Mayron Rodrigues Cordeiro da Silva
Mestre em Letras pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Contato: mayronrcs@gmail.com
Resumo: Este trabalho investiga a presença de elementos cosmogônicos na obra Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, buscando estabelecer pontes entre a literatura contemporânea e os mitos antigos. A partir de um arcabouço teórico que inclui autores como Mircea Eliade (2020), Northrop Frye (2014), Joseph Campbell (2024) e Adam Roberts (2018), o estudo analisa como o mito, enquanto estrutura narrativa, influencia a construção de textos literários, mesmo em gêneros aparentemente distantes como a ficção científica. Por meio da comparação entre a Teogonia de Hesíodo, Metamorfoses de Ovídio e Fahrenheit 451, o trabalho demonstra como o ciclo cosmogônico – criação, transformação, decadência e recriação – se manifesta na obra de Bradbury. O estudo demonstra a perenidade dos mitos e sua capacidade de adaptação a diferentes contextos históricos e culturais.
Palavras-chave: Fahrenheit 451; Cosmogonia; Mito; Literatura; Ray Bradbury
Abstract: This paper investigates the presence of cosmogonic elements in Ray Bradbury's Fahrenheit 451, seeking to establish bridges between contemporary literature and ancient myths. Based on a theoretical framework that includes authors such as Mircea Eliade (2020), Northrop Frye (2014), Joseph Campbell (2024) and Adam Roberts (2018), the study analyzes how myth, as a narrative structure, influences the construction of literary texts, even in apparently distant genres such as science fiction. By comparing Hesiod's Theogony, Ovid's Metamorphoses and Fahrenheit 451, the paper demonstrates how the cosmogonic cycle – creation, transformation, decay and recreation – manifests itself in Bradbury's work. The study demonstrates the permanence of myths and their ability to adapt to different historical and cultural contexts.
Keywords: Fahrenheit 451; Cosmogony; Myth; Literature; Ray Bradbury
O mito e a literatura sempre estiveram relacionados nas discussões literárias. Embora geralmente entendido como um assunto relegado às sociedades antigas ou em estado de isolamento, o mito pode ser percebido em pleno século XXI como um elemento entranhado nas práticas e no comportamento do homem contemporâneo. Da mesma forma, a literatura, ao longo de milênios acompanha o desenvolvimento humano, experimentando diversas formas e abordando diferentes temas, sendo parte constituinte da produção humana.
Nesse sentido, este trabalho se propõe a observar a obra Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, nas suas relações com o tema mitológico da cosmogonia. Entendendo que a cosmogonia implica a criação do universo e sua ordenação, bem como refere-se às transformações experimentadas pelo mundo, sua possível decadência e futura recriação, buscamos analisar esses elementos na obra de Bradbury. Fahrenheit 451 aparentemente não é um texto cosmogônico, mas nos apoiamos no entendimento de que o mito é estruturador do texto literário, inclusive de textos de ficção científica, apesar de sua linguagem técnico-científica.
O presente trabalho se desenvolve em três partes após esta introdução e conta com uma sessão de considerações finais. A primeira parte apresenta as bases teóricas para a compreensão das relações entre o mito e a literatura a partir das perspectivas de Eliade (2020), Frye (2014), Campbell (2024) e Roberts (2018). Na segunda parte, buscamos retomar o tropo cosmogônico na Teogonia, de Hesíodo, e em Metamorfoses, de Ovídio, apresentando a possibilidade de relacionar o tema ao romance Fahrenheit 451. Na terceira parte analisamos a narrativa de Ray Bradbury e observamos como o ciclo cosmogônico é identificado no texto. Por fim, apresentamos uma síntese das observações realizadas e discutimos brevemente como os aspectos notados relacionam-se aos estudos mitológicos dos autores tomados como referencial teórico.
A relação entre literatura e mito é discutida há séculos, sendo abordada na República de Platão (2020) por uma perspectiva crítica, na qual os mitos seriam vistos como perpetuadores de ideias errôneas e falsas. Aristóteles (2017), na Poética, também aborda o tema, mas dessa vez o “mythos” é tratado de maneira mais positiva, por seu caráter narrativo e pela capacidade didática que tem. Em ambos os casos, o mito já vinha perdendo seu potencial sagrado e passava a ser considerado por seu caráter alegórico e ilustrativo. É relevante perceber, no entanto, que em Aristóteles, o mito já se relaciona com a narrativa literária, servindo de influência para esta.
Discutindo o mito em outros ambientes para além do clássico greco-romano, Mircea Eliade defende que o mito é uma forma de perceber e expressar a relação do humano com o sagrado. Eliade (2020) apresenta diversos exemplos de sociedades em que o aspecto religioso do mito ainda persiste atualmente. Mas ele vai além, e explica que na sociedade ocidental, aparentemente livre do mito, ele ainda se faz presente com outras roupagens que não a religiosa, pois, “O pensamento mítico pode ultrapassar e rejeitar algumas de suas expressões anteriores, tornadas obsoletas pela História, pode adaptar-se às novas condições sociais e às novas modas culturais, mas não pode ser extirpado” (ELIADE, 2020, p.152). O que importa para Eliade é que o mito, além de uma forma de perceber e expressar a relação do ser humano com o mundo e o sagrado, é um processo que permanece presente na sociedade contemporânea.
Sobre o mito, ainda, é importante considerar os estudos de Northrop Frye. Como crítico e teórico literário, Frye abordou o mito dentro da literatura, especialmente no terceiro ensaio de Anatomia da Crítica chamado de “Crítica Arquetípica: Teoria dos Mitos”. Ele argumenta que os mitos são fundamentais para a estrutura narrativa e para a crítica literária, funcionando como arquétipos que transcendem a narrativa individual:
Os princípios estruturais da literatura, similarmente, devem ser retirados da crítica arquetípica e anagógica, os únicos tipos que pressupõem um contexto mais amplo da literatura como um todo... o modo mítico, as histórias sobre deuses, nas quais as personagens possuem o maior poder de ação possível, é o mais abstrato e convencional de todos os modos literários, assim como os modos correspondentes em outras artes – a pintura religiosa bizantina, por exemplo – mostram o mais alto grau de estilização em sua estrutura. Por isso, os princípios estruturais da literatura estão tão intimamente relacionados à mitologia e à religião comparada quanto os da pintura estão na geometria. (FRYE, 2014, p.261)
Em sua obra, Frye propõe que a literatura é um sistema que pode ser analisado a partir de quatro estágios e arquétipos formadores “de um mito unificador central” (FRYE, 2014, p.333). Em suma, a literatura e o mito são considerados interdependentes, sendo que os mitos fornecem a base simbólica que enriquece as narrativas literárias, pois estas são herdeiras da linguagem mítica.
Outra contribuição relevante para o estudo das relações entre mito e literatura provém de Joseph Campbell, que entendia que muitos mitos ao redor do mundo seguem uma estrutura narrativa semelhante, que envolve etapas como a chamada à aventura, a iniciação e o retorno. Isso se daria porque para Campbell (2024, p.17) teríamos “sempre a mesma narrativa que muda de forma e, no entanto, é maravilhosamente constante”. Esse padrão é encontrado no que o autor entende como o conceito do monomito ou a jornada do herói, um padrão narrativo de “separação do mundo, uma penetração em alguma fonte de poder e um retorno que melhora a vida” (Campbell, 2024, p.45). Para Campbell, os padrões percebidos nos mitos revelam verdades universais sobre a condição humana e sua busca por significado existencial. Ele entendia que os mitos têm um papel psicológico, ajudando os indivíduos a entender suas próprias vidas.
Visto que nosso interesse de análise é uma obra de ficção científica, é importante destacar finalmente a tese de Adam Roberts (2018). Roberts entende que a ficção científica, em essência, é uma atualização dos mitos antigos, afinal “a vida humana tem se deslocado de uma compreensão essencialmente religiosa do universo e do lugar que ocupamos nele para um entendimento secular da essência” (ROBERTS, 2018, p.62). No lugar de deuses e monstros, a ficção científica explora temas como a exploração espacial, a inteligência artificial e a engenharia genética, mas a estrutura narrativa e o desejo de compreender o universo e responder questões caras à humanidade permanecem os mesmos. Roberts argumenta que a diferença atual está na forma como abordamos as mesmas questões, não mais como crenças literais, mas com um envolvimento metafórico.
Em suma, ao abordar o mito, Eliade enfatiza a relação da humanidade com o sagrado enquanto Frye analisa a relação dos mitos e a estrutura da literatura. Campbell, por sua vez, investiga os padrões narrativos comuns nos mitos e sua relevância psicológica. Já Roberts entende que, no quadro da literatura atual, a ficção científica configura-se como um gênero que atualiza os temas mitológicos e os comunica em uma linguagem inteligível para o homem contemporâneo.
Antes de prosseguir, vale pontuar uma última questão. Um desses temas caros à narrativa mitológica é a cosmogonia. A cosmogonia trata da explicação mítica, filosófica ou mesmo científica quanto à origem do universo e da realidade, sendo um dos tropos mitológicos típicos. Eliade entende que os “mitos de origem prolongam e completam o mito cosmogônico: eles contam como o Mundo foi modificado, enriquecido ou empobrecido” (Eliade, 2020, p.26). Dessa forma, a cosmogonia relaciona-se com a criação do mundo e as modificações realizadas no universo. Segundo o autor, as transformações tendem a levar à degradação progressiva, requerendo a recriação. Especialmente nas culturas judaico-cristãs, essa recriação implica a restauração de um paraíso perdido.
Campbell também explora a cosmogonia através de seu conceito de monomito e da jornada do herói. O herói está conectado ao processo cosmogônico e o “efeito da aventura bem-sucedida do herói é o desbloqueio e a liberação de novo fluxo de vida no corpo do mundo” (CAMPBELL, 2024, p.49). Por sua vez, Frye entende a cosmogonia não apenas como um relato de criação, mas como um elemento estruturante da narrativa. Frye discute como os mitos de criação são arquétipos que podem ser categorizados e analisados, revelando como as narrativas da literatura utilizam essas histórias fundamentais para explorar temas como a ordem, o caos e recriação, tudo em uma forma de processo:
As analogias de inocência e experiência representam a adaptação do mito à natureza: elas nos dão não a cidade e o jardim no destino final da visão humana, mas o processo de construir e plantar. A forma fundamental de processo é o movimento cíclico, a alternância entre sucesso e declínio, esforço e repouso, vida e morte, que é o ritmo do processo. (FRYE, 2014, p. 292)
Eliade (2020, p.58) corrobora essa perspectiva ao entender que o mito cosmogônico está relacionado à ideia de fim de mundo, e, portanto, implica uma ideia cíclica de criação, degradação e recriação. Nesse sentido, como veremos a seguir, essa dinâmica é importante para entender como o mito cosmogônico é adaptado e atualizado em Fahrenheit 451.
Vale ressaltar também que há relações entre a literatura, o mito e a religião. Tanto Eliade (2020) como Campbell (2024) expõe as relações entre o mito e a religião ao apresentar diversos exemplos de religiões, desde o cristianismo até religiões asiáticas, africanas e nativo-americanas. O mito não apenas narraria uma história, mas moldaria a forma como o homem entende o mundo e a si no cosmo. Além disso, o mito é orientador da vida conquanto estabelece as bases para as práticas ritualísticas, religiosas, que medeiam a relação entre o homem, a natureza criada e as divindades. Em outros termos, o mito fornece as narrativas que ordenam a vida enquanto a religião organiza o mito e o torna funcional por meio de sua aplicação prática na vida comunitária.
Frye (2021) corrobora essa perspectiva ao assumir duas acepções não excludentes do termo mito. Para ele o termo em seu contexto literário significa narrativa, enredo, ordenação sequencial de palavras. Porém, Frye não descarta por o aspecto sociorreligioso do mito, pois enquanto narrativa em geral ele é literatura, porém como uma narrativa específica com função social ele é “um programa de ação para uma sociedade específica” (FRYE, 2021, p. 91). Nesse sentido o mito refere-se tanto à narrativa em si como a uma narrativa que propõe formas de ação, de vida, a uma comunidade.
Por fim, no cerce dos estudos de Frye (2014; 2021) está a ideia de que no ocidente o mito bíblico, da religião cristã, é essencial para a produção literária e para a sua recepção. Os elementos estruturais e simbólicos seriam direta e indiretamente influenciados pela narrativa bíblica, dela herdando arquétipos narrativos, símbolos e formas narrativas. Sobre essa relação entre a literatura e a Bíblia, Roberts (2018) defende a tese de que a Ficção Científica é também herdeira do cristianismo. Para o autor o cristianismo possui forte influência sobre a literatura, especificamente a literatura especulativa. O autor argumenta que tanto a vertente católica do cristianismo como o protestantismo influenciaram e continuam influenciando a literatura fantástica e a literatura de ficção científica.
Na tradição ocidental, principalmente na literatura, a noção de cosmogonia está intimamente relacionada aos textos clássicos e, entre estes, destacam-se a Teogonia, de Hesíodo, e Metamorfoses, de Ovídio. Ambos os textos tratam da criação do mundo e sua ordenação, no entanto as narrativas apresentam diferenças.
Na Teogonia, a cosmogonia refere-se à origem e à ordem do cosmos, ou seja, a formação do universo e dos deuses. Hesíodo (2022) apresenta um relato mítico sobre como o mundo surgiu a partir do Caos — um vazio primordial — e, em seguida, como dele emergiram os primeiros elementos fundamentais. A cosmogonia de Hesíodo explica o surgimento e a hierarquia do universo, mostrando como o caos foi organizado em um cosmos ordenado por meio das interações, intervenções e sucessões de várias gerações de deuses e titãs, até a ascensão de Zeus e o estabelecimento de uma ordem divina.
Bem no início, Abismo nasceu; depois,/ Terra largo-peito, de todos/ assento sempre firme,/ dos imortais que possuem o pico do Olimpo nevado/ e o Tártaro brumoso no recesso da terra largas-rotas,/ e Eros, que é o mais belo entre os deuses imortais,/ o solta-membros, e de todos os deuses e todos os homens/ subjuga, no peito, mente e desígnio refletido.// Do Abismo nasceram Escuridão e a negra Noite;/ de Noite, então, Éter e Dia nasceram,/ que gerou, grávida, após Escuridão unir-se em amor.// Terra primeiro gerou, igual a ela,/ o estrelado Céu, a fim de encobri-la por inteiro/ para ser, dos deuses venturosos, assento sempre firme;/ gerou as enormes Montanhas, refúgios graciosos de deusas,/ as Ninfas, que habitam montanhas matosas;/ pariu também o ruidoso pélago, furioso nas ondas,/ Mar, sem amor desejante; e então/ deitou-se com Céu e pariu Oceano fundo-redemunho,/ Coio, Creio, Hipérion, Jápeto, / Teia, Reia, Norma, Memória,/ Febe coroa-dourada e a atraente Tetís./ Depois deles, o mais novo nasceu, Crono curva-astúcia,/ o mais fero dos filhos; e odiou o viçoso pai. (HESÍODO, 2022, p. 45 e 47)
O trecho da Teogonia acima narra o início do cosmos. Primeiro surge o Abismo, que se refere ao Caos nessa tradução, posteriormente surgem a Terra, o Tártaro e Eros. Esses seres, que podem ser entendidos como divindades, passam a gerar progressivamente outras divindades até que alcançamos Crono, o ser que participará ativamente da geração dos deuses do Olimpo e sua posterior tomada do governo do cosmos. Percebe-se no excerto a personalização de elementos naturais, além de expor uma sequência de criação e ordenação do mundo como consequência direta das ações e interações divinas.
Em Metamorfoses, a cosmogonia descreve também a formação do universo a partir de um estado inicial de caos, um conceito tratado de forma diferente. Ovídio (2024) apresenta o caos como uma massa informe, uma espécie de desordem, onde todos os elementos — terra, água, fogo e ar — estão misturados e sem harmonia. Para organizar esse caos, surge uma entidade (não identificada explicitamente como um deus, mas atuando de forma criadora) que separa e ordena os elementos:
Antes do mar e terras e céu que tudo recobre/ tinha a mesma face por todo o orbe a natura,/ que se chamava caos, uma massa rude e confusa,/ nada além de um peso inerte, e, no todo, adensadas,/ mal coligadas, em discórdia, as sementes das coisas.// [...] Tal litígio um deus dirimiu e a melhor natureza;/ pois aparou do céu as terras, das terras as ondas,/ e separou o líquido do céu dos ares espessos;/ esses desenvolveu e eximiu do cego conjunto/ e a seus lugares atou, separados em paz e concórdia.// [...] Quando esse deus, não se sabe qual, a massa disforme/ dessa forma dispôs, reduzindo-a a membros dispostos,/ primeiramente a terra, a fim de que em todas as partes/ fosse não irregular, num grande orbe formou-a. (OVÍDIO, 2024, p. 33 – 35)
Dessa forma, o universo toma forma com a criação do mundo físico e da vida: o ser humano é criado posteriormente à imagem dos deuses, destinado a reinar sobre a criação. A cosmogonia em Metamorfoses é uma narrativa de transformação e ordem a partir do caos desordenado, destacando a ação de uma força criadora que organiza o cosmos e marca o início das constantes mudanças e metamorfoses, mais orgânicas que resultado de intervenções divinas, mas que permeiam toda a obra.
Fahrenheit 451 é um romance distópico de ficção científica, escrito por Ray Bradbury e publicado pela primeira vez em 1953. Escrito nos anos iniciais da Guerra Fria, o livro é uma crítica ao que Bradbury viu como uma crescente e disfuncional sociedade americana e ao que ocorria no mundo pós Segunda Guerra. A ideia inicial do romance surgiu quando, em algum momento de 1944, o jovem Bradbury leu a obra Darkness at Noon, no Brasil O zero e o infinito, do autor húngaro Arthur Koestler. Essa obra explora os abusos do regime stalinista e a caça à cultura e aos intelectuais e tornou-se um ponto de virada na vida de Bradbury. Além disso, o autor era um amante de bibliotecas. Não tendo frequentado a universidade, mas tendo crescido e vivido entre livros
O “holocausto intelectual” revelado por Koestler recarregou a convicção do próprio Bradbury de que a literatura é tão preciosa quanto a própria vida. Desde muito jovem, ele foi muito afetado pelos relatos do incêndio da biblioteca do acidente em Alexandria e pela perda de muitas obras clássicas que agora conhecemos apenas pelo título ou por meio de fragmentos de pergaminhos sobreviventes. Bradbury praticamente vivia nas bibliotecas públicas de sua época e passou a ver as estantes como populações de autores vivos: queimar os livros é queimar o autor, e queimar o autor é negar nossa própria humanidade. (ELLER, 2018, p. 168)[1]
Após a ideia inicial em 1944, nove anos passaram-se e muitos outros textos e livros foram lançados pelo autor até que Fahrenheit 451 fosse publicado em 1953. O romance apresenta um futuro distópico em que todos os livros são proibidos, opiniões próprias são consideradas antissociais e hedonistas, e o pensamento crítico é suprimido. As liberdades civis são podadas, sendo proibido o livre questionamento e até mesmo caminhar só pelas ruas à noite. A situação alienante e uma iminente guerra tornam cada vez mais desejável uma renovação criativa buscada pelo protagonista e um grupo de homens-livro que formam uma espécie de resistência. Embora em outra roupagem, percebe-se a presença de uma situação caótica e o desejo de criação de uma nova ordem, não tão nova, mas que retome algo perdido.
O personagem central de Fahrenheit 451, Guy Montag, trabalha como bombeiro, uma importante profissão no contexto da história já que os bombeiros não apagam fogo, são os responsáveis por queimar os livros, às vezes casas inteiras e seus donos.[2] Em outras palavras, Montag é um importante agente da censura e do controle e como profissional está próximo de uma promoção a capitão, para ele: “QUEIMAR ERA UM PRAZER” (Bradbury, 2020, p.21). Assim mesmo, em letras garrafais, somos apresentados ao protagonista na primeira linha do romance, um destruidor visceral que sorri em meio às chamas e à fuligem. Esse controle exercido, descobrimos, não é apenas estatal, mas a própria sociedade civil trabalha para censurar e caçar os rebeldes. Apesar do aparente controle, essa ordem imposta esconde o caos que aguarda uma guerra nuclear cada vez mais iminente:
Enquanto ele se detinha ali, o céu urrava sobre a casa. Houve um tremendo som retalhante, como se duas mãos gigantescas tivessem rasgado dez mil quilômetros de costura de linha preta. Montag se sentiu cortado ao meio. Sentiu o peito ser lanhado em duas partes. Os bombardeiros a jato passando, passando, passando, um-dois, um-dois, seis deles, nove deles, doze deles, um e mais um e ainda outro, outro e mais outro se encarregavam de gritar por ele. Montag abriu a boca e deixou que o grito estridente descesse e saísse entre seus dentes arreganhados. A casa estremeceu. (BRADBURY, 2020, p.32)
Os jatos de guerra zurrando sobre a cidade e fazendo tudo estremecer, as conversas e as notícias sobre a guerra ao fundo de várias cenas, tudo ao longo do romance sussurra que o mundo perfeito é na verdade um mundo às vésperas de uma guerra nuclear, um mundo aparentemente em ordem, mas na verdade vivendo o risco da destruição total, embora as pessoas estejam apáticas e ignorem a ameaça. Ao longo da narrativa, somos levados à expectativa de um cataclisma, um embate nuclear, uma transformação orgânica pela qual o mundo irá passar, assim como em Metamorfoses, visto que sua chegada é anunciada constantemente sem que ninguém haja para que a guerra seja evitada. Este mundo é o mundo “humano demoníaco”, a sociedade “unida por uma espécie de tensão molecular de egos, uma lealdade ao grupo ou ao líder que diminui o indivíduo, ou, no melhor dos casos, contrasta seu prazer com seu dever ou honra” (FRYE, 2014, p.278).
Mas é possível perceber o caos de Fahrenheit 451 por outro prisma também, a perspectiva do vazio, como na Teogonia. O vazio é experimentado pela sociedade e Mildred, esposa de Montag, é a personagem que mais o representa. Ela vive imersa em telas, com fones de ouvido o tempo todo, usa drogas livre e intensamente para desligar-se da realidade e para conseguir dormir. Tudo é consumido em resumos ou nas telas, e as informações são despejadas freneticamente, sem que haja tempo nem liberdade para o pensamento crítico:
O televisor é “real”. É imediato, tem dimensão. Diz o que você deve pensar e o bombardeia com isso. Ele tem que ter razão. Ele parece ter muita razão. Ele o leva tão depressa às conclusões que sua cabeça não tem tempo para protestar: “Isso é bobagem!”. (BRADBURY, 2020, p.108)
É nesse cenário prestes a ser detonado e embebido no torpor que, o bombeiro Montag conhece Clarisse McClellan, uma adolescente de uma família questionadora. Após esse encontro, o protagonista vive uma virada em sua vida, uma espécie de chamado (Campbell, 2024). Ela faz questionamentos existenciais a ele, algo que ninguém mais faz e isso o leva a começar a questionar-se também e a refletir sobre sua realidade também. Logo descobrimos que Montag tem escondido alguns dos livros que jurara destruir e, buscando respostas aos seus questionamentos, Montag passa a lê-los. Na sequência, ele entra em contato com um ex-professor participante de um movimento de resistência, que se configura como seu mentor (Campbell, 2024), e cada vez mais a situação torna-se tensa com o temor de que ele seja descoberto. Seu capitão, o antagonista Beaty, passa a notar diferença nas ações e no discurso de Montag, de forma que os dois protagonizam alguns debates esclarecedores.
A tensão eleva-se até que explode em uma ocasião na casa de Montag, que não resiste mais à decadência que o rodeia e decide ler um poema para sua esposa e algumas amigas que os visitavam. A situação é um desastre total e, algum tempo depois, quando Montag sai em uma missão para queimar livros, descobre que havia sido denunciado por sua própria parceira quando o caminhão de bombeiros para em frente à sua própria residência e ele se dá conta: “Ora, essa – disse Montag lentamente –, paramos em frente à minha casa?” (Bradbury, 2020, p.139, grifos do autor). Mais uma vez, é como se o protagonista fosse conduzido organicamente ao limite da tensão.
O ato final apresenta um momento de decisão para Montag, que se rebela, incendeia seu arqui-inimigo e começa uma cena de fuga. É o momento da explosão interna do protagonista, em que o fogo literalmente explode de suas mãos para queimar tudo aquilo que ele já não suporta mais:
E, logo ele não passava de uma chama gritante, um boneco gesticulante e desarticulado, não mais humano ou conhecido, uma chama em contorções sobre o gramado, enquanto Montag atirava um jato contínuo de fogo líquido sobre ele. (BRADBURY, 2020, p.139)
Conforme esclarece Campbell (2024, p.29), o herói precisa retirar-se do cenário externo e mergulhar em si mesmo. É dentro de si que ele enfrenta as dificuldades reais, no seu rearranjo interior está a sua maior batalha e a possibilidade de vencer “os demônios infantis de sua cultura local”. Esse é o momento em que Montag dá um passo sem volta, sua “morte para o mundo”, e sabe que a partir de agora definitivamente não pertence mais àquela realidade.
Montag empreende sua fuga e consegue despistar um cão robô que o rastreia trocando de roupas e mergulhando em um rio na fronteira da cidade. Ao sair do outro lado, encontra um grupo de andarilhos moribundos ao redor de uma fogueira e descobre que eles são a resistência, homens que se propõem a memorizar livros enquanto não surge o momento propício de recomeçar a sociedade. Montag é aceito e renomeado como o próximo Eclesiastes, um dos livros que ele lia escondido e decorou. Agora ele não é mais parte do mundo deixado atrás, mas faz parte de uma missão maior, a recriação da sociedade destruída. Enquanto sai para caminhar o grupo de homens vê à distância a cidade sob o tão anunciado e ignorado ataque nuclear.
A tensão de uma guerra nuclear permeia toda a obra e mostra a falta de civilidade a que o mundo chegou. Representa também a inércia, o torpor e a corrupção da sociedade “humana demoníaca” de Frye (2014), pois ao longo de toda a narrativa há avisos e notícias nos rádios, televisões e telas sobre a iminente guerra sem que ninguém se preocupe com isso. Os jatos passam uma última vez pelo céu e deixam suas bombas caírem, o fogo mais uma vez destrói e purifica, dessa vez o antigo mundo de Montag. Como ocorreu com ele, há uma sinergia entre a “purificação da alma humana e a transmutação da terra em ouro, não somente ouro literal, mas o ouro incandescente quintessencial do qual os corpos celestiais são feitos” (FRYE, 2014, p.276).
O mundo abandonado é queimado e reduzido a um estágio zero, uma nova tábula rasa. Após contemplarem a destruição da cidade que é queimada em segundos, “a guerra começou e terminou naquele instante” (BRADBURY, 2020, p.191), o grupo de andarilhos, que havia sido atirado ao chão pelo impacto das explosões, se recompõe e ruma às ruínas da antiga civilização. O objetivo dos homens-livro é cumprir com sua missão agora que tudo poderia ser recomeçado, uma sociedade com cultura e acesso à literatura, uma espécie de retomada de um estágio perfeito perdido. E Montag, que se provou um herói (FRYE, 2014) chega ao momento do retorno (CAMPBELL, 2024), mas não um retorno à casa, um retorno agora para cumprir a cosmogonia que tanto aguardaram suportando a desordem e o vazio do caos anterior.
Toda a jornada de Montag é uma nova cosmogonia pessoal e símbolo de uma cosmogonia social, em que surge a necessidade de desfazer o estado anterior para dar lugar a uma nova ordem mais verdadeira e enriquecida pelo conhecimento dos livros: “O grande feito do herói supremo é chegar ao conhecimento dessa unidade na multiplicidade, e então torná-la conhecida” (CAMPBELL, 2024). O desfecho do livro sugere um novo começo — um ciclo de destruição seguido de renascimento, como ocorre em muitos mitos de criação e renovação. É significativo nesse sentido que ao lembrar trechos do Eclesiastes, na última página do romance, Montag se lembre do trecho que afirma que “Para tudo há uma estação. Sim. Um tempo para destruir e um tempo para construir.” (BRADBURY, 2020, p.199). E ao tentar relembrar o restante do texto, ele emenda com outro trecho bíblico famoso: “E do outro lado do rio, está a árvore da vida que produz doze frutos, dando o seu fruto de mês em mês; e suas folhas servem para curar as nações” (BRADBURY, 2020, p.199).
Fahrenheit 451, diferentemente de outras distopias, termina com uma carga de esperança, uma espécie de “busca por algum tipo de idade de ouro imaginativa” nas palavras de Frye (2014, p.326). As sementes da árvore, os textos que semeariam a nova terra pós-apocalíptica estavam naquele grupo de homens e Montag termina afirmando que a guardaria para quando chegasse à nova cidade. Finalmente, vale ressaltar que em muitas mitologias o fogo é um elemento que purifica e transforma. Em Fahrenheit 451, o fogo começa como uma força destrutiva usada para suprimir o conhecimento. No entanto, ao longo da jornada de Montag, o fogo se torna um símbolo de iluminação e renovação — especialmente no final, quando ele se une ao grupo que planeja preservar o conhecimento para o futuro. O fogo, no fim, é também o elemento que purifica o ambiente corrompido e caótico e permite a recriação sonhada pelo grupo de homens-livro.
Ao comparar Fahrenheit 451 com a Teogonia e com Metamorfoses, percebemos que, apesar das diferenças estéticas e do contexto de produção do romance, o tropo da cosmogonia presente nas obras clássicas ainda perdura e surge em uma obra de ficção científica escrita no século XX. Como explica Eliade (2020), caos e destruição são seguidos de renascimento. Na mesma direção, Bráulio Tavares, importante escritor de ficção científica brasileiro e estudioso do gênero, lembra que:
Já se reconhece sem hesitações seu papel como laboratório de novas ideias, de novas concepções a respeito da tecnologia e da sociedade humana, bem como de expressão artística dos mesmos mitos milenares que inspiraram a literatura erudita. (TAVARES, 2018, p. 13)
O tema mítico da cosmogonia perpassa o enredo como um todo e a jornada do protagonista especificamente (CAMPBELL, 2024). A presença desse tropo mitológico essencial no romance confirma ainda a tese de Frye (2014) de que o mito estrutura e funciona como uma gramática para a leitura e para a análise do texto literário. Eliade (2020) contribui com essa ideia ao lembrar que o homem moderno se engana ao fugir das narrativas míticas e simultaneamente criar e usufruir narrativas míticas dessacralizadas. Como defende o autor, o mito pode até ter perdido o status religioso, mas permanece nas práticas e nas produções humanas do homem do século XXI.
Nesse sentido, é possível considerar a literatura como uma das formas de substituição do mito. Como afirma Frye (2017, p.55), “Nossas impressões sobre a vida humana vão acumulando-se uma a uma e, para a maioria de nós, permanecem vagas, e desorganizadas. Na literatura, porém, muitas dessas impressões de repente ganham ordem e foco”. Eis uma das formas em que o mito organizador da realidade (ELIADE, 2020) continua vivo em meio à tecnologia e a vida do homem do século XXI.
Vale ressaltar ainda que é possível notar pontos de contato entre a influência mítica e a influência religiosa na obra de Bradbury. Embora não fosse o foco de atenção neste trabalho, é possível perceber uma relação direta entre Fahrenheit 451 e o cristianismo em citações diretas e em referências a trechos e a livros bíblicos. Além disso, é sugerida uma narrativa que se encaixaria no arquétipo apocalíptico de Frye (2014; 2021), arquétipo este que aponta para a redenção e para a recriação do cosmo. Para além da estrutura narrativa, também é possível relacionar símbolos como o fogo, a travessia pela água para salvar-se e até mesmo a busca pela recriação de um mundo ideal com símbolos e figuras cristãs. Neste sentido, seria interessante um estudo posterior dedicado a essas influências cristãs em Fahrenheit 451 sob a hipótese de que o romance de Bradbury confirma a tese de Roberts (2018) de que a Ficção Científica é herdeira da tradição cristã.
Em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, observamos, então, os temas da cosmogonia e da recriação, ainda que apareçam de maneira simbólica e crítica, como seria de se esperar de uma obra de ficção científica dentro do contexto em que foi escrita. A narrativa, ambientada em uma sociedade distópica em que livros são proibidos e queimados, expõe o desejo humano de ordem e harmonia ao longo de seu enredo. No entanto, a busca desse ideal ocorre de maneira distorcida, gerando uma situação de caos crescente. Fahrenheit 451 faz uso dessas ideias e questiona a noção de perfeição social para sugerir uma recriação necessária, em que a humanidade precisa recomeçar e aprender com os erros do passado.
Referências
ARISTÓTELES. Poética. Ed. Bilíngue. Trad. Paulo Pinheiro. 2ª Ed. São Paulo: Editora 34, 2017.
BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. Trad. Cid Knipel. 3ª Ed. São Paulo: Globo, 2012.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Trad. Heráclito Aragão Pinheiro & Camilo Francisco Ghorayeb. São Paulo: Palas Athena Editora, 2023.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. Trad. Pola Civelli. 6ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2020.
ELLER, Jonathan R. The story of Fahrenheit 451. In: Fahrenheit 451. New York: Simon & Schuster, 2018.
FRYE, Northrop. Anatomia da crítica: quatro ensaios. Trad. Marcus de Martini. São Paulo: É Realizações, 2014.
FRYE, Northrop. A imaginação educada. Trad. Adriel Teixeira, Bruno Geraidine e Cristiano Gomes. Campinas: Vide Editorial, 2017.
FRYE, Northrop. O grande código: a Bíblia e a literatura. Trad. Marcelo Stockler. Campinas: Editora Sétimo Selo, 2021.
HESÍODO. Teogonia. Trad. Christian Werner. 2ª Ed. São Paulo: Hedra, 2022.
NASÃO, Públio Ovídio. Metamorfoses. Trad. Rodrigo Tadeu Gonçalves. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2024.
PLATÃO. A República ou da justiça. São Paulo: Edipro, 2020.
ROBERTS, Adam. Verdadeira história da ficção científica. Trad. Mário Molina. São Paulo: Seoman, 2018.
TAVARES, Bráulio. Prefácio à edição brasileira. ROBERTS, Adam. A verdadeira história da ficção científica: do preconceito à conquista das massas. Trad. Mário Molina. São Paulo: Seoman, 2018.
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[1] Tradução de autoria própria.
[2] No original, em inglês, é um interessante trocadilho: fireman significa bombeiro, enquanto fire man seria algo como homem do fogo.