Ponto de vista e perspectiva literária em Marcos 5:1-20

Point of View and Literary Perspective in Mark 5:1-20

Carlos Patricio Olivares Rodriguez
Doutor em Teologia e Filosofia pela University of Auckland. Contato: pastorolivares@gmail.com

Fabrício Ferreira Mello
Graduação em Teologia pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP). Contato: fbferreiramello@gmail.com

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Resumo: Desde a segunda metade do século XX, o interesse nos estudos bíblicos experimentou um crescimento significativo. A interface metodológica entre literatura e teologia acompanhou esse crescimento, proporcionando novos campos de estudo. Uma dessas novas áreas, que surge como uma reação a escola crítica histórica, é a leitura crítica da narrativa. Considerada uma das abordagens mais impactantes das últimas décadas, este método procura compreender como o texto funciona, literariamente falando. De maneira mais específica, este artigo se dedica a exposição teórica do conceito de ponto de vista narrativo e seu desenvolvimento, além de aplicá-lo ao texto do evangelho de Marcos 5:1-20, e demonstrar que, além de ser um importante dispositivo retórico, o ponto de vista narrativo pode ser uma ferramenta exegética e teológica útil.

Palavras-Chave: Ponto de vista; Crítica da narrativa; Narratologia; Evangelho de Marcos

Abstract: Since the second half of the 20th century, interest in biblical studies has grown significantly. This growth has been accompanied by the methodological interface between literature and theology, which has provided new fields of study. One of these new areas, which emerged as a reaction to the historical critical school, is the critical reading of narrative. This method, considered one of the most impactful approaches of recent decades, seeks to understand how the text works, literarily speaking. This article specifically focuses on the theoretical exposition of the concept of narrative point of view, its development, and its application to the Gospel text of Mark 5:1–20. It demonstrates that, in addition to being an important rhetorical device, narrative point of view can serve as a useful exegetical and theological tool.

Keywords: Point of view; Narrative criticism; Narratology; Gospel of Mark

Introdução

Desde a segunda metade do século XX, houve um crescimento vertiginoso no interesse acadêmico pelo estudo da Bíblia, mais especificamente, em sua literariedade. A posição tradicionalmente contrária dos evangélicos conservadores ao método crítico-histórico de interpretação bíblica, por considerar a Bíblia apenas mais um documento antigo entre tantos outros (LINNEMAN, 1990, 2009), pode representar uma barreira ao estudo da crítica da narrativa uma vez que, a ideia de criticar o texto pode ter conotações negativas por conta da relação, mesmo que apenas no nível do nome, com o criticismo histórico. No entanto Powell (1990) salienta que entre os estudiosos da bíblia, a tendência é considerar a crítica da narrativa como um movimento independente, mais uma reação ao criticismo histórico do que um desdobramento deste. O surgimento deste movimento se deu pela percepção de que, apesar de ter seu lugar na história da interpretação bíblica, o método crítico-histórico foi incapaz de adotar uma visão abrangente do texto por causa de suas pressuposições.

Considerada a metodologia que mais impactou o estudo dos evangelhos nas últimas décadas (STRAUSS, 2014), a crítica da narrativa é “uma nova abordagem da Bíblia, mas é baseada em ideias que foram usadas no estudo de outras literaturas, por algum tempo” (POWELL, 1990, p. 10). Essa abordagem carrega ao menos dois pontos positivos: 1) a leitura sincrônica do texto, sem a intenção de mapear historicamente aspectos de redação e transmissão; e 2) a consideração pela estética do material bíblico. Essa última consideração, “implica em alterar alguns pressupostos que trazemos conosco. Um deles é que a Bíblia é um texto desinteressante. Talvez possa ser para alguns. Mas se tivermos paciência para lê-la com calma, permitindo que nos guie em seus caminhos, ela poderá se tornar uma leitura surpreendente” (LEONEL e ZABATIERO, 2011, p.123).

Para Marguerat (2018), Seymour Chatman, em sua obra Story and Discourse: Narrative Structure in Fiction and Film, de 1978, é o pai da narratologia moderna. O mesmo autor (2018) pontua ainda, que na década seguinte Robert Alter publicaria o primeiro trabalho aplicando o método à Bíblia, o clássico The Art of Biblical Narrative (1981). Outro trabalho digno de nota é o de David Rhoads e Donald Michie, Mark as Story: An Introduction To The Narrative of a Gospel (1982). O trabalho de Jaldemir Vitório (2016) no Brasil ainda oferece uma introdução fundamental ao campo da narratologia, e os conceitos que ele apresenta em sua abordagem demonstram claramente os benefícios de uma leitura desse tipo.

Analisar a Bíblia utilizando as ferramentas da literatura, ou ainda examinar a Bíblia literariamente tem se mostrado uma tarefa recompensadora. Durante séculos, e mesmo atualmente, a leitura bíblica é realizada maiormente com vistas a compreensão, formulação e sistematização de plataformas doutrinárias, uma espécie de compêndio teológico. É possível afirmar com segurança que isso é tudo o que as Escrituras não são (RYKEN, 2017).

Nas palavras de C.S. Lewis:

Aqueles que falam em ler a Bíblia como literatura às vezes querem dizer, penso eu, lê-la sem prestar atenção ao assunto principal; como ler Burke sem interesse em política, ou ler a Eneida sem interesse em Roma. Isso me parece um absurdo. Mas há um sentido mais saudável em que a Bíblia, uma vez que é afinal literatura, não pode ser propriamente lida, exceto como literatura; e as diferentes partes dela como os diferentes tipos de literatura que são (LEWIS, 1958, p.3).    

A questão central do estudo crítico narrativo da Bíblia é que, longe de desvalorizar a Bíblia, diminuir sua sacralidade ou mesmo equipará-la a qualquer outra literatura, o estudo literário das narrativas contribui para uma melhor compreensão dos conceitos que as doutrinas pretendem expor. Isso acontece pois existem elementos textuais que só podem ser acessadas pelo aparato crítico da literatura, como por exemplo, a análise dos principais elementos da narrativa: o enredo, o personagem e o cenário.

O escrutínio de cada um desses elementos, pode revelar matizes com potencial para descortinar um universo de significados que conduzem o leitor da reflexão sobre texto para uma reflexão no texto. Em outras palavras, o leitor não se limitará a uma leitura objetiva dos fatos para extrair um conceito teológico, em vez disso ele é convidado a entrar na narrativa para perceber e lidar com a subjetividade e complexidade da vida, que os autores bíblicos retrataram com muita habilidade literária.

Recentemente um recurso literário muito utilizado nas narrativas bíblicas tem sido alvo de constante reexame. Trata-se do ponto de vista narrativo. Gary Yamasaki e Daniel Marguerat estão entre os autores mais importantes no estudo atual do ponto de vista narrativo na Bíblia. O conceito de ponto de vista é obtido através do uso metafórico da expressão e essa metáfora tem ligação com o universo cinematográfico (MARGUERAT, 2018). Faz alusão a uma câmera que pode ser posicionada em locais diferentes, a depender de qual perspectiva o diretor do filme (no caso da Bíblia, o narrador) deseja que o expectador/leitor veja a história.

Yamasaki (2006) comenta que os estudos sobre ponto de vista em critica narrativa no NT, não se desenvolveram tanto quanto os de outros elementos literários maiores, por falta de reconhecimento e compreensão sobre como ele funciona. Ele ainda explica que pouco esforço tem sido feito para mudar isso.

Por isso este trabalho se dedica a examinar exegeticamente a porção bíblica do evangelho de Marcos 5:1-20, utilizando as ferramentas da crítica da narrativa, particularmente o conceito de ponto de vista narrativo, objetivando demonstrar sua utilidade exegética e teológica tanto quanto outras instâncias do estudo literário o são.

O trajeto para alcançar este objetivo principal será a revisão da literatura, análise da perícope de estudo e aplicação do conceito ao texto. E por fim, verificar a relação da narrativa objeto de estudo com o restante do evangelho de Marcos.

1. CRÍTICA DA NARRATIVA

A crítica da narrativa é um método de análise literária que se concentra na estrutura e no significado de textos narrativos. “Como um subconjunto da crítica literária, busca entender as características formais e materiais de textos narrativos” (GORMAN, 2017, p.30). Apesar de haver interesse em elementos formais, como a linguagem ou a poética, a crítica da narrativa se concentra em como uma história é contada e qual é seu significado. Strauss (2014) explica que apesar de a crítica da redação analisar o texto em sua forma final tal como o faz a crítica da narrativa, esta última não tem interesse no processo de desenvolvimento do texto, mas em seu funcionamento como uma história unificada. “A crítica da redação, crítica das formas, crítica das fontes e até mesmo a crítica da composição, fragmentam a narrativa para chegar as conclusões que elas perseguem” (RHOADS, p.412, 1982).

Considerado o pai da narratologia moderna, Seymour Chatman (1978) aponta que de acordo com o estruturalismo o texto narrativo é dividido em duas partes, a história e o discurso. A narrativa é a macroestrutura que pode ser transportada de um meio de comunicação para outro. A história, por sua vez, deve ser entendida como o conteúdo (incluindo personagens, cenários, eventos) da narrativa. Por outro lado, o discurso é a maneira como a história é apresentada. Nas palavras de Chatman, a história é o “quê”, e o discurso é o “como” da narrativa.

Powell (1990) comenta que um dos debates mais movimentados entre os estudiosos da crítica literária envolve o conceito de leitor, de maneira que quando um crítico literário se refere ao leitor, é preciso perguntar de que leitor ele está falando. Em estudos literários os críticos consideram a presença de duas categorias imateriais e não históricas chamadas de autor e leitor implícito (VITÓRIO, 2016).

Utilizando os conceitos literários de autor e leitor implícitos temos:

História


Autor real ---------- autor implícito ----------­------- leitor implícito ---------- Leitor real 

A compreensão do que/quem seria o autor e leitor implícito remete a obra de Wayne C. Booth, intitulada The Rethoric of Fiction (1961). Neste trabalho Booth explica que o autor implícito é um conceito que se refere à imagem ou persona criada pelo autor dentro da obra literária. É a voz narrativa que emerge do texto e influencia a interpretação do leitor. É importante lembrar que não se pode confundir o autor implícito com o autor real, uma vez que essa entidade ficcional pode ter características diferentes do autor real, e até mesmo divergir em opinião. Chatman (1978) chama o autor implícito de “segundo eu” do autor real. O autor implícito pode ser percebido através das escolhas narrativas, estilo de escrita e outros indícios transmitidos para o texto.

Da mesma forma o leitor implícito é distinto do leitor real. Esse conceito trata da figura imaginada do leitor que o autor real tem em mente ao escrever a obra. O leitor implícito é moldado pelas pistas deixadas pelo autor ao longo do texto e influencia a forma como o autor espera que a obra seja interpretada. O autor usa estratégias narrativas para evocar uma resposta específica do leitor implícito. Essas estratégias podem incluir o uso de ironia, ambiguidade, tom, entre outros elementos literários, para criar uma conexão entre o autor, o texto e o leitor implícito. Essa conexão, segundo Iser (1989), é imprescindível para a interação com um texto literário. 

Essa abordagem também se preocupa com outros elementos que constituem a história, como por exemplo os personagens, cenários e enredo. Analisando cada um desses componentes, os teóricos conseguem explorar nuances e acessar detalhes que, mais que dispositivos estilísticos ou acessórios estéticos, funcionam como peças importantes da própria retórica. A maneira como um personagem é apresentado na história, por exemplo, pode causar simpatia ou antipatia por parte do leitor. Essa técnica é chamada de caracterização (MERENLAHTI e HAKOLA, 2004)Dessa forma, cada um desses elementos é utilizado pelo autor, para estabelecer um sistema de crenças para o mundo da história. Essa valoração de uma visão de mundo que o autor imprime na narrativa, é chamado de ponto de vista narrativo.

2. PONTO DE VISTA NARRATIVO

O conceito de ponto de vista narrativo é uma elaboração teórica recente em termos históricos. Não foi, senão a partir da segunda metade do século XX, que os estudiosos se voltaram com mais atenção para essa temática. Outras instâncias dos textos narrativos têm recebido mais consideração ao longo da história, entretanto com o aumento da área de interface metodológica entre teologia e literatura, novos campos de pesquisa têm sido desbravados. 

Quando se fala de ponto de vista narrativo, o próprio enunciado pressupõe a existência de um elemento literário chamado narrador, portanto esse será o ponto de partida deste trabalho para a análise do tópico principal.

2.1 O Narrador

 Ao ler uma história, uma questão se ergue em meio a tantas outras: quem está contando a história? Iverson e Skinner afirmam que “o ‘narrador’ se refere a voz no texto que conta a história” (IVERSON e SKINNER, 2011, p.226). Os narradores podem ser classificados como sendo de primeira ou terceira pessoa. Mieke Bal (2021) faz uma interessante distinção entre esses dois tipos ao explicar o impacto retórico de cada um deles. A autora chama o narrador em primeira pessoa de Narrador Personagem e quando ele ocorre na terceira pessoa, Narrador Externo.

A exemplo da distinção que se faz necessária entre autor e leitor implícito e autor e leitor real, também é importante não confundir o narrador com o autor. Segundo Chatman (1978) o narrador é o princípio inventado pelo autor implícito para contar a história, uma vez que este não se comunica diretamente no texto.    

Se uma história inicia afirmando algo sobre um determinado personagem, como por exemplo em Gênesis 6:9 que diz — [...] era Noé um homem justo e íntegro entre os seus contemporâneos; de modo geral, estaríamos inclinados a perguntar com base em que essa opinião foi emitida e por quem, no entanto essa informação é aceita sem questionamentos. Powell (1990) explica que isso se dá por uma convenção típica do gênero narrativo, onde o leitor concorda com o autor em confiar no narrador.

Mas esse acordo não é firmado de forma arbitrária. Para usar as categorias de Bal, o narrador personagem, explicam Michel e Rhoads (1982), tem um conhecimento limitado no mundo da história que se limita a sua própria experiência. Por outro lado, quando o narrador é externo — não é um personagem da história — diz-se que ele é um narrador onisciente. Por isso “jamais duvidamos seriamente de que o narrador sabe tudo que precisa ser sabido a respeito dos motivos e dos pensamentos, da natureza moral e da condição espiritual de seus personagens” (ALTER, 2007, p. 235)

Desta forma, como explicam Iverson e Skinner (2011), o leitor é guiado pelo mundo da história através da voz e dos olhos do narrador, e isso reforça ainda mais a dependência do leitor em relação ao narrador.

2.2 O Ponto de Vista Narrativo

A história contada, é a história de quem conta. Isso significa que não é possível pretender neutralidade narrativa. Por isso o linguista russo Boris Uspensky (1973) conceitualizou o termo ponto de vista, que para ele é uma importante questão composicional em diversas formas de arte, e especialmente na literatura. 

Ainda de acordo com o mesmo autor, o conceito pode ser abordado de várias formas. Ele menciona cinco dimensões do ponto de vista narrativo, a saber: ideológica, espacial, temporal, psicológica e linguística.

Se não é possível trabalhar com a hipótese de neutralidade narrativa, temos, que “o ponto de vista é, portanto, um posicionamento cognitivo que o narrador assume quando começa a contar a história que quer apresentar” (MARGUERAT, 2018, p. 14).

 Na esteira do desenvolvimento do conceito de ponto de vista, outro importante estudioso chamado Gerard Genette (1972) propôs a separação entre voz narrativa e modo narrativo. Para isso, ele formulou o esquema das três focalizações. Ele fala em discursos de focalização zero, focalização interna e focalização externa.

Na focalização zero o narrador conhece mais que os próprios personagens. Ele apresenta informações que os personagens não têm acesso num primeiro momento. A focalização interna ocorre quando o narrador capta seu relato de acordo com um dos personagens, e a focalização externa se evidencia pelo fato de o narrador saber apenas o que os personagens mostram e falam.

Marguerat (2018) explica que essa esquematização fez muito sucesso devido a sua simplicidade. Contudo, o sistema foi criticado pois a simplicidade com que explicava o fenômeno, deixava outras questões em aberto.

Mieke Bal foi uma das críticas ao sistema de Genette ao concluir que ele não distingue entre narrador e focalizador. Ela diz que:

Se vemos a focalização como parte da narração, como é geralmente feito, não fazemos uma distinção entre agentes linguísticos, visuais, auditivos – portanto, textuais – e a coloração. O objeto de sua atividade, que pode ser produzido por um agente diferente (BAL, 2021, p. 38).

Além disso a autora também critica Genette por não explicar a diferença entre o focalizador e o que é focalizado. Crítica sustentada pelo também francês, Alain Rabatel. 

A separação entre voz e modo, presente em Genette, deixa de existir na abordagem inclusivista do ponto de vista, feita por Rabatel. Para ele, “a ideia de focalização externa como foco autônomo é tão mítica quanto a ideia de uma narrativa que se conta a si mesma” (RABATEL, 1997, p.111).

No lugar de trabalhar com as categorias genettianas, Rabatel utiliza outras três categorias, considerando a complexidade do tema. Ele trabalha com os pontos de vista representado, narrado e assertado. 

O ponto de vista representado “deixa-se apreender a partir das relações sintáticas e semânticas entre um sujeito perceptivo (o focalizador ou enunciador), um processo de percepção e um objeto percebido (focalizado)”. O ponto de vista narrado é a “apresentação de informações a partir de um personagem”, sugerindo a empatia do leitor a esse personagem. Por último, o ponto de vista assertado é “assimilável à noção de opinião manifesta” ((RABATEL, 2017, p.122, 137 e 158).

Daniel Marguerat (2018) concorda com as ressalvas ao sistema genettiano feitas por Rabatel, contudo ele adverte que além da expressão de pontos de vista, é possível que haja passagens de natureza factual que, em sua opinião, devem ser consideradas sem focalização.

Após a apresentação o conceito e seu desenvolvimento, o próximo passo é analisar exegeticamente a porção do evangelho de Marcos 5:1-20, e aplicar o método do ponto de vista narrativo.

3. A PERÍCOPE (MARCOS 5:1-20) 

No texto de Marcos 5:1-20 lemos que:

1Jesus e os discípulos chegaram à outra margem do mar, à terra dos gerasenos. 2.Ao desembarcar, logo um homem possuído de espírito imundo veio dos túmulos ao encontro de Jesus. 3.Esse homem vivia nos túmulos, e ninguém podia prendê-lo, nem mesmo com correntes. 4.Porque, tendo sido muitas vezes preso com correntes e cadeias, as cadeias foram quebradas por ele, e as correntes foram despedaçadas. E ninguém conseguia dominá-lo. 5.Andava sempre, de noite e de dia, gritando por entre os túmulos e pelos montes, ferindo-se com pedras. 6.Quando, de longe, viu Jesus, correu e prostrou-se diante dele, 7.gritando em alta voz: — O que você quer comigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Por Deus, peço-lhe que não me atormente! 8.Ele disse isto, porque Jesus tinha dito a ele: "Espírito imundo, saia desse homem!" 9.Então Jesus lhe perguntou: — Qual é o seu nome? Ele respondeu: — Legião é o meu nome, porque somos muitos. 10.E pediu-lhe com insistência que não os mandasse para fora do país. 11.Ora, uma grande manada de porcos estava pastando ali pelo monte. 12.E os espíritos imundos pediram a Jesus: — Mande-nos para os porcos, para que entremos neles. 13.E Jesus o permitiu. Então, saindo os espíritos imundos, entraram nos porcos. E a manada, que era cerca de dois mil, precipitou-se despenhadeiro abaixo, para dentro do mar, onde se afogaram. 14.Os que tratavam dos porcos fugiram e foram anunciá-lo na cidade e pelos campos. Então o povo saiu para ver o que tinha acontecido. 15.Aproximando-se de Jesus, viram o endemoniado, o que antes estava dominado pela legião, assentado, vestido, em perfeito juízo; e temeram. 16.Os que haviam presenciado os fatos contaram-lhes o que tinha acontecido ao endemoniado e também falaram a respeito dos porcos. 17.E começaram a pedir com insistência que Jesus se retirasse da terra deles. 18.Quando Jesus estava entrando no barco, aquele que antes estava possuído pelos demônios pediu com insistência que Jesus o deixasse ficar com ele. 19.Jesus, porém, não o permitiu; ao contrário, ordenou-lhe: — Vá para a sua casa, para os seus parentes, e conte-lhes tudo o que o Senhor fez por você e como teve compaixão de você. 20.Então ele foi e começou a proclamar em Decápolis tudo o que Jesus lhe tinha feito; e todos se admiravam (Tradução NAA).

A apresentação dos pontos de vista nesta perícope se dá na seguinte sequência.

Verso 1: O início do texto é não focalizado. É simplesmente a apresentação de fatos. É interessante observar que, apesar de a maioria das traduções iniciar a passagem informando que Jesus e seus discípulos estavam chegando, o texto grego inicia dizendo apenas, “e chegaram”, deixando o sujeito da oração indefinido. Ainda que o último bloco tenha falado claramente de Jesus e seus discípulos, esse detalhe, juntamente com a não focalização, parece ser um recurso de distanciamento do leitor de qualquer personagem nesse início de relato. 

Versos 2: A afirmação de que o homem está “possuído por espírito imundo” e que “vivia nos túmulos”, nos põe diante do ponto de vista narrado do narrador. Ele poderia ter omitido essas informações, mas optou por se valer desse conhecimento na construção da narrativa. 

Verso 3: Na parte final deste verso o narrador compartilha conosco o ponto de vista do povo. O povo tinha a intenção de prender o homem dominado pelos espíritos imundos, mas todas as tentativas foram frustradas.

Versos 4 e 5: O texto retorna para a exposição de elementos puramente factuais, portanto não focalizados. 

Verso 6: A seguir temos a ocorrência de um verbo de percepção (ver), o que nos indica a ocorrência do ponto de vista representado. A câmera se move para apreender o ângulo de visão do homem possuído por espíritos imundos. 

Versos 7,8 e 9: Esses versos relatam um diálogo travado entre Jesus e o homem possuído por espíritos imundos. Os espíritos exprimem sua opinião a respeito de Jesus referindo-se a ele como “Filho do Deus Altíssimo”. Jesus por sua vez, assume ser mais poderoso que os espíritos quando ordena que deixem o homem. Finalmente os espíritos se identificam pelo nome “legião”. Todo esse diálogo está no domínio do ponto de vista assertado, pois representa apenas o que cada ator expressa cabalmente. 

Verso 10: O pedido dos espíritos imundos configura um ponto de vista narrado, onde curiosamente parece se sugerir algum nível de empatia, uma vez que eles indicam claramente através do pedido, um reconhecimento de sua derrota e não oferecem resistência a Jesus. No verso 11 novamente o texto retorna para o registro não focalizado. 

Verso 12: O pedido dos espíritos imundos que dominam o homem, demonstra claramente que eles entendem que podem fazer com os porcos o mesmo que fazem com o homem, quase que os igualando. Esse é o ponto de vista assertado dos espíritos imundos.

Verso 13: Mais uma vez ocorre o modo não focalizado na narrativa. Contudo, é interessante observar que no episódio anterior, no trajeto até a região de Gadara, ao passo que Jesus salva os discípulos de uma tempestade no mar, os espíritos imundos lançam os porcos ao mar para se afogarem. 

Versos 14 e 15: Mais uma vez a ocorrência do verbo de percepção “ver” indica que este é um ponto de vista representado do povo. Porém ao final do verso 15 ocorre algo interessante. O narrador expressa o seu ponto de vista narrado, ao afirmar que o homem estava agora em “perfeito juízo”, juntamente com uma intervenção que permite acessar a interioridade do povo, quando é explicado que eles “temeram”.

Verso 16: Outra vez voltamos ao registro não focalizado.

Versos 17 e 18: Nestes dois versos Jesus recebe dois pedidos. O primeiro expressa o ponto de vista narrado do povo, desejando que Jesus saia de sua terra. No segundo pedido o ponto de vista ainda é o narrado, mas agora trata-se do ponto de vista do homem que havia sido liberto dos espíritos imundos.

Esses pedidos são interessantes pois relacionam os principais atores da narrativa de uma forma surpreendente. De fato, Jesus recebe três pedidos: o dos espíritos imundos, o do povo e o do homem liberto. 

No texto os únicos personagens a serem expulsos são os espíritos imundos e Jesus. A semelhança dos espíritos imundos, Jesus acata o pedido. Jesus tal qual os espíritos, não apresenta resistência. Os espíritos querem ficar no país e Jesus não permite e os expulsa. O homem por sua vez, deseja sair do país para seguir Jesus.

Verso 19: Aqui temos uma ordem expressa de Jesus ao homem que, agora livre dos espíritos imundos, desejava segui-lo. Este é o ponto de vista assertado de Jesus. Ele diz que o “Senhor teve compaixão” do homem. 

Curiosamente, de todos os pedidos que foram feitos a Jesus nesta narrativa (o dos espíritos imundos, o do povo e o do homem), este último, do homem, era o mais digno de ser aceito. Afinal, Jesus precisava angariar seguidores. Mas ele não autoriza o homem a acompanhá-lo, mas ordena que ele fique e proclame o que Jesus havia feito por ele.

Novamente dois personagens são relacionados de maneira interessante. O homem deveria proclamar, assim como o povo proclamou. O povo proclamou a tragédia econômica da perda dos porcos, o homem deveria proclamar o milagre que salvou sua vida. 

Além disso, num primeiro momento a negação de Jesus ao pedido do homem, causa um efeito estranho. Durante toda a narrativa o leitor é sugestionado a empatizar com Jesus, e após ele atender dois pedidos aparentemente ruins, Jesus nega um pedido legítimo. O que leva o leitor a indagar as intenções de Jesus com essa atitude. Jesus é um personagem multifacetado e complexo nas narrativas dos evangelhos.

Verso 20: O texto conclui com a expressão do ponto de vista narrado, segundo o narrador que, outra vez apresenta o ponto de vista de um aspecto psicológico (todos se admiravam). 

4. VISÃO GERAL DOS ENCONTROS DE JESUS COM ENDEMONIADOS NO EVANGELHO DE MARCOS

 Como explica Brizuela (2022), a bíblia não atribui a Jesus o título de exorcista, e neste trabalho também não irei fazê-lo para evitar qualquer associação com os rituais de exorcismo que se tornaram conhecidos no mundo greco-romano do primeiro século. “Todas essas culturas aceitavam que o universo é povoado de criaturas sobrenaturais, como anjos, demônios, espíritos do além-túmulo etc.” (ARIAS apud VAILATTI, p. 148).  A libertação do homem gadareno em 5:1-20 é o mais vívido e detalhado relato de expulsão de demônios em todo o livro de Marcos, razão pela qual será tomado como paradigmático para a compreensão de outras libertações.

O relato do evangelho de Marcos é repleto de episódios onde as categorias levíticas de pureza e impureza são tensionadas, contudo “a impureza dos espíritos não é uma impureza levítica, mas, antes, uma impureza genérica ou cósmica que está associada com a idolatria e a oposição geral a Deus e ao seu reino inaugurado por Jesus” (LEWIS, 2019, p.156). Portanto esses episódios devem ser entendidos no contexto de um grande conflito entre Cristo e Satanás.

Os encontros de Jesus com pessoas endemoniadas estão nas seguintes passagens: 1:23-28; 3:11-12; 5:1-20; 7:24-30 e 9:14-29. Além disso, há a controvérsia de belzebu e o chamado e instrução dos doze respectivamente em 3:20-27; 3:13-15 e 6:6b, 7, 13. Lewis (2019) comenta que o fato de essas histórias compartilharem características e vocabulário semelhante, torna possível que elas sejam interpretadas em conjunto. 

4.1 A Expulsão de Demônios e o Estabelecimento do Reino de Deus

 O evangelho de Marcos inicia com o anúncio do próprio Cristo de que o reino de Deus está próximo (1:14-15). “O próprio Jesus fez do ministério de libertação um aspecto fundamental de sua tarefa messiânica, aliado ao anúncio do Reino de Deus e ao ministério de cura” (DEIROS, 2021, p. 160). O estabelecimento do Reino de Deus nesse mundo envolve necessariamente a realidade de um conflito cósmico, e isso se torna evidente a partir dos enfrentamentos entre Cristo e os demônios.

Em 5:7 o grito do homem possuído por espíritos imundos, é demonstrativo de como os demônios perceberam a chegada de Jesus a terra dos gadarenos — O que você quer comigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Por Deus, peço que não me atormente! — Os demônios enxergavam aquele lugar como seu território, “agora, entretanto, alguém suficientemente forte, —mas forte que o homem forte (3:27) — havia chegado para subjugá-lo” (BOYD, 2006, p. 204).

Outro elemento que pode ser apreendido das narrativas de libertação é a autoridade de Jesus. No relato do endemoniado na sinagoga de Cafarnaum em 1:21-28, as pessoas se maravilharam e o narrador diz que ele ensinava com autoridade e não como os escribas. Ao testemunhar a expulsão do demônio, o ponto de vista do povo se alinha com o do narrador ao concluir que Jesus possuía autoridade, agora não apenas no ensino, mas também sobre o reino das trevas.

Na controvérsia de belzebu o tema da autoridade também funciona como pano de fundo, mas desta vez não é apenas a autoridade de Jesus que está sendo posta em questão, mas do próprio Deus Pai e do Espírito Santo. Em 3:30 o narrador explica que a parábola do homem forte, contada por Jesus, tinha o propósito de responder a acusação de que ele estava possuído por um espírito imundo. Essa acusação deve ser entendida à luz do batismo de Cristo em 1:9-11, onde diz que o Espírito desceu sobre ele (vs. 10). 

Essa autoridade é concedida aos seus discípulos conforme é possível notar em 6:7 e 13. O fato de os discípulos também expulsarem demônios no nome de Jesus, descortina um elemento ainda mais interessante sobre a autoridade de Jesus sobre os demônios, a saber, que a presença física de Jesus não era necessária para subjugá-los e isto nos conduz ao episódio da mulher sírio-fenícia.

A semelhança das libertações efetuadas por seus discípulos em seu nome sem que estivesse junto deles, Jesus efetuou uma libertação sem estar no mesmo local da pessoa endemoniada. Isso acontece em 7:24-30 onde ele liberta a filha de uma mulher gentia. Com uma única palavra de ordem o demônio que dominava a criança se retirou. Esta narrativa se conecta com o bloco anterior, onde o debate sobre pureza e impureza atinge seu clímax dentro do livro. Após sua explanação a respeito da pureza, Jesus se dirige a um território considerado impuro, o que também se observa no relato de 5:1-20 onde a autoridade é um elemento importante como visto anteriormente. O Reino de Deus não se limita a Jerusalém.

O último embate de Jesus com demônios no evangelho de Marcos está em 9:14-29. Este relato guarda aproximações com o relato do endemoniado gadareno. Jesus se depara com o menino endemoniado logo após um momento de paz (9:2-8), assim como estava dormindo no interior do barco durante a tempestade antes de ser confrontado pelo homem gadareno endemoniado. Assim como no caso do gadareno, na libertação do menino endemoniado a fé é um ponto chave, e a falta de fé dos discípulos é criticada durante a tempestade e aqui também, além da fraqueza da fé da multidão e mesmo do pai do menino.

Outra similaridade dessas duas libertações é o fato de que houve resistência por parte dos demônios em obedecer a ordem de Jesus, o que revela quão ferrenha é a batalha espiritual. Em 5:7-10 mesmo após a ordem de Jesus para que saíssem, a legião não deixa o homem imediatamente e implora que os deixe ir aos porcos. No relato de 9:14-29 o espírito imundo sai após a ordem de Jesus, mas não sem antes causar grande escândalo e deixar o menino com aspecto de morto.

4.2 A Expulsão de Demônios e a Identidade de Jesus: Teologia da Narração Marcana

 O tema da identidade de Cristo parece receber especial atenção e os relatos de libertação servem ao propósito de afirmar aquilo que o narrador declara na abertura do livro (1:1), que Jesus é o Filho de Deus. É possível analisar isoladamente cada narrativa de libertação, contudo, parece mais interessante examinar a questão a partir das intertextualidades entre os relatos.

Durante a viagem até a terra dos gerasenos Jesus acalma a tempestade com uma ordem peculiar — Acalme-se! Fique quieto! — esta ordem “fornece um eco narrativo que recorda o exorcismo do homem possuído no início do evangelho de Marcos (1:25; 4:39). Tal como o homem possuído, o mar está possuído por poderes demoníacos” (IVERSON, 2007, p. 21). 

Em quatro ocasiões os espíritos imundos realizam declarações inequívocas de reconhecimento da identidade de Cristo (1:24; 1:34; 3:12 e 5:7). Jesus calou os demônios em 1:25, 1:34 e 3:12 pois eles desejavam causar alvoroço através da revelação precoce de sua identidade messiânica. Para Iverson (2007) essas declarações revelam que os demônios detêm um conhecimento que vai além do enredo. “Do ponto de vista literário, os gritos dos demônios, na realidade, ocorrem não para benefício de qualquer personagem da história de Marcos, mas para o benefício do leitor” (KINGSBURY, 1989, p.38).

Finalmente, é possível notar algumas conexões entre o episódio do gadareno e o relato do endemoniado na sinagoga. A libertação de 1:21-28 inaugura o ministério de Cristo na sua própria terra, e 5:1-20 marca a primeira jornada de Jesus ao território gentio. Em ambos os casos Jesus é abordado por um homem possuído de espíritos imundos, os demônios reconhecem Jesus e na sequência são expulsos. Ambos os milagres resultam no aumento da fama de Jesus na Galileia e em Decápolis. Jesus inicia seu ministério na Galileia após ser anunciado por João Batista, e ele retorna a região de Decápolis após ser anunciado pelo homem que foi liberto dos demônios.

Os pontos de contato entre as narrativas de libertação nos permitem concluir o mesmo que Iverson: “a intencionalidade da história maior também é evidente na microestrutura de 5:1-20” (IVERSON, 2007, p.25).

5. PONTO DE VISTA: CONTRIBUIÇÃO TEOLÓGICA

Uma análise teológica do evangelho de Marcos, bem como da perícope de estudo deste trabalho, requer a percepção de que, como explica Roldán:       

Estamos diante de um ‘evangelho visual’. Uma história em imagens, no qual a linguagem está a serviço da narrativa. O esforço para narrar como um jornalista moderno faz que o autor veja as ações de Jesus. E, por esse motivo, às vezes incorre em repetições e exageros. Marcos, porém, está interessado em fazer um relato fiel dos acontecimentos. Ele não é apaixonado por estilo nem dado a refinamentos ou a adjetivações. [...] A ênfase de Marcos na imagem, não no discurso, torna esse evangelho um livro atraente e atual. Fácil de entender por não ter uma linguagem complicada ou sofisticada. Atual porque hoje vivemos precisamente no ‘mundo da imagem (ROLDÁN, 2000, p. 20-21).    

Além disso, como bem lembra Ramírez (2010), os estudiosos têm concluído que o drama cristão é fortemente dominado pelo elemento narrativo. Também é preciso reconhecer que apesar de a narratologia não ter destaque na América Latina, como explicam Catenassi e Perondi (2019), “os aportes narrativos sem dúvida são uma base fundamental para o trabalho pastoral estando na raiz de comentários litúrgicos e roteiros homiléticos [...], formação de agentes pastorais, catequistas, entre tantos outros reflexos pastorais concretos” (CATENASSI e PERONDI, 2019, p. 343).

Ramírez (2010) afirma que a narração pode ser classificada como o gênero literário cristão por excelência. Para ele a narratividade é a instância que promove a aproximação entre a linguagem racional da teologia e a experiência prática da fé. A seguir temos um exemplo prático de como o ponto de vista narrativo pode contribuir no fazer teológico.

Imagine que um cineasta decidiu produzir um filme sobre o evangelho de Marcos e agora você tem a oportunidade de não apenas ler, mas assistir a história. Tomando como exemplo o texto de 5:1-20, a velocidade da alternância do ponto de vista observada no texto traz um efeito de intensidade. Como se o conflito descrito no roteiro fosse ganhando volume a cada etapa do drama. A sensação de “adrenalina” causada pelas rápidas tomadas aponta para a intensidade do conflito entre Cristo e Satanás.

Apesar dessa batalha ser violenta em muitos sentidos, “Jesus mostra, na sequência, seu poder sobre o mar, os demônios, a morte e a impureza” (FEE e STUART, 2013, p. 332). Essas demonstrações de poder são pontos de apoio para o argumento maior do autor, que Jesus é o Filho de Deus. “Cada narrativa tem a sua própria matização, mas o quadro é o mesmo. Cristo é o Filho de Deus e o Filho do Homem, o Deus da vida e da morte, o Operador de milagres e o Salvador das garras do pecado” (ROBERTSON, 2011, p. 344).

No trecho em destaque não apenas a submissão dos demônios sublinha a autoridade de Jesus, mas também a forma como as pessoas encontram o homem após a liberação. Apesar disso eles pediram que Jesus se retirasse, os porcos se tornaram uma distração para o povo. “Os donos dos porcos se preocuparam mais com a perda de propriedade do que com o homem que fora

curado. No confronto entre negócio e bem-estar espiritual, os negócios vêm em primeiro lugar” (ROBERTSON, 2011, p. 400).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como é possível observar, Marcos 5:1-20 é um relato plurifocalizado. São apresentados os pontos de vista tanto de Jesus, como do povo e até dos espíritos imundos que dominam o homem. Essa multiplicidade de pontos de vista não está apenas a serviço da estética, mas desempenha uma função hermenêutica. 

O conceito de ponto de vista narrativo apresentado no presente trabalho, evidencia aspectos proposicionais da narrativa, tornando claro o fato de que nenhum discurso é sem origem e sem intenção. Cada formulação e cada manobra realizada demonstra qual é a expectativa do narrador em relação ao seu leitor.

Na perícope analisada neste artigo, a alternância entre de pontos de vista, sublinha um embate que está presente em todo o relato marcano. Desde o primeiro capítulo as categorias levíticas de pureza e impureza, interagem numa relação de constante tensão. Tensão essa que pode ser observada na perícope, entre outros elementos, na estruturação do ponto de vista narrativo.

Quando o narrador escolhe encerrar o relato, deixando seu leitor com o ponto de vista do povo, que olhava a proclamação do homem com admiração, é assim que ele deseja que o leitor siga sua leitura do evangelho, admirado pela intensidade desse conflito entre as instâncias da luz e das trevas.

Além disso, ao analisar as narrativas de libertação no restante do evangelho, é possível apreender como elas estão a serviço do objetivo principal do livro, isto é, pontuar a identidade de Cristo e sua autoridade para subjugar o poder das trevas e cumprir sua missão de resgate da raça humana. Porque o leitor já identifica Jesus com o homem mais forte que amarra o dono da casa e leva seus bens (3:27), ele espera que Jesus também domine o homem endemoniado que ninguém conseguiu controlar.

Nas palavras de Olivares e Michel (2021), apesar de a narratologia, que se utiliza do ponto de vista narrativo, não ser a única metodologia válida constitui uma importante ferramenta exegética, que deve ser incorporada na análise dos textos bíblicos. 

Portanto respondendo à questão principal deste artigo, ainda que o ponto de vista narrativo seja um aspecto narratológico pouco explorado, sua contribuição para o processo interpretativo não deveria ser ignorada nos estudos exegéticos.

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