e qualquer realidade sociocultural o cristianismo necessitará dar testemunho deste amor (2007, p.106).

E podemos perceber isto claramente na obra “O Deus da Vida” de Gustavo Gutiérrez. A fundamentação da Teologia da Libertação está numa hermenêutica da fé à luz da Palavra de Deus a partir do locus epistemológico do pobre. Procura ele aprofundar uma reflexão teológica em que busca responder à pergunta “onde os pobres vão dormir?”, isto é, propõe uma hermenêutica em que a fé se compreende a partir do seguimento de Jesus num compromisso de justiça social. O Reino de Deus não se separa da pessoa de Jesus. Sua radicalidade a favor da vida, seu compromisso com os pobres, sua luta pela justiça, apontam para um projeto ético a ser construído. O Reino é dado como dom e acolhido por nós como amor a Deus e tem sua exigência no compromisso com os mais pobres. A nossa profissão de fé em Jesus define-se na resposta que damos a esta pergunta. Nesse sentido, afirma o teólogo:

Ser cristão na América Latina de hoje é preocupar-se onde dormirão os pobres. Diante de algo tão concreto, faz sentido enfrentar disquisições teóricas sobre prioridades ou equilíbrio entre o amor a Deus e ao próximo? Justamente por ser concreta, esta exigência nos faz compreender o que temos em mãos: o vínculo indissolúvel entre ambos. A preocupação com aquilo sobre que o pobre dormirá é relevante para Deus, segundo nos relata o texto do Êxodo: “Quando ele clamar por mim, eu o escutarei, porque sou misericordioso” (Ex 22,26). Portanto, deve ser relevante também para nós. O Senhor quis que o gesto para com o pobre tenha valor de encontro com Ele (GUTIÉRREZ, 1992, p.182).

O gesto para com o pobre valor de encontro com Ele, e esta é a espiritualidade da libertação, assim como o Senhor escuta o pobre porque é misericordioso, também “eu (nós) o escutarei (escutaremos), porque sou (somos) misericordioso(s)”. E hoje, num mundo globalizado que mantém injustiças gritantes, o cristianismo não pode se calar. A dimensão profética que toda e qualquer teologia precisa ter se faz necessária mais do que nunca. Por isso, é preciso fazer uma teologia espiritual da libertação, ou mesmo, propor uma espiritualidade libertadora, para que tenhamos um testemunho de amor mais coerente. Para Carias (2007, p.106): “(...) a intenção da TdL foi, e é, antes de mais nada, dar testemunho, através também da reflexão, deste mesmo amor. Portanto, se houve erros, corrija-se. Mas não deixemos de buscar uma teologia que nos ajude a dar um testemunho mais coerente”.

Em sua proposta de continuidade para a Teologia da Libertação, oferece uma configuração básica e elementar em três aspectos para a construção do que denomina teologia espiritual da libertação, a saber: a) a teologia como saber sistemático - a teologia é um saber elaborado de forma sistêmica; b) a teologia é um saber espiritual - Teologia cristã e vida espiritual nasceram juntas; e c) A teologia é um saber espiritual-libertador - isto é, tomar a libertação numa configuração social, política, na qual se faz necessária a mediação sócio- analítica para não ficar em generalidades sobre a injustiça e a opressão.

Considerando essa proposta, observamos a tentativa de unir novamente teologia e vida espiritual, ou seja, devolver à teologia o seu caráter de espiritualidade, assim, como afirma Carias (2007, p.125-126):

Se o pressuposto da teologia é a fé, se afeto não exclui a razão, se a experiência humana condiciona as opções cognitivas, se o conhecimento humano se dá em um processo de construção no interior da biologia humana, a teologia, um tipo de saber, será um saber espiritual, pois esta experiência humana está embutida na construção do conhecimento. O caminho espiritual cristão é o que qualifica a teologia, assim, espiritualidade não é uma disciplina a mais, mas a configuração de um caminho de fé no qual também a teologia estará calcada.

Outra consideração importante feita por Carias em relação à teologia espiritual da libertação é que ela deve ser um saber espiritual-libertador. Para ele:

A libertação é libertação do oprimido e a figura epocal do oprimido do Terceiro Mundo é a do pobre socioeconômico. E, toda vez que a opressão e a injustiça deixam de acontecer para o oprimido é um sinal da presença do Reino de Deus, ainda que o sinal seja envolvido no meio de nossa realidade humana pecadora (2007, p.127).

Também não podemos esquecer a questão ecológica que também passa por questões políticas. O compromisso político com a transformação das estruturas injustas é uma realidade com a qual todos devem, de alguma maneira, estar comprometidos, mas poucos se envolvem na ação política direta, pois é vocação e não obrigação.

4. A construção de uma proposta de espiritualidade sensível-libertadora.

A partir da compreensão que fomos adquirindo sobre a Teopoética, enquanto experiência espiritual poética e a espiritualidade da libertação, compreendida enquanto continuidade que se coloca em movimento a partir de uma nova configuração como teologia espiritual da libertação ou simplesmente espiritualidade da libertação, pretendemos, oferecer a construção de uma proposta de espiritualidade sensível-libertadora. Teologia e vida espiritual não se separam como vimos, então, podemos encontrar possibilidades inauditas deste encontro. Podemos encontrar a ideia de construção no próprio Mendonça, que em sua obra “A construção de Jesus” propõe, como afirma Pedro Rubens Ferreira Oliveira: 

Diante de uma pedagogia hospitaleira, ele oferece pistas para o convidado entrar no texto lucano e no Evangelho com o seu olhar de leitor a ir ao encontro do protagonista principal, Jesus. Trata-se, claramente, de um escrito de revelação a ser lido na perspectiva de uma contemplação (OLIVEIRA, 2020, p.420).

Durante o percurso do texto, o leitor vai compreendendo como, em meio a incompreensões e paradoxos, a identidade de Jesus vai sendo construída pelo evangelista. Da mesma forma, Mendonça afirma que acontece com o leitor, pois o Evangelho constrói o leitor/o leitor constrói o Evangelho, e isto ocorre, pois:

(...) o leitor, trabalhado pela arte da narrativa, é construído à medida que constrói o texto. Instaura-se, assim, um jogo de circularidades. A leitura é uma correspondência secreta e vital, uma prática de correlação. Lemo-nos a nós próprios no livro que temos diante de nós (MENDONÇA, 2018, p.180). 

Podemos ainda afirmar que essa experiência de ser construído e construir é a dinâmica própria da espiritualidade, ou ainda, da poesia, enquanto exercício espiritual, e aí está, para nós, a ideia fundamental do que propomos, ou seja, um caminho aberto, com novas narrativas por se fazer, um modo de tocar o invisível pelo visível, um rasgo transcendente na mais evidente imanência, um método de correlação, um espaço fronteiriço, uma “dialética entre o exterior contemplado e o interior de quem contempla, entre o ver e o ser visto, entre o que se via antes e o que se vê depois de o Verbo de Deus falar” (Ibid, p.37).

Para oferecer à pessoa um processo de aprendizagem, que estabeleça uma estrutura mental capaz de fornecer condições de integração entre a experiência racional e existencial, faz- se necessária que ela participe do processo da gênese epistemológica. O sujeito deve ser estimulado a assumir como seu o processo de conhecimento, mas para que isso aconteça é necessário ter uma atitude construtivista. Carias, refletindo sobre a possibilidade de construir uma teologia espiritual da libertação, fala sobre o sujeito epistêmico na ótica da pedagogia de Piaget, e afirma a importância da atitude construtivista. Diz: 

Na atitude construtivista a pessoa que aprende é um sujeito epistêmico, isto é, um sujeito que interage na experiência cognitiva, e que através da adaptação, assimilação, acomodação e organização de seus processos cognitivos constrói o conhecimento (CARIAS, 2007, p.119).

Algumas pessoas defendem que o construtivismo ocorre somente entre a fase infantil e a adulta, isto é um absurdo. Infelizmente, tanto as crianças quanto os adultos no Brasil são tratados em seus processos de aprendizagem como “caixas vazias”. Nesse sentido, o método de alfabetização de Paulo Freire que veio a ser chamado de “construtivismo” reconheceu que o conhecimento poderia tornar-se um ato libertador e não apenas uma ilustração. Segundo Carias (Ibid, p.120), “Paulo Freire nos ensinou que a ciência é um saber que só pode ser feito com humanidade se unir os dois elementos que constituem a vida em sua estrutura cognitiva: teoria e prática, razão e afeto”.

Numa perspectiva freiriana, a atitude construtivista demonstra-se num modo de “ler a vida” que eduque para uma humanização que se expressa como solidariedade, o que é próprio do amor. Em nosso artigo “Educar para a democracia: projetos de educação popular como alternativa” (2022), afirmamos: 

inspiremos no ensinamento do educador Paulo Freire, pedagogo da amorosidade, o qual nos ensina que não há educação autêntica sem o compromisso amoroso assumido com a transformação radical de uma realidade concreta opressora (BOARETO, 2022, p.37). 

Tal processo de humanização precisa realizar-se como um compromisso com os outros que são solidários. Ensina, Paulo Freire (2018, p.22):

O compromisso com a humanização do homem, que implica uma responsabilidade histórica. não pode realizar-se através do palavrório, nem de nenhuma forma de fuga do mundo, da realidade concreta, onde se encontram os homens concretos.

Este processo de humanização, ou ainda, este sentido construtivista, aparece na obra de Mendonça como entendimento do existir humanamente de modo cristão, enquanto vive-se num processo, por um lado “kenótico”, isto é, de esvaziamento, por outro, metamórfico, ou seja, de constante transformação em Cristo, que é a medida de todo ser humano, ou seja, sua 'referência enquanto plenitude de humanização, entretanto, só Ele é o divino-humano por excelência. A experiência pessoal com a Pessoa de Jesus Cristo, este processo de transformação pessoal mas que é comunitário, por isso, também social e político, ou ainda, de ecologia integral, é o desafio do cristianismo nos tempos atuais, pois estamos assistindo a um fim de um mundo como também a um fim de um certo cristianismo, e neste estado generalizado de começo e recomeço, precisamos nos perguntar como recomeçar com a fé cristã e, ou colocar o cristianismo em estado permanente de recomeço, isto é, numa ação criativamente transformadora?

Mendonça, fazendo menção a André Fossion, em sua obra “Metamorfose necessária: Reler São Paulo” (2022), afirma que a fé cristã encontra-se hoje num estado generalizado de começo ou recomeço, ao mesmo tempo, processo de morte e renascimento, onde assistimos, tanto a um fim de um mundo como a um fim de um certo cristianismo. Diz:

Se é este o quadro histórico do nosso cristianismo, como favorecer nele os começos da fé? É uma pergunta de Fossion, a que ele próprio responde: desaprendendo e reconstruindo um conjunto de representações. A começar pelo desafio de reaprender o significado da criação, núcleo vital da teologia paulina (MENDONÇA, 2022a, p.158).

Mendonça responde a este desafio propondo “reler São Paulo” a partir da ótica da teologia paulina que compreende a existência cristã como existência metamórfica, que habita criativamente a transformação trazida por Cristo. Ele diz:

O acontecer de Cristo na vida de cada um torna-se uma realidade tão transformante que introduz uma radical contestação identitária. Há uma relativização das fronteiras de gênero, étnicas ou de cidadania. A transformação cristológica que instaura o sujeito crente determina assim uma contínua “metamorfoses das pertenças” (MENDONÇA, 2022a, p.149).

Considerando esta realidade própria da existência cristã como existência metamórfica, isto é, criativamente transformadora, reconhecemos que no processo de desaprender e reconstruir podemos propor um caminho aberto feito do encontro entre diferentes perspectivas, mas que se correlacionam. Para tanto, utilizaremos em particular duas obras como referência: “Pai Nosso que estais na Terra” (2022), de Mendonça, e “Beber do próprio poço” (1984), de Gustavo Gutiérrez, a partir dos quais pretendemos demonstrar pontes de ligação entre diferentes caminhos.

Nesse sentido, na obra “Pai Nosso que estais na Terra”, é possível observar um texto que é um “exercício espiritual” na perspectiva que apresentamos, e ainda, um exemplo de correlação tillichiana, ou seja, podemos reconhecer o uso da poética como mediação divino- humana para oferecer a resposta ao ser humano de hoje, que em sua pergunta existencial, esforça-se por compreender. Partindo da oração cristã por excelência, o coração do evangelho, propõe o Pai-Nosso como uma luz para ajudar o ser humano em seu caminho, antes das suas crenças e das pertenças confessionais, isto é, diante de suas perguntas.

Ao propor o Pai Nosso como reflexão neste livro poético, Mendonça procura aprofundar o sentido da pertença universal desta oração, pois universal é o ser humano, enquanto é filho, filha, portanto, irmão e irmã. Ao propor o “Pai-Nosso”, sem impor, atrai o leitor para refletir sobre sua própria existência e dá como resposta, ou melhor, apresenta que tal resposta só pode encontrar o ser humano no encontro com o Cristo no mistério da encarnação.

A poesia é uma linguagem humana que ajuda a compreender que a fé cristã é, antes de tudo, narração e literatura, ou seja, mestra de vida, é transmissão de sabedoria humana através da narração. Tornar-se cristão é tornar-se humano, é aprender a linguagem dos sentidos que podemos descobrir nos evangelhos. Assim, nesta obra, podemos redescobrir que a corporeidade é o lugar essencial da narração que torna a humanidade de Jesus de Nazaré sacramento primordial de Deus. Lemos na apresentação feita por Enzo Bianchi:

É a prática de humanidade de Jesus que narra Deus e que abre ao homem um caminho para ir até Ele. “A Deus jamais alguém o viu. O Filho Unigênito, … foi Ele quem o deu a conhecer (exegésato)” (Jo 1, 18): o verbo exegéomai contém em si não só o significado de “explicar”, “fazer a exegese”, “contar”, mas também o de “guiar para”, “conduzir a”. Mas nesta caminhada para o Pai, em que nos tornamos cristãos tornando-nos humanos, é central a oração do Pai-nosso, isto é, a entrada na relação filial com Deus e na fraternidade com Jesus Cristo, e nele, com cada homem. De facto, como recorda o nosso Autor retomando Santo Agostinho, “Jesus quis que chamássemos nosso Pai ao seu próprio Pai” (MENDONÇA, 2022b, p.11).

Em sua teopoética sobre o Pai-Nosso, Mendonça aprofunda uma teologia sensível, que só é capaz de compreender quem entende a necessidade de saber acolher o mistério que as palavras e os sentidos revelam. Explica, ele:

A dada altura torna-se claríssimo que para rezar o Pai-nosso, temos de acolher Deus não apenas pontualmente, mas como modelo interior, imagem permanente, presença com a qual estamos em contínuo diálogo. Tornar-se “imagem e semelhança de Deus” é ter em Deus a nossa ossatura interior, a nossa raiz, o inequívoco fundamento (MEMDONÇA, 2022b, p.34).

Comentando sobre a oração do Pai-nosso em seu sentido existencial, isto é, espiritual, afirma que:

(...) Só atingimos o “Pai-nosso” quando nos sentimos atingidos, transtornados, revolvidos, renascidos por Ele. Quando percebemos, de um modo existencial, que antes de Jesus era uma coisa e com Jesus é outra completamente diferente. É preciso passar de uma espiritualidade exterior, demasiado dependente do enquadramento sociológico e das suas práticas, para uma outra mais interior, que nos permite descobrir que Deus é Pai, meu Pai, é o “Pai-nosso” (MENDONÇA, 2022b, p.35).

Mendonça propõe responder à pergunta existencial do ser humano por meio da teopoética, ou seja, apresentando ao leitor um convite, o de “aprender a desaprender”, como recomendava Fernando Pessoa. É preciso desaprender os modelos que nos sufocam e que servem apenas para adiar o encontro conosco e com o próprio Jesus Cristo, que no fundo de nós próprios, traz a novidade de Deus, e não apenas na linha da história e da espuma.

Essa busca por nós próprios a partir de Jesus faz-nos viver a vida e também a fé como profundo processo humanizador, e assim, como ensina Mendonça, coloca-nos em estado permanente de recomeço, propiciando viver uma metamorfose necessária constante, pois “Jesus faz nos aceder a um limiar novo de Deus e da nossa humanidade” (Ibid, p.35).

Esta proposta teopoética apresenta-se como um caminho para refletir sobre a espiritualidade dentro do método de correlação tillichiano e escapa as rejeições que apresenta, pois pergunta e resposta estão aqui numa relação positiva divina-humana, enquanto, por meio da poética, o ser humano empenha responder à sua pergunta existencial que encontra em Jesus Cristo, a qual é oferecida por meio da própria poesia, a cultura literária, em que o homem escuta a revelação “comunicada”.

Deus não é apenas uma imago interna, uma presença na nossa vida interior, Ele é uma presença em si mesmo. Não existe apenas dentro de nós para servir de referência, mas existe inefavelmente nele próprio. Escreve Mendonça:

Os filósofos escolásticos ensinam que enquanto nós somos existências, Deus é a essência. É uma definição talvez difícil de alcançar com o intelecto, mas árdua de abarcar globalmente. Se nós somos existências, nem conseguimos bem imaginar, para lá de todas as existências, o que seja só essência. E esta dificuldade diz muito do abismo de transcendência que nos separa de Deus, e desse infinito que nos distingue. Simone Weil lê isso de forma positiva: “É necessário estar feliz por saber que Deus se encontra infinitamente fora do nosso alcance. Temos assim a certeza de que o mal em nós, mesmo se submerge todo o nosso ser, não macula minimamente a pureza, a felicidade, a perfeição divinas (MENDONÇA, 2022b, p.55).

Nesse texto tão belo, Mendonça vai refletindo acerca da oração do Pai-nosso. No capítulo intitulado “Trazemos por viver ainda uma infância”, em que reflete sobre fazer a vontade do Pai na Terra e nos Céus, ensina que a vontade de Deus não se cumpre sem nós, pois há uma aceitação, um sobressalto da Fé que depende da nossa liberdade. A vontade de Deus é o Amor. São Paulo já radicalizou dizendo que “tudo vai passar”, exceto o amor, a caridade. O Amor precisa ser colocado como programa, prioridade, urgência. O nosso único dever é o Amor. Um amor que nos chama a amar, não pelo nosso coração, mas pelo coração de Deus. Quando a nossa vontade se abre à vontade de Deus, o amor torna-se a sinfonia silenciosa da vida, a sua exaltação humilde e profusa, o seu perfume. Lemos, neste capítulo:

Se tu esperas tornar-te, primeiro, perfeito para então começares a me amar, não me amarás nunca. Eu só não te permito uma coisa, que não me ames. Ama-me, tal como és. Eu quero o teu coração esfarrapado, o teu olhar indigente, as tuas mãos vazias e pobres. Eu amo-te até ao fundo da tua fraqueza. Eu amo o Amor dos pobres. Eu quero ver crescer, no fundo da tua miséria, o Amor e só o Amor. Se para me amar, tu esperas primeiro ser perfeito, nunca me amarás. Ama-me como és”!... “Seja feita a vossa vontade, Senhor”: que eu seja pobre nas suas mãos, que eu não tenha medo do meu coração esfarrapado, do meu olhar indigente, das minhas horas vazias e pobres. Que eu confie no Amor, que eu viva “por dentro do amor, até somente ser possível amar tudo, / e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor” (Herberto Helder) (MENDONÇA, 2022b, p.97-98).

No capítulo intitulado “É de vida partilhada que as nossas vidas se alimentam”, ao iniciar a sua reflexão sobre “o pão nosso de cada dia nos dai hoje”, podemos encontrar algumas referências simbólicas para o sentido da importância da luta por libertação enquanto compromisso de superação das opressões históricas dos povos oprimidos. Tal correlação iremos demonstrar quando tratarmos da relação da teopoética com a Teologia da Libertação.

Ao comentar sobre o significado do pão, Mendonça (2022b, p.101) diz: “Para lá da carga simbólica, o pão revestia-se de um sentido sagrado. Penso que é assim, porque o pão é uma expressão concreta da nossa própria humanidade”. Ainda, diz que o significado pode ser alargado quando buscamos a raiz da palavra:

O pão não é só pão, ele é também o testemunho visível da arte da fraternidade. Na raiz de palavras que nos são tão caras, como “companhia”, “companheiro”, “acompanhamento”, está o pão, o companis, o comer o mesmo pão. Dizer a alguém, “tú és o companheiro ou companheira da minha vida”, significa que há uma partilha do que é alimento, do que dá a vida (MENDONÇA, 2202b, p.102).

Mendonça afirma que o Pai-Nosso é uma oração de compromisso, é uma oração de empenhamento também político no mundo, não é uma prece intimista.

Se eu rezar o Pai-nosso, tenho de rezar pelo pão de todos, daqueles que estão e não estão ao meu lado. Rezar o Pai-nosso torna-me responsável pelo estado do mundo. Nas Comunidades de Emaús, fundadas pelo Abbé Pierre, à mesa, reza-se esta oração: “Senhor, ajudai-nos a procurar o pão para os que têm fome e a procurar fome para os que têm pão”. Procurar o pão para os que têm fome… Buscar aquilo que é essencial à vida, material e espiritual. Procurar fome para aqueles que têm pão… para aqueles que estão satisfeitos, que vivem na sua redoma esquecendo os outros, para aqueles que não podiam fazer alguma coisa e não fazem, para aqueles que nunca pensaram no Pai-nosso como uma oração que nos empurra para a fraternidade, necessariamente (MENDONÇA, 2022b, p.104-105).

Ainda ao refletir sobre o sentido de todas as vidas serem pão, oferece uma leitura sobre a Eucaristia. Afirma que:

A Eucaristia, por vezes repetida como mero culto devoto, rotineiro signo de uma pertença ritual, é, na verdade, o lugar vital da decisão sobre o que fazer da vida. Todas as vidas são pão, mas nem todas são Eucaristia, isto é, oferta radical de si, entrega, doação, serviço (MENDONÇA, 2022b, p.108-109).

Quando rezamos “o pão nosso de cada dia nos dai hoje”, estamos pedindo ao Pai que nos dê Jesus, pois ele é o nosso pão, este pão que nos faz decidir por uma vida que torna-se alimento para os outros, como ele mesmo explica: “Alimentamo-nos uns dos outros. Somos uns para os outros, na escuta e na palavra, no silêncio e no riso, no dom e no afeto, um alimento necessário, pois é de vida (e de vida partilhada) que as nossas vidas se alimentam” (Ibid, p.109). Ainda, aprofundando esta teopoética de Mendonça, no apêndice, encontramos um texto que pode ser uma síntese de sua proposta convidativa a encontrar o Pai-Nosso por meio do Filho que nos é dado como Pão, e que para ter consistência à liturgia, ao sacramentário e à oração cristãs não se trata apenas de uma ritualística, mas uma existência, a de Jesus. Diz Mendonça:

O que é essencial na gramática ritual cristã é a “memória” dessa existência, a comunhão com ela, a apropriação de suas atitudes fundamentais. Modelando-se sobre a existência de Jesus, a vida cristã é chamada a aprofundar e a ampliar em novas possibilidades de expressão a ressignificação por ela realizada. Só assim a palavra e o gesto rituais podem “reativar a força de interpelação narrativa do Cristianismo”. Só assim o Pai-Nosso se reativa como oração de Jesus que nos revela existencialmente como filhos, chamados à mesma comunhão, desafiados à missão urgente do amor (2022b, p.159).

Da teopoética de Mendonça, desaprendemos e aprendemos uma nova gramática para compreender o mistério da revelação que é “comunicada” ao ser humano por meio da cultura. Nesse sentido, procurando modelar o próprio existir a partir da existência de Jesus, aprofundamos novas possibilidades e ressignificação do próprio existir, que na América Latina, ao considerar sua realidade histórico-social, nos chamam a existir a partir de uma espiritualidade sensível-libertadora. Como ousou dizer Mendonça, ao referir-se a um poema intitulado “Um Pai-nosso Latino-Americano”, adaptado de Mário Benedetti:

Pai nosso que estais nos céus, com as andorinhas e os mísseis quero que voltes antes que esqueças como se chega ao sul do Rio Grande [...] Onde quer que estejas santificado seja o teu Nome fechando os olhos para não ver as unhas sujas da miséria [...] Venha a nós o teu Reino porque o teu Reino também está aqui em baixo enfiado nos rancores e no medo nas vacilações do lixo na desilusão e na modorra nesta ânsia de te ver custe o que custar [...] Tua vontade se mistura com a minha a domina, a acende, a duplica mais árduo é conhecer qual é a minha vontade quando creio deveras o que digo crer assim tanto na tua omnipresença como na minha solidão [...] Ontem nos tiraste dá-nos hoje dá-nos o direito de dar-nos nosso pão não só que era símbolo de Algo mas o de migalha e casca o pão nosso [...] Perdoa-nos se pode nossas dívidas mas não nos perdoes a esperança [...] Não nos deixes cair na tentação [...] Arranca-nos da alma o último mendigo e livra-nos de todo o mal de consciência. Amém (MENDONÇA, 2022b, p.166-167).

Em nosso intuito de encontrar uma correlação com a teologia sensível de José Tolentino Mendonça, como refletimos acima com a oração do Pai-nosso, reconhecemos que o pão tem uma dimensão escatológica, ele encontra seu sentido no mistério eucarístico, mas abre- nos à fraternidade, enquanto aprendemos do Pão da Vida que é Jesus a partilhar a vida com os outros, ou seja, alimentarmo-nos uns dos outros, e assim, viver aqui já, na Terra, na perspectiva do Reino definitivo que virá, onde não haverá mais fome, nem de pão, nem fome de fome, pois toda fome será saciada, a plenitude se realizará, lá nos Céus.

A palavra companheiro (companis), que retira seu significado da palavra pão, de onde compreende-se companhia, com quem como o pão, pode ser uma metáfora para expressar a realidade do povo latino-americano, ou seja, companheiros e companheiras que, em companhia, lutam para que o pão nosso esteja em todas as mesas a cada dia, e isso ocorre por meio do empenho político que se realiza em prol da justiça social em favor dos pobres e excluídos.

Nesse sentido, Gustavo Gutiérrez foi sensível em reconhecer a presença do Deus da Vida que caminha na História do povo latino-americano e caribenho, que está com ele em suas lutas, em seu movimento de libertação. O Deus do afeto é o Deus libertador, aquele que vê, ouve, sente, e desce para libertar, e que, se necessário, age com mão forte para acabar com a opressão. Numa proposta de autoconhecimento, num itinerário espiritual do povo, Gutiérrez reconhece uma espiritualidade da libertação que fortalece a identidade cultural latino-americana de companheiros e companheiras das lutas de libertação, entretanto, essa identidade abre-se para os povos, não é exclusivista, mas inclusiva, é alteridade que nasce da exterioridade, que nasce do grito dos pobres e da terra, é uma con-vocação, pro-vocação à justiça e à solidariedade, ao ideal de fraternidade, à amizade social, ao cuidado com a Casa Comum. Um chamamento à Igreja para servir ao Mundo, a partir da opção preferencial pelos pobres.

Em sua obra “Beber no próprio poço. Itinerário espiritual de um povo”, Gutiérrez mostra-se sensível à percepção de que há uma espiritualidade que vem nascendo no meio do povo latino-americano, e ela tem sua base, na religiosidade popular, nas comunidades eclesiais de base, nasce dos encontros de círculos bíblicos, onde procura-se ler a Bíblia numa relação fé e vida, superando as dicotomias de propostas espiritualistas e ou apenas materialistas, numa nova ótica, nascida dos pobres, num compromisso de justiça, nas lutas de libertação, compreendidos como “espiritualidade do seguimento de Jesus”. Contudo, afirma, Gutiérrez, a espiritualidade da libertação não é exclusivamente eclesial, mas a Igreja se soma a esta luta histórica contra a opressão latino-americana.

Em primeira instância, não se trata apenas de um movimento intra-eclesial, mas sim, de algo que está inserido na história do conjunto do povo latino-americano. Não obstante e, por isto mesmo, esse processo engloba e se reflete na própria Igreja. Igreja na sua totalidade. Trata-se de um movimento de grande amplitude, que marca, indelevelmente, o mundo dentro do qual a Igreja está inserida e aquilo que deve realizar, como sacramento de salvação e como comunidade de testemunhas da vida do Ressuscitado (GUTIÉRREZ, 1984, p.40).

As lutas pela libertação do povo pobre representam uma afirmação do seu direito à vida. Segundo Gutiérrez (GUTIÉRREZ, 1984, p.41): “Na verdade, o movimento histórico centrado no processo de libertação constitui o território no qual se dá a experiência espiritual de um povo que afirma seu direito à vida. Este é o solo no qual se formam as raízes da sua fé no Deus da vida”. Uma leitura de fé assim faz compreender que a irrupção do pobre na sociedade e na Igreja latino-americana é a irrupção de Deus em nossas vidas. Quando se começa a viver a experiência histórica de libertação, “desaprende e aprende” que Deus quer a vida daqueles que ama e não a morte, e por isto, esta nova espiritualidade indica o caminho que nos conduz ao Deus de Jesus Cristo.

Na perspectiva tillichiana, no método de correlação, ao propor a análise da situação humana a partir do que seja existencial, reconhecemos que a espiritualidade da libertação corrobora com tal análise, pois, afirma, Gutiérrez (1984, p.41):

Por ora, limitemo-nos a dizer que o processo de libertação é algo global que compromete toda a dimensão humana. Ademais, a pobreza na qual vive a imensa maioria dos latino-americanos não se constitui, somente, num “problema social”. Antes sim, trata-se de uma situação humana que representa um desafio profundo para a consciência cristã.

Na perspectiva da espiritualidade da libertação, o sujeito da experiência espiritual não é uma personalidade à parte, mas um povo inteiro, assim o seguimento de Jesus não se apresenta como rota individual, mas uma aventura coletiva, recuperando o sentido bíblico de marcha de um povo em busca de Deus. Povo a caminho, que deixa atrás de si uma terra de opressão e procura encontrar - sem ilusões, com firmeza - sua rota em meio ao deserto. Espiritualidade “nova” que nos convida a rechaçar a inércia e nos impele à criatividade. Diz, Gutiérrez (1984, p.42):

 A espiritualidade que nasce na América Latina é a da Igreja dos pobres, a de uma comunidade eclesial que procura efetivar sua solidariedade com os mais pobres deste mundo. Espiritualidade coletiva, eclesial, marcada pela religiosidade de um povo crente e explorado.

A espiritualidade da libertação é uma espiritualidade do seguimento de Jesus, conforme ensina, Gutiérrez (1984, p.42):

Neste seguimento de Jesus, o que está principalmente em jogo é a dialética morte-vida. Nela, na vitória do Ressuscitado, revela-se o Deus da nossa esperança. Espiritualidade profunda, rigorosamente pascal. Espiritualidade que leva em conta tudo o que explora e marginaliza o pobre e que se alimenta da vitória contra “a morte antes do tempo” (como dizia Bartolomeu de Las Casas) expressa nessa situação. Espiritualidade representativa da convicção de que a última palavra pertence à vida e não à morte. Espiritualidade que se alimenta do testemunho da Ressurreição, que significa morte da morte, que se alimenta dos esforços libertadores dos pobres por afirmarem seus direitos irrecusáveis à vida.

A espiritualidade da libertação reconhece a dialética existente entre um sistema opressor e o Deus que liberta, entre a morte que simula o dominador e o Deus da Vida, assim, diante das condições existentes na América Latina, escolher a vida é o início de um itinerário espiritual para o seguimento de Jesus. É preciso reconhecer que os pobres e oprimidos, eles mesmos têm “o potencial evangelizador”, como reconheceu Puebla, isto é, a experiência espiritual ocasionada pela revelação “aos mais simples” (Mt 11,25). Entretanto, não basta reconhecer que a vivência popular põe questões e desafios à espiritualidade como referimos; tal exigência evangélica pede uma conversão constante, um estado de “saída” permanente. Explica, Gutiérrez (1984, p.44):

Esta nova realidade nos convida a sair de um mundo familiar e frequentado e nos conduz, em alguns casos, a relermos nossa própria tradição espiritual. Trata-se, sobretudo, de fazer nosso o mundo do pobre, sua maneira de viver a relação com o Senhor e de assumir a prática histórica de Jesus. De outro modo, percorremos um caminho paralelo àquele empreendido pelo povo crente e oprimido. Assim, procurar-se- á estabelecer alguns pontos de ligação entre estes caminhos diferentes: compromisso com os explorados, relações de amizades com alguns deles, celebração da Eucaristia com as comunidades populares etc. Esforços sem dúvida meritórios, porém insuficientes, uma vez que estes vínculos não eliminam o paralelismo mencionado.

Gutiérrez desafia-nos enquanto superar o paralelismo existente através de pontes de ligação, entre eles, propõe a amizade como uma forma de aproximação. Reconhecemos que o esforço desta investigação teológica está dentro desta perspectiva, ou seja, buscando ser uma ponte de ligação entre caminhos diferentes, isto é, da Teopoética à Teologia da Libertação, como expressão da busca existencial humana, enquanto, reconhece-se a pobreza não apenas como um “problema social”, mas que engloba a totalidade, pois como existir com sentido, sem condições para o desenvolvimento humano integral?

Através de uma espiritualidade sensível-libertadora, que nos convida a sair do próprio mundo familiar, a reler a própria tradição espiritual, compreendendo-se como companheiro e companheira, na marcha, enquanto povo a caminho, do Deus da Vida. Alimentando-nos uns dos outros, partilhar a vida, enquanto humanos, ou ainda, enquanto cristãos, reencontrando o sentido da própria experiência de fé a ser vivida enquanto comunidade que se torna testemunha do Ressuscitado e, por isso, escolhe a vida e não a morte, e que se define enquanto na prioridade de amar, compreendendo a sua vocação como serviço ao Mundo, tal como ensina o Concílio Vaticano II no Proêmio da Constituição Pastoral “Gaudium et Spes” sobre a Igreja no mundo de hoje.

As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração. Com efeito, a sua comunidade se constitui de homens que, reunidos em Cristo são dirigidos pelo Espírito Santo, na sua peregrinação para o Reino do Pai. Eles aceitaram a mensagem da salvação que deve ser proposta a todos. Portanto, a comunidade cristã se sente verdadeiramente solidária com o gênero humano e com a sua história (KLOPPENBURG, 1968, p.143).

Como observamos, uma espiritualidade sensível-libertadora já está ocorrendo não só na América Latina, mas em todo o globo, onde os pobres e excluídos, através da amizade com pessoas e grupos que se somam na prática da solidariedade com eles, vão encontrando forças e resistência, em suas lutas de libertação contra a opressão histórica. Nesta investigação, não aprofundamos as teorias históricas como a da dependência que nos ajudam a compreender o processo histórico de libertação na América Latina, pois nosso intuito foi precisamente refletir sobre a temática da espiritualidade. Todavia, não deixamos de mencionar aqui a importância de conhecê-la para um maior entendimento deste grande movimento espiritual que nasceu dentro do contexto das ditaduras latino-americanas na década de 60.

O desafio é imenso, como assinala Gutiérrez, é mais que estar ciente das questões, antes trazer a questão como uma questão de consciência crente, uma questão de consciência humana. Nesse sentido, reconhecemos que a Teopoética favorece a Teologia da Libertação enquanto ajuda-nos a ressignificar o próprio sentido do existir enquanto humanidade solidária, isto é, fraterna.

Como exemplo de uma ponte de ligação entre caminhos diferentes, reconhecemos os esforços que se fazem no serviço da Dimensão para o Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso da Diocese de Bragança Paulista, no Brasil. Uma atividade que nos ajuda a refletir sobre este companheirismo é o Dia Nacional de Ação de Graças, em que as diversas lideranças do município agradecem pelo ano. Durante a festividade, são realizadas apresentações culturais e religiosas de cada uma das religiões representadas, e no final, cada líder religioso traz uma mensagem de esperança e encorajamento para os presentes. A celebração inter-religiosa encerra com a Oração de São Francisco (a oração da Paz) e com a partilha dos pães a todos. Esse momento é muito significativo, pois cada líder vai ao encontro de outro grupo religioso para oferecer o mesmo pão que está sendo partilhado, e como aprendemos, este pão é a própria humanidade que se reconhece como alimento, vida a ser partilhada, empenho a ser realizado para que todos tenham pão, e companhia no caminho para o pão da Paz, pão da Vida.

Este pão que é fruto da justiça pro-voca e con-voca cada um ali presente a comungar deste pão que nos irmana na missão de ser no mundo instrumentos da Paz. Para nós cristãos, este Pão da Vida e da Paz que é Jesus faz-nos encontrar o sentido de tornar-se pão, na companhia dos companheiros em marcha na busca da libertação, do Deus libertador, que nos chama a sair da terra da opressão.

Considerações finais

Somos companheiros e companheiras da Paz. Sim, todos irmãos e irmãs, a caminho, na marcha em busca de Deus, o Criador, Todo-Poderoso, Senhor. Deus da Vida e da Libertação, Pão da Vida e da Paz. Em companhia, vamos alimentando-nos uns dos outros, partilhando a vida, a alegria, a esperança, a tristeza e a angústia, fazendo-nos próximos dos pobres, buscando a cada dia converter-se para superar o paralelismo existente, fruto do colonialismo, desta desumanização feita em nossa América Latina e também por toda parte do globo.

Re-descobrir a espiritualidade sensível-libertadora como aventura coletiva, grande con- vocação, pro-vocação, a todos nós. Participar das lutas de libertação com os pobres e excluídos, empenhando-se politicamente em estar no mundo para servi-lo com amor, na caridade, a forma superior de justiça, isto é, fazendo, aqui na Terra, a vontade do Pai, que já é feita nos Céus. Trabalhar para que todos tenham pão em suas mesas, para que nunca falte alimento algum na mesa de quem não tem, nem mesmo fome de justiça na de quem tem pão. Que a vida seja um viver em com-panis junto do Senhor que prepara com carinho a mesa para o pobre, aqui e lá no Reino. Na Eucaristia, ao alimentar-se do Pão da Vida, possamos também ir se assemelhando a Ele que partilhou sua vida, entregando-a por todos, e assim, como Cristo deu sua vida por nós, também nós devemos dar a vida por nossos irmãos, e nisto está todo o significado do amor.

Entretanto, neste caminho para se tornar companheiro e mesmo seguir em companhia, tornar-se pão, dar-se, é preciso ser livre para amar, e essa busca acontece quando vai se compreendendo o chamado a ser “pobre de espírito”. Só quem é pobre, livre, desprendido, despojado, e essa é a conversão, ama, doa-se, torna-se solidário e fraterno. Por isso, precisamos de Teopoética e Teologia da Libertação, para encontrar uma mística de olhos abertos que nos faça estar em Deus quando olhamos, isto é, que se sinta sua Presença em todas as coisas, contemple o Amor, a maravilha da sua beleza na criação, e sobretudo, encontre seu rosto e ou ainda toque sua carne sofrida nos pobres, na marcha sofrida da história. Mendonça escreve um belíssimo poema chamado “Entrega”, no qual ele demonstra que a mística de olhos abertos nada mais é que viver na abertura a Deus, numa atitude de entrega, de quem está de mãos vazias pronto a receber o que lhe for entregue:

Recebemos a aurora e o verde azulado dos bosques. Recebemos o silêncio intacto dos espaços. Recebemos a música do vento. Mas recebemos igualmente a sofrida marcha da história. O fragmentado desenho sonoro da nossa conversa humana. Esta espécie de parto interminável que, entre dor e esperança, torna semelhante todos os locatários da terra. Debruça-te benigno, Senhor, sobre a nossa fadiga de semeadores mais que ceifeiros, sobre o nosso afano de operários, artífices, aguadeiros e construtores. Reconhece como nosso o assobio dos caminhantes que, ao amanhecer de cada jornada, repartem ao teu encontro. E a nossa oração de hoje se alongue confiante como uma sintonia buscada com o Espírito, entre a leveza do dom e a aspereza do combate (MENDONÇA, 2021, p.26).

Sensibilizados e comprometidos com o processo histórico de libertação, adentramos ao mundo do pobre e mesmo do Senhor com uma grande dose de humildade. A pobreza espiritual não é identificada com o desprendimento de bens materiais, mas dentro de uma linha evangélica numa condição mais profunda. Diz, Gutiérrez (1984, p.140-141): 

Por isso, ela é definida como “atitude de abertura a Deus, disponibilidade de quem tudo espera no Senhor”; e a tarefa indicada para a Igreja será a de pregar e viver a “a pobreza espiritual como atitude de infância espiritual e abertura ao Senhor”. 

A condição de viver a “infância espiritual” é uma atitude de abertura a Deus, e com disponibilidade de estar aberto à esperança. Isto é o que compreendemos num belíssimo poema de Mendonça, o qual ensina que somente vivendo uma mística de olhos abertos e com mãos vazias, podemos receber o pão da Vida, tornar-se pão, alimentarmo-nos uns dos outros, empenhar-se politicamente em estar no mundo, ser companheiro em companhia nas lutas de libertação do pobre, dos excluídos.

Mãos vazias são salva-vidas para tempos difíceis / uma afeição a salvo dos especuladores / o seu vazio é uma pedra / e se observares bem ela flutua / as mãos vazias são selvagens na sua beleza / duras mesmo se vulneráveis / são o esconderijo ideal para guardares relâmpagos / e verdades ferozmente concisas /as mãos vazias esperam não o fim mas a fresta / alagadas na ferrugem / e preferem enlouquecer a acreditar / que a realidade é só aquilo que se vê (MENDONÇA, 2017, p.63).

A partir desta atitude construtivista, onde construímos ao mesmo tempo que somos construídos, sobretudo, considerando a correlação entre a Teopoética de Mendonça e a Teologia da Libertação de Gutiérrez, reconhecemos que nesse espaço fronteiriço o Deus-que-dá- respostas aqui ajudou-nos a fazer as perguntas “existenciais” próprias daqueles que têm fome de pão e fome de fome. As pontes de ligação entre aqueles que comem o mesmo pão é a amizade que une em companheirismo aqueles que vão em companhia dando pão a quem tem fome e fome de justiça a quem tem pão.

Uma espiritualidade sensível-libertadora é expressão de um Resto de religião, resto de transcendência que podemos encontrar como experiência indiferenciada, que retoma a ética, enquanto propicia a alteridade, e ao mesmo tempo é experiência estética, da poesia e da espiritualidade que se revela como rasgo transcendente, mas que é evidente na imanência. Exercício espiritual que faz aquele que contempla ter um novo olhar, que enxerga em tudo o amor. Desse modo, compreende que uma espiritualidade sensível-libertadora nada mais quer que um caminho, um itinerário de fé para viver o seguimento de Jesus enquanto caminho de humanização, enquanto pode propiciar uma experiência cristã kenótica e ou ainda uma experiência metamórfica. Transformar-se em Cristo, tornar-se à sua imagem, ideal de todo projeto humanizador, pois nele está a plenitude do humano, o divino. Ele é a medida de todo ser humano. Estar aberto a permitir-se metamorfosear-se em Cristo e assim reaprender a estar no mundo com a “nova” criação.

A espiritualidade sensível-libertadora ajuda-nos a fazer novas perguntas diante das respostas que temos, ou seja, estamos diante de um fim de um mundo e de um fim de um cristianismo, e por isso mesmo o cristianismo precisa estar em estado de recomeço. O Deus- que-dá-respostas na fronteira chama-nos a recomeçar, desaprender e a reconstruir. Esse é o caminho a ser percorrido enquanto somos corresponsáveis pelo planeta.

Arriscamos afirmar que a espiritualidade sensível-libertadora ajuda-nos a recuperar o sentido do princípio responsabilidade, pois precisamos reavaliar o lugar do ser humano na natureza, para esboçar um novo patamar do pensamento ético. É preciso retomar o sentido de presença, pertença e cuidado do ser humano frente ao mundo - e no mundo. O ser humano precisa reavaliar a responsabilidade que tem diante do poder que está em suas mãos, isto é, a tecnociência, ou seja, ele pode salvaguardar o planeta ou destruir com ele. Jelson Roberto de Oliveira e Anor Sganzerla ao refletirem sobre o pensamento ético de Hans Jonas, reconhecem que se a ação do ser humano tem provocado poderosas alterações na natureza, então é necessário que a ética reveja as suas premissas, pensando não a partir do indivíduo, mas do coletivo. Dizem:

Se o imperativo categórico kantiano estava pautado na ação hodierna do indivíduo, no lugar dela, sugere Jonas, devemos anunciar uma ética da responsabilidade coletiva: “aja de tal modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a terra” (2006, p. 47). Trata-se de um imperativo que provoque a “des-referencialização” da noção de autonomia individualista da ética tradicional, em função da caracterização de uma ética que tenha como base as futuras gerações, ou seja, não só a vida do homem no presente, a vida do ainda não-existente, em seu aspecto futuro (OLIVEIRA; SGANZERLA, 2009, p.264).

Integrar a espiritualidade na vida é compreender o “respiro da própria vida”, ou seja, é fazer a experiência de uma compreensão maior da própria realidade, não se contentando apenas com o que se vê. A sensibilidade própria de quem toca o invisível pelo visível nos deve levar a uma consciência social que não nos faça indiferente às injustiças gritantes do planeta, tornando- nos sensíveis para reconhecer Cristo transfigurado nos pobres, e assim, abertos a vivermos uma aventura coletiva enquanto nos colocamos em marcha numa caravana humana da fraternidade, em prol do cuidado com a Casa Comum.

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Notas

[1] O conceito foi sugerido por Alfredo Teixeira nesta aceção que usamos para interpretar uma certa forma de fazer teologia no espaço público: cf. TEIXEIRA, Alfredo. Para uma teologia sensível, Ponto SJ (28-02-2018), https://pontosj.pt/opiniao/para-uma-teologia-sensivel/. TEIXEIRA, Alfredo. Sentado à soleira do instante, Jornal de Letras, Artes e Ideias 40, n.º 1298, 2020: 13.