Rodrigo Felipe Veloso
Doutor em Letras: Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Docente no departamento de comunicação e letras da Unimontes. Contato: rodrigof_veloso@yahoo.com.br
Resumo: Este artigo propõe uma leitura dos contos “Adão e Eva” e “O enfermeiro”, de Machado de Assis discutindo à condição paradoxal inerente do humano, compreendida, particularmente, na sua dupla identidade (bem versus mal) e, além disso, partindo da história bíblica do ritual da origem e criação das coisas tendo o homem como partícipe, integrante dela e, ao mesmo tempo, como aquele que rompe e deconstrói o mundo divino, haja vista que atitudes e valores sagrados foram corrompidos e a ideia do profano se acentua e articula a vida humana cotidiana. Ademais, o rito profano vivenciado pelas personagens Adão, Eva e Procópio evidencia-se noutro rito que se trata da margem, estágio intermediário entre o passado e o que sugirá mais a frente e, sobretudo, o resultado desse evento ritual constrói a identidade em transição de cada personagem e, por conseguinte da própria narrativa. A alquimia das personagens acontece mediante as experiências vivenciadas em contexto social, bem como tal situação favorece na formação do eu com relação ao outro e essa transformação surge de dentro para fora, o que sintetiza o desejo e pulsão de morte de uma vida antiga com o surgimento de uma nova mais vigorosa e promissora. Para tanto, utilizam-se autores como: Arnold Van Gennep (2011), Carl Gustav Jung (1988), Georges Bataille (2000), dentre outros.
Palavras-chave: Machado de Assis; Bem e Mal; Ritos de Margem; Alquimia. Identidade
Abstract: This article proposes a reading of the short stories “Adão e Eva” and “The nurse”, by Machado de Assis, discussing the inherent paradoxical condition of the human, particularly learned to his double identity (good versus evil) and, furthermore, starting from the biblical history of the ritual of the origin and creation of things with man as a participant, an integral part of it and, at the same time, being the one who breaks and deconstructs the divine world, given that sacred attitudes and values have been corrupted and the idea of the profane is accentuated and articulates everyday human life. Furthermore, the profane rite experienced by the characters Adam, Eve and Procópio is evident in another rite that is the margin, an intermediate stage between the past and what will emerge later and, above all, the result of this ritual event builds identity in transition of each character and, consequently, of the narrative itself. The alchemy of the characters happens through experiences lived in a social context, as well as this situation favors the formation of the self in relation to the other and this transformation arises from the inside out, which synthesizes the desire and death drive of an old life with the emergence of a new, more vigorous and promising one. To this end, authors such as: Arnold Van Gennep (2011), Carl Gustav Jung (1988),
Keywords: Machado de Assis; Good and Evil; Margin Rites; Alchemy. Identity
[...] Os olhos da noite podem não ser somente estrelas. Outros olhos existem; humanos vigiam. (Conceição Evaristo. Olhos d’água – Conto: “Beijo na face”, 2009, p. 35).
“Eles se abraçam e geram a nova luz (lux moderna) que não tem igual em qualquer outra luz do mundo” (Carl Gustav Jung – Estudos Alquímicos, 2016, p. 204).
Os contos “Adão e Eva” e “O Enfermeiro”, de Machado de Assis, como muitas de seus textos, está repleto de simbolismo e temas profundos que podem ser analisados por meio das lentes do rito e da alquimia. No primeiro conto “Adão e Eva”, Machado aborda as complexidades das relações humanas, a tentação e a moralidade, utilizando metáforas e alusões bíblicas para tecer uma narrativa envolvente e multifacetada. E no conto “O Enfermeiro” tem a história de Procópio, um enfermeiro que cuida de um homem fastidioso e, por conseguinte é o suposto causador de sua morte.
Machado explora temas de natureza da transformação pessoal, da ideia de culpa, e a busca pela redenção nos dois contos em estudo visando (des) construir o discurso mítico de que o bem institui e sugere além de conhecimento uma experiência transitória e não permanente e, portanto mediante essa inconcretude, o rito profano também se manifesta e se consagra no caso da narrativa machadiana. Para tanto, encontrar-se com a ôpus alquímica e, mais simbolicamente com a pedra filosofal (o encontro consigo mesmo) remonta um caminho diferente do habitual, quer dizer, pelo viés do mal se chega ao esplendor e, sobretudo, torna-se elemento condicionante de tensão narrativa e, ao mesmo tempo, revela-se sendo uma virtude do homem em formação de sua identidade.
O rito do sagrado (Bem) é por excelência um aprendizado que sugere além de um estudo sobre as formas e comportamentos dos indíviduos representa uma vivência que termina em uma transformação. Em Machado de Assis, a efetivação do aspecto ritual figura na composição da trajetória das personagens, bem como do próprio texto literário, pois em sua composição o autor também estabelece um ritual, um modo de existência e constituição de sua produção literária.
Dentro dessa perspectiva, os rituais consagram-se em essência no ato de atravessar fronteiras, partindo de um estágio a outro, experimentar etapas da vida social, da infância para a adolescência, da vida de solteiro a de casado, instituindo ao indivíduo vivenciar fases que se relacionam entre dois mundos – o profano e o sagrado. Portanto, a fase de encontrar-se entre um mundo e outro é nomeada, por Arnold Van Gennep (2011), de período de margem. Passar de uma fase a outra significa despojar do homem velho e, literalmente adquirir uma pele nova (GENNEP, 2011, p. 153).
Viver o ritual de margem estabelece para as personagens de Machado de Assis uma etapa autonôma em que transitar de um ponto a outro da história e ou mudar de fases na atuação narrativa revela-se como necessária e transformadora. Viver entre o bem e o mal, o sagrado e o profano consubstanciam as várias faces de um mesmo indivíduo que está disposto a experimentá-las e se adequar a cada novo contexto surgido. Diante disso, no processo ritual, os indivíduos estão regularmente transitando entre muitas camadas. Isso acontece em decorrência de que viver em sociedade estimula uma sucessão de estágios e acontecimentos que surgem de forma linear. É plausível transitar de uma atividade à outra, ou de uma idade a outra. Dentro dessa etapa de sucessão entre um espaço e outro se privilegiam as cerimônias e os rituais que podem ser descritos mais ou menos densos, combinados com o nível de desenvolvimento da sociedade do período regente.
Em “Adão e Eva”, Machado de Assis estabelece uma consciência ritual ligada às personagens bíblicas de mesmo nome e, além do mais, dessa relação há uma reflexão do estágio de se chegar à plenitude celeste devido bom comportamento terrestre e celebrando, pois, o rito sagrado como único fim necessário e valioso para a vida humana e, desfazendo assim, o profano que insiste em destituí-lo e corrompê-lo.
Adão e Eva ouviram submissos; e ficando sós, olharam um para o outro, admirados; não pareciam os mesmos. [...] Agora, porém, embebiam-se na contemplação um do outro, ou na vista da natureza, que era esplêndida. Nunca até então viram ares tão puros, nem águas tão frescas, nem flores tão lindas e cheirosas, nem o sol tinha para nenhuma outra parte as mesmas torrentes de claridade. E dando as mãos percorreram tudo, a rir muito, nos primeiros dias, porque até então não sabiam rir. Não tinham a sensação do tempo. Não sentiam o peso da ociosidade; viviam da contemplação. De tarde iam ver morrer o sol e nascer a lua, e contar as estrelas, e raramente chegavam a mil, dava-lhes o sono e dormiam como dois anjos (ASSIS, 1994, p. 2-3).
No caso do conto “O Enfermeiro”, percebe-se uma descrição do ritual enquanto liminaridade da vida de Procópio em ascensão:
Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em que há outras coisas interessantes, mas para isso era preciso tempo, ânimo e papel, e eu só tenho papel; o ânimo é frouxo, e o tempo assemelha-se à lamparina de madrugada. Não tarda o sol do outro dia, um sol dos diabos, impenetrável como a vida (ASSIS, 1994, p. 1).
Nesse sentido, a proposta deste artigo versa sobre a análise dos ritos sagrado (Bem) e profano (Mal) inerentes na construção narrativa dos contos “Adão e Eva” e “O Enfermeiro”, de Machado de Assis, visto que na tentativa de prevalência e atuação ritual, um rito acaba se sobrepondo ao outro e, no caso do texto machadiano, diferentemente do que se espera em contexto social, mas que replica tal realidade, o profano vigora de maneira salutar e produz efeitos dissonantes e reflexivos (indivíduo vivendo efetivamente seu rito de margem) e, por sua vez, o indivíduo em contato com o mundo alquímico compreende ser personagem componente desse mesmo espaço e dele depende para se formar, de construir sua identidade que está sempre em mutação.
“Adão e Eva [...] viviam da contemplação. De tarde, iam ver morrer o Sol e nascer a Lua, e contar as estrelas e, raramente chegavam a mil, davam-lhes o sono e dormiam como dois anjos” (ASSIS, 1994, p.1).
Carl Gustav Jung (2016) em Estudos Alquímicos nos revela que o homem ao tentar esclarecer os enigmas da “vita longa” segue os passos de um processo psicológico que, nada mais é do que o segredo de todos aqueles que anseiam pela verdade. A luz que acende no coração, por mínima que seja torna-se de fundamental importância, pois havia uma luz escondida na escuridão da natureza, sem a qual a própria natureza não seria negra.
Ainda segundo Jung, Paracelso fazia parte desse grupo, isto é, como estudioso da transformação da vida do homem e seus mistérios buscava por intermédio da alquimia e da filosofia um elo de ligação que prendesse a natureza humana escura ao corpo. A alma, por exemplo, estaria entretecida sutilmente ao mundo e à matéria, que se apresentava de modo estranho, contendo figuras demoníacas, medonhas, que representavam o surgimento secreto das doenças, as quais abreviavam a vida.
Nesse aspecto, a igreja podia exorcizar os demônios e dissipá-los, porém tal ação apenas alienava o homem de sua própria natureza que, de modo inconsciente de si mesma, se transformava em formas espectrais. A ideia da alquimia, nesse quesito, não era a separação da natureza, pelo contrário, sua meta era a unificação dela.
Dessa união dos opostos, corpo e alma, razão e emoção, bem e mal, a maior longevidade seria atingida, especialmente por aqueles que vivem a “vida aérea”. Por isso, é latente reconhecer que a alma mora no fogo, no coração. “A imaginação também está localizada no coração. O coração é o sol no microcosmo. A alma, a anima iliastri, pode irromper assim do coração, se faltar o “ar”” (JUNG, 2016, p. 244). O coração é, além de todos os princípios, “uma coisa inquieta e emocional, com uma tendência excessiva de participar efetivamente da turbulência corporal” (JUNG, 2016, p. 244).
Nesse sentido, a imagem do homem mítico e bíblico como é o caso de Adão unido ao grande homem (imagem divina, personificação do ser todo-poderoso) gera uma nova vida, conforme descreve Paracelso, quer dizer, uma “vita cosmographica”. Nessa vida surgem tanto “o tempo como o corpo Jesahach”. Jesahach é um neologismo obscuro. Locus também pode ter o significado de “tempo” e “espaço”. Por se tratar naturalmente do tempo, uma espécie de idade de ouro. O corpus Jesahach refere-se de sobremaneira ao “corpus glorificationis”, significando ao corpo ressuscitado dos alquimistas, coincidindo, portanto, com o “corpus astrale” de Paracelso.
Viver a vida em sociedade traduz numa experiência contínua, favorecendo o contato efetivo com o outro, bem como o encontro do eu consigo mesmo, o que implica em movimentos formadores dos indivíduos como integrar e desintegrar, identidade e alteridade, morrer e renascer, fases componentes de inúmeras tarefas destinadas exclusivamente aos humanos. Nesse aspecto, viver o processo ritual significa também atuar, refletir, aguardar e estacionar para agregar e mudar a direção e o caminho de maneira sábia e experiente.
Os ritos de passagem e de iniciação revelam o despertar da consciência. Isso ocorre assim como na história bíblica de Adão e Eva e na vida de Procópio, pois os contos em questão podem ser vistos como um rito de passagem para as personagens. Eles experimentam um despertar da consciência, movendo-se da inocência para uma compreensão mais profunda da moralidade e da tentação mundana e vil.
Nessa perspectiva, a transição de estados (fases ritualísticas) acontece nos contos em apreço quando as histórias descrevem uma mudança circunstancial da postura e comportamento do indivíduo, um movimento do paraíso da ignorância para a realidade do conhecimento e da consequência. Este é um elemento comum nos ritos de passagem, onde os participantes são transformados e adquirem uma nova compreensão de si mesmos e do mundo.
A tentação e moralidade revelam-se como provação nos contos em questão, uma vez que colocam as personagens em uma situação, de um lado, o desejo de escolha em seguir e permanecer no rito sagrado, ou seja, ter retidão (sem desvios no caminho) na conduta mediante novos desafios e provas e, por outro lado, mudar de fase e exprimentar o rito profano como o mais torpe e pervertido moral e religiosamente.
A exploração do pecado surge quando há interação entre as personagens e a tentação que enfrentam sendo percebida como um ritual que expõe suas vulnerabilidades e fraquezas. Este rito revela a complexidade da moralidade humana, destacando a luta entre o desejo e a virtude. Em “Adão e Eva”, a tentação e provação da moral se determinam pelo Tinhoso, personagem demôníaco que interpela uma serpente para destituir o estado de graça e obediência ao rito sagrado que o casal bíblico preserva e mantém como escolha e jornada de vida.
Naturalmente, o Tinhoso ficou danado quando soube do caso. Não podia ir ao paraíso, onde tudo lhe era avesso, nem chegaria a lutar com o Senhor; mas ouvindo um rumor no chão entre folhas secas, olhou e viu que era a serpente. Chamou-a alvoroçado.
— Vem cá, serpe, fel rasteiro, peçonha das peçonhas, queres tu ser a embaixatriz de teu pai, para reaver as obras de teu pai?
A serpente fez com a cauda um gesto vago, que parecia afirmativo; mas o Tinhoso deu-lhe a fala, e ela respondeu que sim, que iria onde ele a mandasse [...].
— Adão e Eva?
— Sim, Adão e Eva.
— Duas belas criaturas que vimos andar há tempos, altas e direitas como
palmeiras?
— Justamente (ASSIS, 1994, p. 3).
Em “O Enfermeiro”, Felisberto que, antes fazia trabalho de copiar citações latinas e fórmulas eclesiásticas, a partir de então, quando recebe um valor em dinheiro considerável decide mudar de fase na vida social, deixando de seguir o rito sagrado e resolve “servir de enfermeiro ao coronel”, passando a vivenciar o rito profano, embate do eu com o outro que gera ruídos e dificuldades de entendimento e convivência.
Chegando à vila, tive más notícias do coronel. Era homem insuportável, estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos. Gastava mais enfermeiros que remédios. A dois deles quebrou a cara. Respondi que não tinha medo de gente sã, menos ainda de doentes; e depois de entender-me com o vigário, que me confirmou as notícias recebidas, e me recomendou mansidão e caridade, segui para a residência do coronel (ASSIS, 1994, p. 2).
O conceito de sagrado e profano é central na obra do historiador das religiões Mircea Eliade, especialmente em seu livro O sagrado e o profano. Eliade (1992) propõe uma distinção fundamental entre esses dois modos de existência humana: o sagrado, que remete à transcendência e à dimensão espiritual, e o profano, relacionado à vida cotidiana e secular.
De um lado, o sagrado é a manifestação do numinoso, ou seja, do “totalmente outro”, algo que transcende o mundo material e está relacionado à experiência do divino. O sagrado se revela aos seres humanos por meio do que ele chama de hierofania, a manifestação do sagrado em objetos, espaços ou rituais específicos. Exemplos de hierofanias incluem: objetos naturais, como montanhas, árvores ou rios, que ganham caráter sagrado em culturas religiosas. Espaços, como templos ou altares, que são consagrados e vistos como pontos de contato com o divino. E, por fim, rituais e símbolos que conectam o humano ao transcendente.
O sagrado organiza o mundo e dá sentido à existência. Para as sociedades tradicionais, ele é um ponto de referência central, permitindo a distinção entre o "mundo ordenado" (cosmos) e o caos.
O rito sagrado acontece no conto “Adão e Eva” quando o casal representa essa figura bíblica da obediência, bem como evoca a criação e a queda do homem, temas fundamentais na tradição judaico-cristã. O leitor observa na composição das personagens Adão e Eva tendo uma aura de santidade e pureza original, refletindo um rito de reverência e contemplação religiosa.
No caso do conto “O Enfermeiro”, a história de Procópio, um jovem enfermeiro que é contratado para cuidar de um velho rabugento e acaba se envolvendo em uma situação moralmente ambígua. O rito sagrado ocorre quando a profissão de enfermeiro pode ser percebida como exemplo do bem, quer dizer, de cuidado e serviço aos necessitados. O dever de cuidar do paciente é um ato de compaixão e altruísmo, refletindo valores sagrados de caridade e devoção ao próximo.
O profano, por outro lado, refere-se à dimensão cotidiana e secular da vida. É o espaço onde os seres humanos agem de forma prática e utilitária, sem a consciência da transcendência. No mundo moderno, Eliade observa uma predominância do profano, onde muitos perderam a conexão com as experiências religiosas ou espirituais.
O profano é marcado por uma temporalidade linear, ao contrário do tempo sagrado, que é cíclico e repetitivo, ligado aos mitos e rituais que remetem a eventos primordiais e fundadores. Para Eliade, a vida no âmbito exclusivamente profano tende a ser desprovida de sentido mais profundo, o que contribui para crises existenciais no mundo moderno.
O rito profano, no entanto, revela os aspectos obscuros desse dever. O gesto profano em “Adão e Eva” pode ser entendido, por um lado, quando Tinhoso interpela uma serpente para corromper o casal seguidor das normas divinas e, por outro, as figuras de Adão e Eva podem ser vistas de maneira sensual e mundana, destacando a dualidade entre o sagrado e o profano, entre a aceitação e a depravação moral.
Procópio é constantemente desrespeitado e maltratado pelo paciente, levando-o a um ponto de ruptura. A morte do paciente, que pode ser interpretada como um ato involuntário de violência ou uma libertação, acrescenta uma camada de profanidade ao rito de cuidado.
Nos dois contos em estudo, os pontos de ruptura do sagrado e instituição do profano fazem com que as personagens se vejam na condição reflexiva e marginal, liminar do processo ritual, que se manifesta no ato de esperar e tomar uma decisão de como experimentarão essa nova etapa de vida ritual, entrelaçada ao sagrado e tendo a permanência regente do profano.
Adão e Eva, de um lado, Procópio e Felisberto, de outro, enquanto personagens machadianos residem e ou se localizam em lugares consagrados miticamente (céu) e ou hostis (como a casa do coronel Felisberto).
Sendo assim, o espaço sagrado remonta uma diferença quando comparado ao profano, isto é, resvalando-se num ponto de contato entre o humano e o divino, bem como é frequentemente organizado em torno de um “centro”, representado por símbolos como montanhas, árvores ou templos, que funcionam como eixos do mundo (axis mundi). Ademais, o tempo sagrado é circular, remetendo ao mito da criação e à repetição dos atos divinos. Os rituais permitem aos praticantes reviver esse tempo primordial, religando-os ao divino.
Esse tempo das mudanças ontológicas e espirituais é um rito de passagem, pois favorece um “segundo nascimento” e a criação espiritual. Com o advento da modernidade, houve uma secularização crescente, com a predominância do profano sobre o sagrado. Entretanto, Eliade observa que o ser humano (homo religiosus) nunca abandona completamente o desejo de se conectar ao sagrado. Mesmo em uma sociedade laica, práticas e símbolos que remetem a experiências sagradas persistem, embora, muitas vezes de forma desacralizada.
Nesse sentido, esse novo mundo que tais personagens circundam remonta o conhecer o universo mágico que, na alquimia se faz necessário como etapa de aprendizagem cotidiana. Lidar com os elementos do mundo natural como água, fogo, terra e ar representa uma atividade importante na concepção identitária do indivíduo que experimenta desse mundo mágico e cósmico.
A alquimia recebeu impulso considerável, conhecendo um novo (re) nascimento. E nesse percurso, todas as experiências e aprendizagens do indivíduo revelam a fonte do saber de si mesmo devotada na luz da natureza e na luz do conhecimento.
Bernard Vidal (2001) reitera que
no fim da Idade Média e no século XVI, a alquimia deu origem à Arte Real, visão global do homem e do cosmos, glorificação do aspecto místico da alquimia. Ao agir sobre a matéria, sobre o ser humano e a sua alma, por intermédio da experiência alquímica, tomava-se possível manipular o universo inteiro, modelá-lo, imprimir-lhe a sua própria marca, regenerá-lo também, como o faria na alquimia. (VIDAL, 2001, p. 22).
Jung (2016) denota a gênese dos estudos alquímicos tendo Paracelso como ocupante central dessa experiência, uma vez que o seu conhecimento e dedicação intensa com a alquimia, a qual era usada por ele não só em sua farmacognosia e farmacopeia, mas também para os assim chamados fins “filosóficos”.
A alquimia no entanto contém, desde os tempos mais remotos, uma doutrina secreta, ou ela mesma o é. [...]. Sua figura principal é Hermes, isto é, Mercurius em seu duplo sentido de mercúrio (metal) e alma do mundo, acompanhado pelo Sol, ou seja, o ouro e pela Lua, ou seja, a prata. A operação alquímica consistia essencialmente numa separação da prima materia do assim chamado caos, no princípio ativo, isto é, a alma, e no princípio passivo, isto é, o corpo, os quais posteriormente se reunificavam sob a forma personificada da “coniunctio”, do “matrimonium chymicum”; em outras palavras, a “coniunctio” era vista como uma alegoria do hierosgamos, a união ritual de Sol e Lua. Dessa união nascia o filius sapientiae, ou philosophorum: o Mercurius transformado, considerado como hermafrodita, devido à forma esférica de sua completitude (JUNG, 2016, p. 157).
Nesse aspecto, a opus alquímica (opus alchymicum) com relação ao seu processo químico, frequentemente, foi compreendida sendo uma ação cultual, no sentido de possuir uma opus divina (opus divinum). Entretanto, Paracelso manifestava-se no tocante a isso de maneira completamente pueril, haja vista que somente se atentava com o bem dos enfermos, empregando a alquimia em primeira instância como um método prático, sem envolver-se com sua face obscura.
Paracelso conhecia a alquimia como conhecimento da matéria médica e como procedimento químico na preparação de medicamentos, sobretudo dos remédios secretos. Ele também confiava que se podia produzir ouro e gerar os homúnculos (homunculi), ou seja, a criação de uma vida humana artificial por meio de materiais inanimados, possibilitando assim, conceder vida a um ser artificial, como acontece com o Golem, na tradição judaica.
Consoante a isso, esse aspecto preponderante podería-se quase ignorar, pois para ele a alquimia significava muito mais do que isso, pois conhecia a doutrina secreta e, ainda mais, estava convencido de sua exatidão. Tal predileção tornou-o um precursor e iniciador da moderna medicina química.
Segundo Bernard Vidal (2001),
o alquimista não tem, aliás, perante a matéria, a atitude do investigador de hoje que quer descobrir algo de novo. Ele procura achar um velho segredo: a mensagem que Herrnes transmitiu aos homens. O Conhecimento é um pouco como o tesouro escondido no fundo de uma caverna que é necessário descobrir. A origem divina da alquimia faz com que a investigação proceda de uma liturgia e não de um método científico. O alquimista não manipula; ele oficia; entrega-se a urna técnica espiritual. A alquimia foi uma mística. [...] O alquimista teria ensaiado menos transmutar metais que transformar a sua alma, purificar os seus instintos, progredir no caminho do Bem. A matéria-prima da manipulação não é então aquela que reage nas retortas, mas o indivíduo que age sobre si próprio. O ato alquímico tece entre a matéria da reação e o indivíduo sutis relações de similitude. O homem espera transformar-se como pensa transmutar a matéria passando de algo vil a algo nobre que ele assegura a sua própria salvação (VIDAL, 2001, p. 21).
Dentro dessa perspectiva, a alquimia percebida enquanto transformação psicológica e espiritual em “Adão e Eva” e “O Enfermeiro” se apresentam em três fases, a saber: Nigredo, Albedo e Rubedo. A primeira intitulada Nigredo é conhecida sendo a fase negra, obscura do ser humano. A narrativa começa com uma situação de harmonia e descrição da rotina cotidiana dos indivíduos que é alterada pela tentação e decisão de escolher novo estágio a ser experimentado. Este é o início do processo alquímico, conhecido como nigredo, onde a decomposição e a desintegração ocorrem. As personagens passam por uma fase de confusão e dúvida.
Adão e Eva encaram a nova vida juntos no Paraíso e sabem do dilema que os guarda, pois a árvore sagrada deve ser preservada, mas a tentação do Tinhoso a partir da serpente os fará refletir sobre o ato de comer do fruto dessa árvore.
Foi, penetrou no paraíso, rastejou até a árvore do Bem e do Mal, enroscou-se e esperou. Eva apareceu daí a pouco, caminhando sozinha, esbelta, com a segurança de uma rainha que sabe que ninguém lhe arrancará a coroa. A serpente, mordida de inveja, ia chamar a peçonha à língua, mas advertiu que estava ali às ordens do Tinhoso, e, com a voz de mel, chamou-a. Eva estremeceu.
— Quem me chama?
— Sou eu, estou comendo desta fruta...
— Desgraçada, é a árvore do Bem e do Mal!
— Justamente. Conheço agora tudo, a origem das coisas e o enigma da vida.
Anda, come e terás um grande poder na terra (ASSIS, 1994, p. 3-4).
Com relação ao conto “O Enfermeiro”, Procópio chega à vila onde mora o coronel e têm notícias de que era “um homem insuportável, estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos. Gastava mais enfermeiros que remédios. A dois deles quebrou a cara. Respondi que não tinha medo de gente sã, menos ainda de doentes” (Assis, 1994, p. 02). Procópio, então, segue em direção à casa do coronel e cumpre a orientação que o vigário o recomendou, isto é, mansidão e caridade no cuidado com ele.
No fim de três meses estava farto de o aturar; determinei vir embora; só esperei ocasião. Não tardou a ocasião. Um dia, como lhe não desse a tempo uma fomentação, pegou da bengala e atirou-me dous ou três golpes. Não era preciso mais; despedi-me imediatamente, e fui aprontar a mala. Ele foi ter comigo, ao quarto, pediu-me que ficasse, que não valia a pena zangar por uma rabugice de velho. Instou tanto que fiquei (ASSIS, 1994, p. 2-3).
O estágio psíquico-espiritual da Albedo (conhecida como a fase branca) ocorre na medida que as personagens lidam com as consequências de suas ações e a tentação, eles começam a buscar a purificação e a compreensão de tais acontecimentos vivenciados ritual e magicamente. Esta fase representa a purificação e a iluminação, onde a verdade começa a emergir.
No caso de “Adão e Eva”, o casal não cede às tentações da serpente e mantém a postura de obediência e temor a Deus.
Eva escutava impassível; Adão chegou, ouviu-os e confirmou a resposta de Eva; nada valia a perda do paraíso, nem a ciência, nem o poder, nenhuma outra ilusão da terra. Dizendo isto, deram as mãos um ao outro, e deixaram a serpente, que saiu pressurosa para dar conta ao Tinhoso.
Deus, que ouvira tudo, disse a Gabriel:
— Vai, arcanjo meu, desce ao paraíso terrestre, onde vivem Adão e Eva, e traze-os para a eterna bem-aventurança, que mereceram pela repulsa às instigações do Tinhoso. [...].
— Salve, Adão e Eva. Vinde comigo para o paraíso, que merecestes pela repulsa às instigações do Tinhoso.
Um e outro, atônitos e confusos, curvaram o colo em sinal de obediência; então Gabriel deu as mãos a ambos, e os três subiram até à estância eterna, onde miríades de anjos os esperavam, cantando:
— Entrai, entrai. A terra que deixastes, fica entregue às obras do Tinhoso, aos animais ferozes e maléficos, às plantas daninhas e peçonhentas, ao ar impuro, à vida dos pântanos. Reinará nela a serpente que rasteja, babuja e morde, nenhuma criatura igual a vós porá entre tanta abominação a nota da esperança e da piedade (ASSIS, 1994, p. 4).
O enfermeiro Procópio, diferentemente de Adão e Eva que se mantêm resilientes para com a serpente, não tolera os maus tratos, injúrias e tentações do coronel Felisberto e resolve, mais uma vez, ir embora. Quando ele cumpria seu aviso prévio, mais precisamente durante a noite, na espera de um substituto, o coronel o surpreende arremesando uma moringa ao rosto. Diante disso, Procópio em um ímpeto de raiva avança com as mãos ao pescoço do enfermo. Dentre uma das inúmeras moléstias do coronel, o aneurisma se rompe e ele acaba morrendo. Vivendo esse rito de morte e terror, Procópio decide encobrir o crime hediondo, eliminando vestígios da luta entre eles.
Posteriormente, o enfermeiro acompanha o velório e o enterro e, na sequência, retorna à capital, a sua antiga vida sem despertar suspeita. Todavia, um fato notável o chama a atenção, que se trata da herança do coronel, ele lhe deixou todo o patrimônio, depois de uma semana de sua morte. Procópio, portanto, na tentativa de evitar aumentar ainda mais seu remorso doa aos pobres tudo que recebeu, porém, os trâmites para tal processo de doação não é rápido e ao longo desse tempo, a ideia inicial do enfermeiro acaba esmaecendo. Com isso, Procópio faz algumas esmolas e a maior parte da fortuna acaba por ficar consigo mesmo.
Achei-me com um crime às costas e vi a punição certa. Aqui o temor complicou o remorso. Senti que os cabelos me ficavam de pé. Minutos depois, vi três ou quatro vultos de pessoas, no terreiro espiando, com um ar de emboscada; recuei, os vultos esvaíram-se no ar; era uma alucinação.
Antes do alvorecer curei a contusão da face. Só então ousei voltar ao quarto. Recuei duas vezes, mas era preciso e entrei; ainda assim, não cheguei logo à cama. Tremiam-me as pernas, o coração batia-me; cheguei a pensar na fuga; mas era confessar o crime, e, ao contrário, urgia fazer desaparecer os vestígios dele. Fui até a cama; vi o cadáver, com os olhos arregalados e a boca aberta, como deixando passar a eterna palavra dos séculos: "Caim, que fizeste de teu irmão?" Vi no pescoço o sinal das minhas unhas; abotoei alto a camisa e cheguei ao queixo a ponta do lençol. Em seguida, chamei um escravo, disse-lhe que o coronel amanhecera morto; mandei recado ao vigário e ao médico (ASSIS, 1994, p. 4).
Nessa linha de raciocínio, Georges Bataille anuncia que “assim como o horror é a medida do amor, a sede do Mal é a medida do Bem. A legibilidade deste quadro é fascinante. O que dissipa nela é a possibilidade de captar um aspecto complementar. O Mal parece compreensível, mas é na medida em que o Bem é sua chave” (BATAILLE, 1989, p.124, grifos do autor). O Mal, portanto, é uma condição inerente do homem e veste uma face diferente e integrante da do Bem, pois é perverso, aniquilador e rompe com estruturas construídas anteriormente em bases sólidas. A propulsão do mal é devastadora, pois enquanto elemento destruidor fere ao corpo e mente e deixa a ferida aberta sem direito a cicatrizá-la rapidamente.
Destarte,
O mal é sinal que existe no homem uma profundeza interna ligada à personalidade; só a personalidade pode criar o mal e responder por ele, uma força impessoal não seria capaz de ser responsável pelo mal. [...]. Negar a personalidade é também negar o mal, se existe no homem a personalidade em profundeza, então o mal tem fonte interior e não pode ser resultado de circunstâncias externas. (SAKAMOTO, 1994, p.107-109).
Adão e Eva, de um lado, Procópio e Felisberto, de outro, vivem o movimento paradoxal da existência humana, isto é, transitar entre dois mundos antitéticos, Bem e Mal, sagrado e profano, anjo e demônio, salvação e pecado. As personagens que se encontram situadas na experiência do rito de margem, que é uma fase intermediária no processo natural e reflexivo dos ritos de passagem assinala uma aprendizagem substancial e produtiva daquilo que veio antes (o passado fortalece o novo percurso e jornada) e como seguirá os modos de vida a partir de então (agregar a uma nova condição futura é inerente do processo ritual).
Benedito Nunes ao analisar a prosa machadiana argumenta que o elemento que mais se destaca e “prevalece na forma do discurso narrativo machadiano é o tom dubitativo - a esquiva e equivoca maneira de narrar, reticente e desconfiada, que também pode ser enganadora e enganosa, pondo em causa a própria capacidade de representação da realidade. (NUNES, 1989, p. 17).
Adão, Eva e Procópio se posicionaram sobre o problema do mal e argumentaram que este é uma privação do bem e, como tal, só pode ter uma não-existência. Logo, esse não-ser-vivente se afirma como a morte, exemplo de ritual que nenhum pensamento consegue determinar. A morte percebida como mal é um mistério dificil de penetrar, um aspecto sombrio e nefasto que de tão denso torna-se indiscutível.
Com efeito, “a literatura não é inocente”, enfatiza Bataille, porque “ela é culpada e deveria reconhecer-se como tal. Apenas quando a literatura reconhece sua cumplicidade com o mal é que ela cumpre sua natureza, que é comunicar o essencial” (Bataille, 2000, p. 14). É importante essa afirmação de Bataille, uma vez que condiciona nesse quesito a posição do escritor, Machado de Assis, que cria nas histórias analisadas o plano mítico e metafísico do embate entre o Bem e o Mal e, ao mesmo tempo, esses dois pontos que parecem indissociaveis, se confundem, misturando o que, tradicionalmente, em discurso social e religioso deveria ficar separado.
Machado de Assis ao recriar o elemento do Mal, visto como personagem literário e, este, sendo simbolizado pelo Tinhoso na história bíblica de Adão e Eva suscita no drama humano o espírito da antinomia, de ruptura do conhecimento moral e intelectual e, por vezes, o Tinhoso se revela irônico e torna-se o maior dos humoristas:
Que morda o calcanhar de Eva?
Morderei...
— Não, interrompeu o Tinhoso. Quero justamente o contrário. Há no jardim uma árvore, que é a da ciência do Bem e do Mal; eles não devem tocar nela, nem comer-lhe os frutos. Vai, entra, enrosca-te na árvore, e quando um deles ali passar, chama-o de mansinho, tira uma fruta e oferece-lhe, dizendo que é a mais saborosa fruta do mundo; se te responder que não, tu insistirás, dizendo que é bastante comê-la para conhecer o próprio segredo da vida.
Vai, vai...
— Vou; mas não falarei a Adão, falarei a Eva. Vou, vou. Que é o próprio segredo da vida, não?
— Sim, o próprio segredo da vida. Vai, serpe das minhas entranhas, flor do mal, e se te saíres bem, juro que terás a melhor parte na criação, que é a parte humana, porque terás muito calcanhar de Eva que morder, muito sangue de Adão em que deitar o vírus do mal... Vai, vai, não te esqueças... (ASSIS, 1994, p. 3).
Como a morte é condição existencial da vida, o Mal que está atrelado em sua essência a própria morte é percebida de forma dicotômica, porque reflete como uma base constitutiva e identitária do indivíduo. O indivíduo não está destinado ao Mal, entretanto, reconhecer os limites e as fronteiras que preenchem esse espaço dual é uma necessidade de calcular onde começa e encerra a razão, porque tal processo liminar e marginal do ser humano é um desafio cotidiano e se traduz num destino irredutível que tem na morte a concretude dessa condenação paradoxal.
Em linhas gerais, articulando a análise narrativa dos contos “Adão e Eva” e “O Enfermeiro” com o último estágio alquímico percebe-se um ponto ambíguo que compõe no jogo dramático e humano a existência da epifania e a transformação tanto das personagens mediante experiência ritual e contato com o outro quanto da narrativa que, abriga, a partir de então, nova composição e dimensão criativa e alquímica, evidenciando, sobretudo, outros contextos pelos quais as personagens transitam, pois não serão mais os mesmos, o comportamento e a identidade se configurarão de outra maneira.
Além disso, as fases psíquico-espirituais destinarão uma útlima fase nomeada de Rubedo (conhecida como a fase vermelha), uma vez que, finalmente, os contos em questão sugerem possibilidades de redenção e integração das personagens no tocante às provas e aprendizagens na passagem dos ritos. As personagens podem alcançar uma síntese de suas experiências, integrando o conhecimento adquirido e encontrando um novo equilíbrio. Esta fase representa a culminação do processo alquímico, onde a transformação completa é alcançada.
Adão e Eva conseguem, contudo, se integrar por completo e atingem o desejo que muitos indivíduos estando no plano terrestre almejam que é entrar no reino do céu, bem como eles foram recebidos de maneira solene cuja cerimônia contou música para celebrar esse tal evento especial: “E foi assim que Adão e Eva entraram no céu, ao som de todas as cítaras, que uniam as suas notas em um hino aos dois egressos da criação...” (ASSIS, 1994, p. 4).
Procópio, por sua vez, faz de maneira simbólica um testamento para si próprio confessando possível absolvição (mesmo sabendo que não é viável tal condição), pois, desse modo, se integrará consigo mesmo em busca da redenção.
Os anos foram andando, a memória tornou-se cinzenta e desmaiada. Penso às vezes no coronel, mas sem os terrores dos primeiros dias. Todos os médicos a quem contei as moléstias dele, foram acordes em que a morte era certa, e só se admiravam de ter resistido tanto tempo. Pode ser que eu, involuntariamente, exagerasse a descrição que então lhes fiz; mas a verdade é que ele devia morrer, ainda que não fosse aquela fatalidade...
Adeus, meu caro senhor. Se achar que esses apontamentos valem alguma coisa, pague-me também com um túmulo de mármore, ao qual dará por epitáfio esta emenda que faço aqui ao divino sermão da montanha: "Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão consolados" (ASSIS, 1994, p. 7).
Pensando na constituição narrativa dos dois contos em estudo e no simbolismo alquímico alguns pontos são importantes ressaltar como: a dualidade e união dos opostos. A história de Adão e Eva é diversificada em simbolismo de dualidade – o bem e o mal, o masculino e o feminino, a tentação e a virtude. A alquimia busca a união desses opostos, e tal conto explora essa busca a partir das interações das personagens. O jardim sendo percebido como o próprio laboratório alquímico, bem como esse espaço torna-se semelhante ao Jardim do Éden, lugar onde a transformação ocorre. É um espaço onde os personagens enfrentam suas provações e emergem transformados.
O processo alquímico de Procópio se revela na sua jornada de vida, onde ele passa por várias etapas de transformação psicológica e espiritual. Desde a aceitação do trabalho (nigredo, ou a fase negra de decomposição) até o momento de confissão e tentativa de redenção (albedo, ou a fase branca de purificação). A integração de opostos alquímicos envolve a luta interna de Procópio entre o bem e o mal, o crime e a luta, o dever e a culpa. Ao final do conto, ele busca uma síntese dessas forças opostas dentro de si, a fim de regenerar-se.
A metáfora da cura de Procópio se deve ao curar-se e ser curado, haja vista que a função dele como enfermeiro era curar o coronel, mas ironicamente, através desse processo alquímico de conhecimento de si e do outro, ele também busca curar a si mesmo. A cura física e a cura espiritual estão interligadas, refletindo a visão alquímica de que a transformação externa e interna são inseparáveis. Por isso, Procópio ao atingir o elixir da vida e encontrar a pela pedra filosofal não é se trata de uma substância mágica, mas a compreensão e a aceitação das próprias falhas e a busca contínua por redenção e melhoria pessoal.
O conceito de individuação proposto por Jung refere-se ao processo pelo qual um indivíduo se torna consciente de si mesmo e integra os diferentes aspectos de sua personalidade, alcançando um senso de totalidade. Nesse sentido, o desenvolvimento psicológico das personagens, em especial de Procópio que enfrentou dilemas morais que o forçou a confrontar aspectos sombrios de sua personalidade. O velho paciente representa um desafio que traz à tona emoções intensas e conflitos internos. A morte do paciente, e a subsequente reflexão de Procópio sobre suas ações e motivações, podem ser vistas como etapas no processo de individuação. Ele é forçado a lidar com a culpa, a dúvida e a ambiguidade moral, o que o leva a uma maior compreensão de si mesmo.
A integração da psique com a sombra acontece no processo junguiano de individuação quando essa mesma "sombra", que é a parte inconsciente da personalidade contém os aspectos reprimidos e negados do eu. A relação de Procópio com o paciente traz à tona sua sombra, pois ele é confrontado com sentimentos de raiva, frustração e, eventualmente, culpa pela morte do coronel. Ao reconhecer e integrar esses aspectos sombrios, Procópio avança em seu processo de individuação, autoconhecimento e despertar para uma nova etapa de vida.
Em “Adão e Eva”, de Machado de Assis, os temas de rito e alquimia são intricadamente entrelaçados para explorar as complexidades da natureza humana. O conto utiliza o simbolismo da tentação e da moralidade para criar uma narrativa de transformação e iniciação. Através dos ritos de passagem e dos processos alquímicos, Machado de Assis revela as profundezas da psicologia humana e a busca contínua por compreensão e redenção. As personagens passam por um processo de desintegração e purificação, refletindo a jornada alquímica em busca da integração e da iluminação.
A alquimia e a individuação foram exploradas através das transformações simbólicas e psicológicas das personagens, especialmente com relação ao casal Adão e Eva. Este conto, como muitos outros de Machado de Assis, revela camadas profundas de significados e nuances psicológicas. A alquimia, no sentido simbólico, refere-se à transformação e à busca pela perfeição ou pela essência verdadeira, o encontro com a pedra filosofal. O casal representa à figura bíblica obediente às leis divinas e tal postura resiliente adotada por eles opera como um catalisador para as transformações internas de si mesmos.
A transformação simbólica de Adão e Eva ao longo da jornada de vida e decisão pelo caminho do mal pode ser vista como uma representação da busca alquímica pela perfeição e pelo conhecimento. Assim como os alquimistas buscavam transformar metais comuns em ouro, os personagens do conto analisado experimentam uma transformação em suas percepções e entendimentos sobre si mesmos e sobre o mundo.
A individuação, segundo Jung, é o processo pelo qual um indivíduo se torna consciente de suas próprias singularidades e integra as diversas partes de sua personalidade para alcançar uma totalidade psicológica. No conto “Adão e Eva”, este processo foi ilustrado através das interações das personagens com a serpente e suas subsequentes introspecções. Nessa perspectiva, as personagens, ao contemplarem tal processo marginal e liminar, confrontaram aspectos de suas próprias vidas e personalidades. Este confronto pôde ser visto como uma jornada de individuação, onde cada personagem foi levado a refletir sobre suas próprias experiências, falhas e desejos.
Em linhas gerais, a história de Adão e Eva, que envolveu a tentação, a queda e a possibilidade de expulsão do Paraíso, representou a dualidade inerente à condição humana. As personagens do conto em estudo se observaram e passaram por um processo similar de integrar esses opostos dentro de si – a inocência e a culpa, o desejo e a proibição, o sagrado e o profano, o bem e o mal.
Com relação ao conto “O Enfermeiro”, este pôde ser analisado como uma narrativa em que os ritos de passagem se acentuam nas ações do protagonista, Procópio. Inicialmente, ele é um homem comum, mas ao aceitar o trabalho de enfermeiro, acaba se inserindo em uma jornada de transformação interna e externa. O ato de cuidar de um homem fastidioso e lidar com a morte de seu paciente pode ser interpretado como um rito de iniciação para Procópio. Esse rito envolve confrontar a mortalidade e a moralidade, forçando-o a refletir sobre sua própria vida e ações. Assim sendo, Procópio confessou seu crime ao leitor, utilizando a narrativa como um meio de expiação. Essa confissão é um rito de purificação, onde ele tentou lidar com a culpa e buscou a redenção. Por fim, a morte do coronel pôde ser compreendida como um sacrifício necessário para o renascimento moral de Procópio. O conto sugere que, através desse sacrifício, ele pôde alcançar um novo entendimento de si mesmo e do mundo ao seu redor.
Em “O Enfermeiro”, os temas de rito e alquimia são tecidos na narrativa através da jornada pessoal de Procópio. Os ritos de passagem e os processos alquímicos de transformação psicológica forneceram uma estrutura profunda para entender o desenvolvimento da personagem e a exploração de temas morais e existenciais. Por meio do confronto com a morte, a culpa e a busca pela redenção, Procópio representou a contínua luta humana pela autocompreensão e melhoria, um processo que é tanto um rito quanto uma alquimia.
Machado de Assis utilizou os temas de ritos profanos e sagrados e a alquimia de maneira sutil e produtiva em seus contos. Em “Adão e Eva”, a transformação das interpretações da serpente reflete a dualidade entre o sagrado e o profano, enquanto em “O Enfermeiro”, a transformação moral de Procópio mediante circunstâncias extremas pode ser percebida como uma metáfora alquímica. Os dois contos machadianos exploram as nuances da condição humana, revelando as profundezas da alma e as contradições intrínsecas da moralidade e da percepção humana em decorrência do mal, que se liga a morte, mas que em sua essência tem o (re) nascimento como nova vida surgida e regenerada.
Referências
ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. II.
ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. III.
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada contendo o Velho e o Novo Testamento. Tradução
segundo a vulgata latina por António Pereira de Figueiredo. Londres: Oficina de
Harrison e filhos, 1866. Disponível em: <https://docero.com.br/doc/n05scvs> Acesso
em 15 mai. 2024.
CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In: CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1977.
BATAILLE, Georges. A Literatura e o mal. Trad. de Fernando Scheibe. São Paulo: Autêntica, 2000.
DAMATTA, Roberto. Apresentação. In: GENNEP, Arnold Van. Os ritos de passagem. Trad. Mariano Ferreira. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. p. 9-20.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
GENNEP, Arnold Van. Os ritos de passagem. Trad. Mariano Ferreira. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
JUNG, Carl Gustav. Estudos Alquímicos. Trad. Dora Mariana da Silva e Maria Luiza Appy. Petrópolis: Vozes, 2016.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia do Inconsciente. Trad. Maria Luiza Appy. Petropólis: Vozes, 1971.
NUNES, Benedito. Machado de Assis e a Filosofia. Revista Travessia. Universidade Federal de Santa Catarina, n. 19, 1989, p. 10.
SAKAMOTO, Jacqueline. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 21.
VIDAL, Bernard. História da Química. Lisboa: Edições 70, 2001.