Antonio Lisboa
Doutor em Ciências da Religião pela UMESP. Professor no Programa de Estudos Pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: allopes@pucsp.br
Iran Gomes Brito
Mestre em Teologia Sistemática pela Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Contato: iranbritocebs@hotmail.com
Alfredo Viana Avelar
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Contato: alfredovavelar@hotmail.com
Resumo: Este artigo explora a jornada humana em busca de uma existência autêntica, livre das "armaduras" — metáforas para as defesas e máscaras que limitam a expressão plena do ser. O autor discute como essas armaduras, comumente associadas a comportamentos rígidos e isoladores, podem impedir o desenvolvimento pessoal e espiritual. Ao contrário, a "transfiguração" representa um processo de transformação e autoconhecimento, inspirado em valores cristãos como a generosidade, a compaixão e a busca pela transcendência. O artigo propõe que, para superar essas barreiras, é necessário cultivar uma vida interior sólida, abrir-se ao amor e ao diálogo, e adotar o serviço ao próximo como caminho para se tornar mais humano. Essa jornada se reflete na fé cristã, que convida cada pessoa a transcender sua própria condição em direção a uma comunhão mais profunda com o divino.
Palavras-chave: armaduras; transfiguração; autoconhecimento; espiritualidade
Abstract: This article explores the human journey in search of an authentic existence, free from "armor" — metaphors for the defenses and masks that limit the full expression of the self. The author discusses how these armors, commonly associated with rigid and isolated behaviors, can impede personal and spiritual development. On the contrary, "transfiguration" represents a process of transformation and self-knowledge, inspired by Christian values such as generosity, compassion and the search for transcendence. The article proposes that, to overcome these barriers, it is necessary to cultivate a solid inner life, open oneself to love and dialogue, and adopt service to others as a path to becoming more human. This journey is reflected in the Christian faith, which invites each person to transcend their own condition towards a deeper communion with the divine.
Keywords: armor; transfiguration; self-knowledge; spirituality
O ser humano é por natureza ser de relações e estas nos constituem. A experiência mística espiritual atesta que somos, além disso, finitos, contudo, abertos ao infinito. A semântica desta expressão não deixa dúvida: a pessoa humana per si e de per si não detém a força que irrompe o tempo e o espaço. Entretanto, em conformidade com a leitura veterotestamentária, sobre o início de cada criatura humana, a abertura à transcendência deve-se, entre outras razões, pelo próprio ato criacional (Gn 1, 26). A meta, a partir disso, não é ser Deus ou ocupar o seu lugar, mas ser como Deus.
Uma vez que somos seres relacionais, a nossa presença junto às pessoas e o nosso testemunho na organização do mundo devem validar o nosso ato criativo, isto é, existimos para sermos como Deus, no genuíno do seu ser e do seu agir. Recorrendo à Sagrada Escritura, sem demora, encontramos acenos do que se trata: “Deus é amor” (1 Jo 4, 8); “Deus é luz, e Nele não há trevas” (1 Cor 1, 5-7). A nossa identidade, portanto, como seres abertos ao infinito, é ancorada no modo da ação de Deus, que age com equidade (Is 30, 18); com sabedoria (Tg 1, 5; 3, 17; Sl 37, 30); com bondade (Rm 11, 22).
Aqui buscamos tocar neste crucial aspecto da vida humana, ou seja, não sendo obra do acaso, o homem e a mulher neste mundo, no esmerado compromisso de ser mais em humanidade, bondade, misericórdia, luz e graça. No entanto, ninguém nasce pronto e acabado: estamos cada um e juntos construindo a estrada, peregrinando para o infinito e o definitivo. Nesta reflexão determo-nos-emos sobre três pontos, a saber: 1) armaduras, experiências humano-existenciais; 2) transfigurações, experiências humano-existenciais e, por fim, 3) o desafio humano de ser mais.
Armaduras são metáforas que retratam as experiências humano-existenciais. Neste quesito, entre as muitas literaturas que tratam da temática, Robert Fisher (2001), na sua Obra “O cavaleiro preso na armadura: Uma fábula para quem busca a Trilha da Verdade” reporta-nos para um caso emblemático. Embora se trate de um conto, em última análise, realça, muitas vezes, o modo humano de proceder. Olhando o cenário do tempo presente, poderíamos ainda dizer que as armaduras são “caixinhas” que alguém cria: seja por afinidade a um estilo de vida seja pelo apreço a alguma ideologia em vista de gerar alguma proteção.
Convém ressaltar que a tendência das “caixinhas” é reduzir quem a produz ou a reproduz. O cavaleiro retratado na fábula, afinado com a sua armadura, embora se gabando das muitas donzelas por ele libertadas, esqueceu-se, além disso, da vida e das pessoas, para quem cada ser humano se faz dom. Acima do cumprimento de funções, está a vida, mas, também, o esforço de sermos excelência na arte de viver com sentido e profundidade.
Sem a profundidade que só as relações interpessoais podem gerar, a superficialidade toma de conta, abrindo espaço para o surgimento de pessoas presas em si mesmas e, desse modo, retidas em suas viseiras. De fato, acentuar pontos importantes para a nossa vida é um dever-compromisso. Porém, para qualquer acento requerer-se-á equilíbrio e sobriedade. Sem estes elementos-virtudes, os acentos tornam-se excessivos e enfraquecem a identidade do ser humano aberto ao infinito e chamado a ser mais, em qualidade de presença no mundo e na convivência com os outros.
Acentos demasiados em determinados aspectos geram pessoas desequilibradas. É como podemos observar na fábula de Fisher: “[...] com o passar do tempo, o cavaleiro tornou-se tão enamorado de sua armadura, que começou a usá-la para jantar e muitas vezes para dormir. Algum tempo depois, ele nem mais se importava em tirá-la” (FISHER, 2001, p. 4). Além da inversão de valores, avista-se, neste contexto, a mortificação da sensibilidade, pois, bitolado no que fazia: “[...] Juliet e Christopher mal conseguiam lhe dirigir a palavra” (FISHER, 2001, p. 4). Alude, portanto, ao isolamento e ao fechamento a que muitas pessoas tendem. Porém, estes, segundo o Papa Francisco, “nunca serão o caminho para voltar a dar esperança e realizar uma renovação” (FT 30).
Diante do ingente desafio humano de escolher o que conta e o que vale a pena, avolumam-se os casos de substituições de pessoas por coisas, de proximidade por distância, de presença por ausência, do real pelo aparente, do diálogo pelo fechamento, do ser pelo ter, da verdade pela mentira, do bem pelo mal e da quantidade em detrimento da qualidade. São armaduras que boicotam a construção da civilização do amor e da edificação da fraternidade universal. A propósito disso, o Papa Francisco explicita que:
O isolamento e o fechamento em nós mesmos ou nos próprios interesses nunca serão o caminho para voltar a dar esperança e realizar uma renovação, mas é a proximidade, a cultura do encontro. O isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim (FT 30).
A “caixinha”, além de isolar-nos do mundo, faz-nos prisioneiros de hábitos que diminuem a nossa condição humana e cidadã. É uma realidade que nos rouba possibilidades, sonhos, projetos, relações, crescimento, alegria, comunidade. À vista disso, o Papa Francisco elenca oito “não deixemos”, sob pena de não darmos conta de cumprir a nossa missão-tarefa no mundo, em família, na comunidade e na sociedade. Assim sendo, ele diz: “Não deixemos que nos roubem a alegria da evangelização” (EG 83); “não deixemos que nos roubem a esperança” (EG 86); “não deixemos que nos roubem a comunidade” (EG 92); “não deixemos que nos roubem o Evangelho” (EG 97); “não deixemos que nos roubem o ideal do amor fraterno” (EG 101); “não deixemos que nos roubem a força missionária” (EG 109); “não deixemos cair os braços” (EG 151); “não deixemos que, à nossa passagem, fiquem sinais de destruição” (EG 215).
Importa, portanto, como em um labirinto, esmiuçar e descortinar o telos da existência que transcende toda vaidade, egoísmo, presunção e a ditadura do eu em desfavor da coletividade. Não sem razão, costumeiramente defrontamo-nos com miudezas trajadas de grandezas. No conto de Fisher, aqui referido, vaidosamente o cavaleiro presume ser bondoso, gentil e amoroso. Todavia, entre o pensamento e o ser, embora aquele parta deste, a harmonia do ser e do pensar articula-se à medida que ocorre outra dinâmica, o fazer, o agir. No caso do cavaleiro, não se autoconhecendo minimamente, pretendia ser o que não era, sendo o que não pensava ser. É a mulher que o ajuda a se autocompreender: “então tira essa armadura para que eu possa ver quem você realmente é” (FISHER, 2001, p. 5). Ela leva-o a refletir que as suas ações fazem parte de um projeto particular, por isso: “você não fez isso por nossa causa. Você fez isso para você mesmo” (FISHER, 2001, p. 5).
As armaduras, embora de algum modo e em algum momento sejam companheiras do ser humano, também, com o transcorrer do tempo e com a maturidade que se adquire no gerúndio, perdem a razão de ser, não existindo mais. O desafio que se põe a esta grandeza é, primeiramente, aquilo que a psicologia chama acesso de si, o famoso “conhece-te a ti mesmo” atribuído a Sócrates e, na perspectiva da espiritualidade, é: o mergulho interior, a vida no Espírito.
Com efeito, é o caminho do autoconhecimento, do entrar para o quarto (Mt 6, 6), do encontro consigo mesmo, pois, como frisa Alex Villas Boas:
O Projeto de Vida como busca de discernimento do sentido da própria vida consiste em perceber o que nos faz viver na dinâmica da consumação e tem como efeito a felicidade, que não é um “produto” a ser consumido, ou algo/alguém que procuramos, prontos a satisfazer-nos, mas antes constitui a obra da vida, que será saboreada em etapas de profundidade diferenciadas para descobrir o melhor de nós, num caminho que concretiza esse desejo em opções concretas de uma vontade consciente (BOAS, 2013, p. 74-75).
O desempenho humano-existencial de cada pessoa é contado, principalmente, pelo projeto de vida que viabiliza o conhecimento de si. Este ladeia a trajetória humana com rumo e sentido, uma vez que somos postos à prova e interpelados, sempre. Ora, se a existência não estiver permeada de sentido ela não sobressai frente às ignomínias, tampouco atravessa ilesa às ventanias das tempestades.
Assim, redimensionar as metas, realinhar o caminho, corrigir estilos é a convocatória para quem pleiteia crescer em humanidade e no sentido da vida, desejando reinaugurar o novo que se renova cada dia, no progresso humano, espiritual e existencial que somos desafiados a experimentar, sempre.
A vida cotidiana de cada ser humano é marcada por provas. Estas, por seu turno, não existem em funções de possíveis quedas, mas em razão da musculatura que cada pessoa precisa desenvolver. O que se fala aqui, portanto, é da resiliência, conceito da física que adentrou a psicologia significando, em última análise, a capacidade que um objeto tem de envergar e não quebrar. Isso, em se tratando do ser humano, é um ideal a ser atingido. Ora, a pessoa rígida não possui esta necessária habilidade, por isso, como o vidro, é inflexível, tornando-se realidade quebradiça.
Assim, o ser humano é desafiado a construir a reserva espiritual que o coloque na estatura da flexibilidade, da serenidade e da tolerância, apesar das circunstâncias adversas, a figura de Jesus é a referência. Percorrendo cada um dos Evangelhos, não faltam exemplos da postura equilibrada Dele, mesmo quando aparentemente o momento pediria o contrário. A realidade da paixão de Jesus, na narrativa de Mateus, revela, por um lado, o seu estado de abandono, abandonado por todos – pois quem ficou do seu lado não detinha poder nenhum, as mulheres. E, por outro lado, a sua serenidade na dolorosa paixão, é própria de quem sabe comunicar a vida e a sua beleza:
De vez em quando a gente encontra algumas pessoas que parecem transfiguradas. Que projetam para fora de si a sua interioridade, seus vinte, trinta, quarenta, cinqüenta anos de vida. De repente tudo se volta para fora. Não precisa ser nada extraordinário, nenhum milagre. É a vida que transborda, sai pelos olhos, pelo rosto, pela alegria, pela festa. Transfigurar (LIBÂNIO, 2004, p. 47).
Fascina, por exemplo, o seu gesto quanto à reação do seu pequeno grupo. Quando este esboça a tentativa de reagir, prontamente, Jesus propõe um corretivo: ‘guarda a espada na bainha’, isto é, um modo alternativo de proceder. A defesa violenta como se constata em muitas práticas nos dias que correm não encontra respaldo em quem se decide pela presidência do bom senso e da razão equilibrada. Eis a motivação do modo silente de Jesus frente às acusações interpostas a sua figura. Como é ponderado em Mateus, Pilatos impressiona-se com a nobreza de Jesus perante as adversidades: “não estás ouvindo de quanta coisa eles te acusam?” (Mt 27, 13).
Transfigurar é transbordar! Por isso, quanto à transfiguração de Jesus, Libânio evidencia que: “só pode transbordar essa paixão imensa para com a humanidade, essa paixão imensa por nós, o desejo imenso de que todos os homens e mulheres sejam felizes, esse desejo de chegar a cada um de nós” (LIBÂNIO, 2004, p. 47).
Realmente, a sensatez, em muitos momentos, dispensa palavras. Tomando, por exemplo, a ação prática de Jesus, na cena aludida quanto à pergunta de Pilatos, Ele não diz sequer uma palavra. Antes, assume as consequências de suas decisões. Trata-se de um modelo a ser tomado em conta, quando frequentemente a história revela-nos que muitas pessoas são incapazes de assumir as responsabilidades de suas atitudes. Quando não se habilita de uma envergadura moral e espiritual, o caminho mais prático a ser percorrido é o da isenção dos compromissos, da terceirização de responsabilidades ou até do cinismo.
As consequências que cada pessoa vive em razão das escolhas que faz, sem dúvida, diz respeito à coerência balizadora do seu modo peculiar de ser. E, em termos de fé cristã, quem a porta não comporta em si miudezas ou posturas covardes de não comprometimento e de inconsequências. Não compactua nos sujeitos crentes em Jesus, uma fé inconsequente e de impostura. Por isso, lamentavelmente constata o Papa Francisco:
Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos incumbe (EG 54).
O verdadeiro amor, diz a fé cristã, é o amor de cruz. E o extremo do amor é a entrega da vida. Quem deseja ser melhor, desafia-se a caminhar com Jesus, no esforço de cada dia ser mais generoso tanto para ser alcançado pelo amor de Deus quanto para alcançar a tantos quantos precisam deste mesmo amor. No laborioso compromisso da nossa salvação, a consciência imperante é esta: é Ele quem nos salva, porém, não nos salva sem a nossa participação.
Entende-se, dessa maneira, o mandato do Senhor de atualizarmos a sua presença: “fazei isto em memória de mim”, ou seja, a Eucaristia. Não sem razão que lindamente o teólogo beneditino, Ildebrando Scicolone, faz a seguinte articulação: “a eucaristia faz a Igreja e a Igreja faz a eucaristia”. Em outras palavras, é a nobre tarefa de eucaristizar a vida. Para tanto, o sacrifício de Jesus no altar da cruz é para ser perpetuado, por isso, em cada eucaristia, participamos, pelo sacramento, da oferta da vida realizada por Jesus. A finalidade é esta: assumirmos com Ele a missão de fazermo-nos oferendas, eucaristia e vida.
Na pedagogia de Jesus, que nos ensina como ofertar a nossa vida, reside o desafio de sermos aventureiros de uma existência que se abre para ser mais, seguindo o seu exemplo, no gesto do lava-pés, a dinâmica de servir. Ser mais neste mundo é servir; é ser bom; é ser com Ele artesão de um mundo que se restaura no amor-serviço. Concerne, dessa maneira, em partilhar a vida: “quem quiser ser o primeiro seja o servidor de todos” (Mt 20, 26).
Assim sendo, abre-se uma fileira de quem, na descoberta da beleza de ser mais, empurra a vida na labuta que vale a pena: Madre Tereza de Calcutá – encarnação da compaixão e da bondade de Deus, personificando a caridade de Cristo, conseguiu ser: “sal da terra”, “luz do mundo”, “fermento da massa”; Santa Dulce dos pobres, também, testemunha fiel do amor do Alto, exemplo de quem se esforçou com a vida e a palavra por atingir as coisas das alturas celestes (1 Cor 12, 31; Cl 3,1), “tocando a carne sofredora de Cristo no povo” (EG 24).
O desafio humano de transcender, para o Papa Francisco, é este: “às vezes sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma prudente distância das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros” (EG 270), amparados pela clareza de que: “a interconectividade existencial atravessa tudo o que vive e expressa a presença de Deus, que, ao criar, deixa a vida com marca divina na história” (LOPES, 2022, p. 438).
Transfigurar é deixar-se lavar a fim de não viver na periferia do mistério. É superar uma mentalidade periférica que impede a difusão de horizontes e a perspectiva de liberdade, dom por excelência de Deus. E quem desta visão encontra-se emergido, escravizado, fica preso, por isso, nas armaduras que a condição humana trinca. O caminho, todavia, é compreender que transfigurar, tarefa de quem se propõe a ser mais, é esforçar-se por manter o espírito elevado, ou seja, transcender.
Em se tratando do ser humano, poderíamos dizer que, embora trabalhoso, por sua natureza é o que se espera, pois, segundo Leonardo Boff, convém que se entenda o humano como um projeto que se lança ao infinito. Para quem se alinha ao projeto de Jesus este compromisso se redobra, porque: “[...] a humanidade é carente do divino e do humano e, para realizar-se, precisará buscar o que pode lhe assegurar um horizonte de sentido, o que está dado em Jesus, o Crucificado que despertou. Ele redireciona o olhar, reconfigura as práticas e redefine a própria existência” (LOPES, 2022, p. 436-437).
Transfigurar-se, meta do humano aberto ao infinito ou do humano mais, é um processo de purificação e de conhecimento de Deus e de si mesmo. Crescer é um processo evolutivo e de maturação que requer o desafio do autoconhecimento. Traduzem bem isso as célebres frases atribuídas a Sócrates: “conhece-te a ti mesmo” e dita de modo mais forte por Jesus, no diálogo com os fariseus diminuídos na sua condição do não conhecimento de si: “quem não tem pecado seja o primeiro a atirar a pedra” (Jo 8, 7).
Com efeito, não se trata de uma tarefa fácil, não sendo o ser humano capaz de tamanha envergadura apenas por esforço próprio. É por isso, que a comunidade de fé cristã formula a Deus a sua prece, no desejo de ser mais: “Ó Deus... alimentai nosso espírito com a vossa palavra, para que, purificado o olhar de nossa fé, nos alegremos com a visão da vossa glória” (MISSAL ROMANO, 1992, p. 188).
Portanto, assim como as armaduras, transfigurações são metáforas que retratam as experiências humano-existenciais. Se a primeira retrata os limites da ação humana e, por certo, o retardamento do desenvolvimento da pessoa enquanto processo de construção contínua, as transfigurações aludem o desempenho e a força de vida que se abre para o mais da qualidade humano-existencial de cada pessoa. A via, por isso, que se toma é a do amor, força forradora do interior de cada pessoa com a reserva espiritual do equilíbrio, na consciência de que a vida é um dom, feito para transbordar.
Interessa, agora, perguntar: qual o itinerário que o ser humano precisa percorrer em vista de realizar a missão de ser mais? A palavra ‘desafio’ significa normalmente o ato de instigar alguém para a realização de alguma coisa ou embates. Todavia, os lances adversos não existem para amedrontarem, tampouco para paralisar quem com eles vê-se às voltas. Pelo contrário, são incitamentos e estímulos.
A título de exemplificação, para a tarefa de ser mais, a pessoa humana precisa cuidar da sua interioridade. Ora, conforme Jesus, o interior é o que conta, pois:
O que sai do ser humano é o que o torna impuro. Pois é de dentro do coração dos homens que procedem aos maus pensamentos, as imoralidades sexuais, os furtos, os homicídios, os adultérios, as ambições desmedidas, as maldades, o engano, a devassidão, a inveja, a difamação, a arrogância e a insensatez (Mc 7, 21-22).
Cuidar do interior é assentar a existência na limpidez, desafio de sermos claros, precisos e transparentes. Nas palavras de Jesus Cristo, a transparência faz parte da vocação humano-existencial de cada pessoa – porque a transparência ilumina:
Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade construída sobre um monte. E, também, ninguém acende uma candeia e a coloca debaixo de uma vasilha. Pelo contrário, coloca-a no lugar apropriado, e assim ilumina a todos os que estão na casa. Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que está nos céus (Mt 7, 14-16).
A partir dessas reflexões, é possível perceber que se trata do testemunho a ser dado no coração do mundo e na vida de cada pessoa. Somos, portanto, chamados a procurar o que nos purifica como força que nos sustenta: “[...] sempre que acedemos ao convite para uma viagem interior é meio-dia. Sempre que nos nascemos e renascemos no encontro com a Palavra é meio-dia” (MENDONÇA, 2018, p. 19).
Justaposto o cultivo da interioridade, localiza-se o desafio da superação da soberba de coração. Ora, a empáfia anda na contramão da compostura e do equilíbrio, entrave à revelação de Deus. Posto que o coração orgulhoso seja incapaz de abrir-se à escuta de Deus, a soberba e o orgulho podem facilmente tomar conta do coração humano. Isso foi o que ocorreu tantas vezes com os fariseus, interlocutores de Jesus, que cheios de si e orgulhosos, cerraram ouvidos, mentes e corações (Lc 11, 37-51; 16,14; Mt 23, 13-27).
Na dureza de coração, interlocutores de Jesus pediam sinais que expressassem a sua identidade e missão. A finalidade não visava a uma identificação com Ele, mas a maldosa trama, que tratava de colocá-lo em situação vexatória. Como o que conta é o interior, questionava-os Jesus porque lhe pediam um sinal (Mt 16, 4, Lc 11, 29-32). O sinal não lhes foi dado – razão: seus corações estavam folheados pelo orgulho e pela força do desamor. Papa Francisco orienta que “todos nós, crentes, devemos reconhecer isto: em primeiro lugar está o amor, o amor nunca deve ser colocado em risco, o maior perigo é não amar (cf. 1 Cor 13, 1-13)” (FT 92).
Neste horizonte, Bento XVI pondera que: “dado que Deus foi o primeiro a amar-nos (cf.1 Jo 4, 10), agora o amor já não é apenas um mandamento, mas é a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro” (DCE 1). O desafio de ser mais se sustenta na experiência de amor forjado na força da oração. Sem o amor e a oração, na perspectiva cristã, nada se vence, tampouco alguma coisa se alcança. Isso explica por que, para Jesus, há desafios que o coração humano só consegue derrotar na experiência de intimidade com o coração de Deus (Lc 4, 31-37).
Ser mais nos exige, na labuta da existência, vencer os desafios interpostos à vida ou, nas palavras de Jesus, vencer o homem forte, isto é, satanás, príncipe dos demônios que hoje, na casa comum, mantêm as pessoas cativas como propriedades suas. Ora, como constatamos, satanás aprisiona o ser humano, levando este a curvar-se ao poder do pecado, na retaliação do mundo, pois bem frisou Jesus: “quem não está comigo, está contra mim e quem não junta comigo, espalha” (Mt 12,30). É como se predica da compreensão do Papa Francisco quanto à tarefa mediadora de cada pessoa:
O mediador, ao contrário, é aquele que nada reserva para si próprio, mas que se dedica generosamente, até se consumir, consciente de que o único lucro é a paz. Cada um de nós é chamado a ser um artífice da paz, unindo e não dividindo, extinguindo o ódio em vez de o conservar, abrindo caminhos de diálogo em vez de erguer novos muros (FT 284).
Preso no egoísmo, o demônio é inimigo da salvação do homem, isto é, do seu progresso humano e existencial. A sua obra é dispersar para arruinar. A obra do Senhor é reunir para salvar, por isso o nome de Cristo é reunião. Nosso desafio é a construção da nossa inteireza. Assim, somos, sobretudo, convidados a acolher Cristo na vida. É como fizeram os discípulos de primeira hora que retiveram Jesus, dizendo “fica conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando” (Lc 24, 29). Na retenção, o acolheram como hóspede e, sendo mais, saíram da incredulidade à hospitalidade que fomenta a comunhão.
Vale ressaltar que a comunhão exige a superação da mesquinhez e da pobreza espiritual, pois: “o homem é chamado a uma plenitude de vida que se estende muito para além das dimensões da sua existência terrena, porque consiste na participação da própria vida de Deus” (DCE). Reside, dessa forma, a necessidade de tomarmos em consideração a unidade. Para tanto, importa administrar os nossos limites, entre eles a indisposição de ceder e de encontrar a justa medida pelo diálogo.
Sem o diálogo que intercambia a convivência e a paz com os diferentes, os conflitos crescem, diminuindo, portanto, a nossa condição humana. O caminho e, por isso, o convite irrenunciável, é o de entrarmos no concerto. Em tal caso, como o carro que ao apresentar ruído precisa da oficina mecânica, a convivência entre os diferentes humanos, para o mais da qualidade, precisa igualmente da oficina do Espírito Santo. De fato, não damos conta da unidade e de agir por nós mesmos. Neste ínterim, o Papa Francisco sabiamente adverte-nos: “ninguém se salva sozinho, isto é, nem como indivíduo isolado, nem por suas próprias forças. Deus atrai-nos, no respeito da complexa trama de relações interpessoais que a vida numa comunidade humana supõe” (EG 113).
O ser humano é frágil e a sua ação comporta limites, razão pela qual não poucas vezes nos portamos como filhos da perdição, não querendo participar da comunhão (Lc 15, 28). Porém, o desejo de ser mais há de levar-nos à compreensão de que: “o amor é possível, e nós somos capazes de o praticar porque criados à imagem de Deus. Viver o amor e, deste modo, fazer entrar a luz de Deus no mundo” (DCE 39). A consciência de nossa responsabilidade de fazer deste mundo uma realidade melhor faz-nos cientes igualmente de que: “os valores tendem sempre a reaparecer sob novas formas, e na realidade o ser humano renasceu muitas vezes de situações que pareciam irreversíveis” (EG 276).
Diante do exposto, vimos que, embora haja outros pontos que edificam o ser humano, destacamos três para os quais devemos deter-nos, a saber: o cuidado da interioridade; a superação da soberba de coração; a comunhão que nos coloca para além de nós mesmos, ultrapassando, dessa maneira, a idolatria do eu, condição importante para alicerçarmos as relações no diálogo que enobrece e enriquece a dinâmica da vida humana, que se abre no tempo e completa-se na eternidade!
A abordagem do texto enfatiza que a experiência humana é um constante desafio de superar as próprias limitações e amadurecer espiritualmente. As "armaduras" representam as defesas e limitações que construímos, seja para nos proteger ou para nos conformar a expectativas sociais e pessoais, mas que, paradoxalmente, podem nos distanciar de uma vida plena e autêntica. Esse isolamento resulta em uma vida superficial, em que relações e ideais ficam comprometidos.
Em contraponto, a "transfiguração" é a metáfora para a libertação e expansão do ser, uma transformação interior que permite ao indivíduo abrir-se ao outro e ao sagrado, cultivando virtudes como compaixão, generosidade e autenticidade. Inspirado nos ensinamentos cristãos, argumentamos que o caminho para "ser mais" inclui o cultivo da vida interior e uma disposição para o serviço ao próximo. A jornada de autoconhecimento e espiritualidade é assim fundamental para que cada pessoa transcenda suas "armaduras", encontrando sentido na prática do bem e na busca de uma comunhão com o divino e com a comunidade.
Esse processo de crescimento, segundo esta reflexão, não é fácil e exige esforço e dedicação, mas é a via pela qual se pode experimentar uma verdadeira realização humana e espiritual. Desta forma, "ser mais" é um chamado contínuo para viver uma vida de propósito e amor, transcendendo as limitações humanas e construindo uma existência que contribua positivamente para a sociedade e reflita a presença divina no mundo.
Armaduras são metáforas que ajudam a compreender a dinâmica da existência humana. No geral, servem tanto de proteção quanto de fechamento. Contudo, sabemos que: a vida isolada, o caminho isolado, o isolamento é um desserviço à nossa própria condição. Por isso, quem deseja atuar neste mundo, ajudando-o a ser melhor, necessariamente abre-se ao desafio de ser mais.
Assim, se nos aventurarmos tecelões, o tecido não seja de fiações que aprisionam (armaduras), mas de gestos que apontam para o próximo e para o bem do mundo. No fim das contas, o que vale nesta vida é a conclusão a que podemos chegar, isto é, que “a ternura é o caminho que percorreram os homens e as mulheres mais corajosos e fortes” (FT 194). Pois: “é nossa humilde convicção que o divino e o humano se encontram no menor detalhe da túnica inconsútil da criação de Deus, mesmo no último grão de poeira do nosso planeta” (LS 9).
Não vem o caso ser o caminho fácil ou difícil, o que importa é a aventura do autoconhecimento, na viagem interior que cada pessoa precisa fazer. Sem este percurso, não se tem encontro com a fonte. E, na perspectiva da fé cristã, a fonte é Deus, origem de tudo. É nesta maratona da volta para si mesmo que se desenvolve a sensibilidade, aspecto próprio da condição humana, reflexo do divino, a fonte.
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