Secos & Molhados: 50 anos depois um diálogo entre teologia e poesia

Secos & Molhados: 50 years later a dialogue between theology and poetry

Emerson Sbardelotti
Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor e membro da Equipe de Formação do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos - CEBI-ES. Contato: prof.poeta.emerson@gmail.com


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Resumo: O artigo tem por objetivo apresentar recortes da história do grupo Secos & Molhados nos anos 1973-1974: sua importância para a Música Popular Brasileira em diálogo com a Teologia da Libertação que dava seus primeiros passos. Seguindo o método bibliográfico documental, a partir da reflexão das letras de algumas canções do Secos & Molhados. Os resultados alcançados mostram a força hodierna dos dois álbuns 50 anos depois e também da eficácia da Teologia da Libertação enquanto caminhos paralelos na direção da quebra de uma falsa moral que tem retornado com força neste tempo em que vivemos. A origem e o término do Secos & Molhados; a origem e prosseguimento da Teologia da Libertação, no contexto de ditaduras militares espalhadas pela América Latina e Caribe buscam oferecer uma análise de um exemplo da poesia e literatura produzida na Música Popular Brasileira e na Teologia da Libertação. A novidade do Secos & Molhados e da Teologia da Libertação é que através da Arte Libertadora a mensagem de liberdade e de esperança continua forte e pulsante, portanto, útil e necessária. Resgatar estes álbuns cinquentenários em diálogo com a Teologia da Libertação é fazer acontecer a Igreja em saída.

Palavras-chave: Secos & Molhados; Poesia; Profecia; Teologia da Libertação; Ditadura Militar

Abstract: The article aims to present excerpts from the history of the group Secos & Molhados in the years 1973-1974: its importance for Brazilian Popular Music in dialogue with Liberation Theology, which was taking its first steps. Following the documentary bibliographic method, based on the reflection of the lyrics of some Secos & Molhados songs. The results achieved show the strength of the two albums today 50 years later and also the effectiveness of Liberation Theology as parallel paths towards breaking a false morality that has returned with force in the times in which we live. The origin and end of Secos & Molhados; the origin and continuation of Liberation Theology, in the context of military dictatorships spread throughout Latin America and the Caribbean seek to offer an analysis of an example of poetry and literature produced in Brazilian Popular Music and Liberation Theology. The novelty of Secos & Molhados and Liberation Theology is that through Liberating Art the message of freedom and hope continues strong and vibrant, and therefore useful and necessary. Recovering these fifty-year-old albums in dialogue with Liberation Theology is to make the Church go forth.

Keywords: Secos & Molhados; Poetry; Prophecy; Liberation Theology; Military Dictatorship

Introdução

Diga que eu não sei de nada 

nem posso saber[1] (SECOS & MOLHADOS, 1974).

Em 2024, a frágil democracia brasileira assistiu com temor e tremor as iniciativas de grupos retrógados e reacionários da sociedade, que insistiram em celebrar os 60 anos do golpe militar que depôs o presidente João Goulart, iniciando em 1 de abril de 1964 uma ditatura que duraria 21 anos, até 15 de março de 1985. Infelizmente, o Brasil tem sérios problemas em lidar com seus acontecimentos históricos e responsabilizar as pessoas envolvidas com crimes cometidos durante a ditadura. Enquanto em outros países latino-americanos as pessoas envolvidas com as ditaduras foram julgadas, condenadas e presas, e não sairão das cadeias; aqui no Brasil assistimos tais carrascos e algozes morrendo em plena liberdade, tranquilos, sem incômodos, homenageados como “verdadeiros heróis”, sem serem culpados pelos crimes de sangue e pelas violações de direitos humanos que cometeram e continuam impunes. A ferida continua aberta para as famílias que perderam entes queridos.

Contudo, no dia 14 de dezembro de 2024, o general Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e da Defesa do governo Jair Bolsonaro e vice em sua chapa nas eleições de 2022; foi preso preventivamente pela Polícia Federal, em operação autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, nas investigações que apuram uma tentativa de golpe de Estado após as eleições presidenciais de 2022. É a primeira vez, na história política do Brasil que um general de 4 estrelas é preso por estar supostamente envolvido numa tentativa de golpe. 60 anos depois, talvez, esteja iniciando uma nova página da história brasileira.

Para nunca nos esquecermos, foram alvos da perseguição militar no Brasil: os/as estudantes, os/as professores/as, os/as militantes de partidos políticos contrários ao regime, os/as sindicalistas, os/as artistas de todas as áreas de expressão cultural, os/as indígenas, os/as quilombolas, os/as moradores/as das favelas-comunidades periféricas. 

Segundo Joana D’arc Fernandes Ferraz[2]:

A ditadura militar no Brasil foi um período marcado pela imposição de um modelo econômico favorável aos interesses empresariais e militares, que resultou em violações generalizadas dos direitos humanos e marginalização de grupos vulneráveis. Até por isso, nós, historiadores e pesquisadores, preferimos chamar esse período de Ditadura Empresarial-Militar Brasileira. O legado desse período continua a ser explorado por pesquisadores e ativistas, na busca por verdade, justiça e memória.

Isso não foi algo exclusivo do Brasil. Outros países latino-americanos também passaram por ditaduras militares, mas aqui tivemos particularidades. A ditadura brasileira foi um dos primeiros exemplos desse tipo na região, e acabou exportando um modelo tanto de repressão quanto de organização econômica para outros países latino-americanos.

Durante aquele período, vimos uma série de violações de direitos humanos, especialmente contra grupos marginalizados, como indígenas e quilombolas, que tiveram seus direitos negados em prol dos interesses do agronegócio e do capital. Foi uma época marcada por uma repressão intensa e pelo silenciamento das vozes dissidentes (FERRAZ, 2024, p. 1).

O surgimento do Secos & Molhados[3] no cenário cultural brasileiro, deixaria tudo e todos de pernas para o ar; os agentes repressivos do regime não souberam o que fazer; nas palavras de Denise Pires Vaz: “Em poucos dias, viraram um verdadeiro estrondo em São Paulo – apenas o começo de um furacão que se estenderia por todo o país, tão intenso quanto rápido: não duraria mais que um ano e meio” (VAZ, 1992, p. 52). 

Em 1973, o Secos & Molhados venderia mais de um milhão de discos, com vários sucessos televisivos e radiofônicos. O segundo disco, de 1974, teve uma venda bem inferior, tendo apenas um grande sucesso na época: Flores Astrais[4]. A entrada do Secos & Molhados no cenário musical brasileiro era uma experiência que poderia ser assustadora, divertida, porém, transformadora.

Segundo Ney Matogrosso:

Quando surgiu o Secos & Molhados, na década de 1970, vivíamos num país muito conservador, machista – não muito diferente do que vivenciamos hoje, talvez hoje ainda seja pior –, então nós causávamos incômodo e estranheza com a carga de transgressão através da questão sexual, do comportamento. Tínhamos consciência de que vivíamos num país careta, submetido a uma ditadura militar agressiva e nojenta. Recebi inúmeras ameaças de morte, mas nunca me intimidei. Minha arma era a libido. Sempre fui muito recatado, mas descobri que, com aquela maquiagem, liberava um lado meu mais agressivo e contestador. O que eu fazia era para chocar e questionar. Já entrava no palco com tanta raiva que não havia espaço para me agredirem, eu agredia primeiro. Enfim, hoje não é muito diferente. No atual momento do país, com o crescimento da bestialidade do conservadorismo, penso que um grupo como o Secos & Molhados apanharia na rua (MATOGROSSO in MELLO, 2018, p. 91).

60 anos depois do golpe empresarial-militar que destruiu muitos sonhos e vidas, mais de 60 anos depois do Concílio Ecumênico Vaticano II, mais de 50 anos depois da Conferência de Medellín; 50 anos do lançamento de dois discos fantásticos que mexeram com corações, mentes e corpos; mais de 50 anos depois do germinar da Teologia da Libertação na América Latina e Caribe que aproximou o Jesus histórico da realidade latino-americana e caribenha, este artigo tem por objetivo apresentar recortes a partir de algumas letras das canções do Secos & Molhados nos anos 1973-1974, durante os governos dos generais-presidentes Médici e Geisel: sua importância para a Música Popular Brasileira em diálogo com a Teologia da Libertação num possível enfrentamento à ditadura militar e os frutos desta resistência para os dias atuais.

O novo pode superar as velhas estruturas viciadas.

Veja bem, a gente vinha de um golpe de 1964 e de um outro golpe maior ainda que foi o Ato Institucional no 5, de 13 de dezembro de 1968, uma data fatídica. [...] E o Brasil vivia um momento de repressão total. [...] Com a ditadura, as pessoas tinham medo de verdade e nós que vivemos aquela época ainda hoje guardamos um medo na alma. [...] Ainda bem que a Censura era muito burra, e não percebia o que estava acontecendo no mundo. O cenário estava prontinho para o surgimento dos Secos & Molhados (DO VAL in SABADIN & UCHA, 2019, p. 77. 79).

Os álbuns cinquentenários do Secos & Molhados[5] não estão estáticos; eles estão além das aparências das coisas, pois continuam despertando interesse das pessoas, por conta de suas capas, contudo por conta de suas poesias e melodias; despertando nossa consciência, ligando as mais diferentes pessoas, anunciando sem ter a dimensão disso: novos caminhos; denunciando erros que não podem se repetir, e provocando mudanças! É a força da Arte Libertadora que sempre está a favor da defesa da vida, de todas as vidas! 

Em plena ditadura civil-militar brasileira, precisamente sob o comando dos generais-presidentes Emílio Garrastazu Médici (1969-1974)[6] e Ernesto Geisel (1974-1979)[7], surge e desaparece com a mesma intensidade e velocidade, o fenômeno musical brasileiro: Secos & Molhados, que, com sua formação clássica e vitoriosa – João Ricardo (violões de 6/12 cordas, harmônica de boca e vocal); Gérson Conrad (violões de 6/12 cordas e vocal); Ney Matogrosso (vocal); lançam dois álbuns homônimos, o de maior sucesso, de 1973, que na primeira semana, vendeu mais de 1500 cópias; no cenário nacional bateu o recorde de Roberto Carlos, vendendo mais de 1 milhão de cópias em pouco mais de doze meses[8]; e o segundo, não trabalhado, desvalorizado, conhecido como Secos & Molhados II, de 1974, que teve um pedido de 300 mil cópias vendidas antes do lançamento. O álbum de 1973, em busca rápida nos sites de venda tem valores variados que vão de R$ 190,00 (cento e noventa reais) a R$ 999,00[9] (novecentos e noventa e nove reais). O álbum de 1974, tem valores variados que vão de R$ 187,00 (cento e oitenta e sete reais) a R$ 219,90[10] (duzentos e dezenove reais e noventa centavos). Ambos, em 2023 e 2024 completaram, respectivamente, 50 anos; e não envelheceram, não ficaram datados, continuam pulsando, continuam provocando no mais atento ouvinte, mudanças singelas, ao mesmo tempo profundas. Para os/as pesquisadores/as do diálogo entre Teologia e Poesia – Teologia e Música, os álbuns do Secos & Molhados[11], são leitura (nos LPs originais há os encartes com as letras e fotos; nos CDs que foram lançados na década de 2000 há os livretos com as letras e fotos) e escuta imprescindível. 

Nelson Motta relata sua primeira impressão com o Secos & Molhados:

Usando muito dos conceitos que aprendi no “Grupo de Trabalho” da Philips, fiz uma longa e profunda análise musical, poética, política, sexual, comportamental e mercadológica do Secos & Molhados, o novo fenômeno musical brasileiro, que tinha vendido mais de 700 mil discos. Era o primeiro grupo nacional com uma atitude rock a conquistar o sucesso de massa no Brasil. Rostos pintados, roupas extravagantes, músicas animadas e principalmente o sensacional solista Ney Matogrosso, com sua voz de soprano e sua sexualidade exuberante, ambivalente e provocativa. Ney não era só a voz, era o corpo e o coração do grupo, mas a cabeça era João Ricardo, um jovem intelectual português de São Paulo, esnobe e bonitíssimo, autor da maioria das músicas, dos conceitos de repertório e performance do Secos & Molhados (MOTTA, 2001, p. 266).

O Secos & Molhados tornou-se uma verdadeira coqueluche nacional, arrastando milhares de pessoas para seus shows pois trazia uma leveza e uma beleza, tanto nos arranjos como na voz diferenciada de seu vocalista; trazia um espanto e uma novidade na estética tropicalista: o texto e a performance do Secos & Molhados provocariam um diálogo na direção da liberdade durante os Anos de Chumbo (1964-1985), em plena censura; pois tudo era novo no Secos & Molhados, e isso incomodaria a ditadura total implantada no país. Em dois álbuns, o Secos & Molhados, disse tudo e para o que tinha vindo. E o resultado de sua passagem meteórica pode ser sentida nos dias atuais quando ouvimos aquelas 26 canções. A força daqueles álbuns está no impacto exuberante de suas capas exóticas e belíssimas, de sua poesia e musicalidade. Ninguém consegue ficar inerte ao escutar aqueles álbuns. Bia Abramo dirá que “a ambiguidade sexual que emanava da performance em palco, as imagens perturbadoras da capa do LP homônimo que chegaria às lojas de discos em agosto de 1973 e a estranheza da música que não se encaixava em nenhum dos rótulos mais conhecidos” (ABRAMO, 2023, p. 1). O Secos & Molhados é um sonho que jamais se repetirá. Nesta direção, Arthur Dapieve afirma:

Durante os anos 70, além de Raul Seixas, alguns grupos tiraram um som marginal à tendência progressiva dominante. O mais bem-sucedido – apesar de ter durado somente dois anos e uns quebrados – foi o Secos & Molhados, de Ney Matogrosso, Gerson Conrad e João Ricardo. Entre 1971 e 1974 eles hipnotizaram o país com o folk de “O vira”, “Sangue latino”, “El rey”, “As andorinhas” (sobre poema de Cassiano Ricardo) e “Rosa de Hiroshima” (idem Vinícius de Moraes). O grupo vendeu espetaculares 700 mil cópias de seu primeiro LP, Secos & Molhados (73), quase bisou o feito com o segundo (74) e fez    no Maracanãzinho, uma apoteótica apresentação para 25 mil pessoas (registrada num inaudível disco lançado somente em 1980). A beleza, leveza e relativa simplicidade dos arranjos, aliadas ao impacto da figura andrógina de Ney Matogrosso, fizeram do grupo uma coqueluche nacional, digna do Fantástico. Os Secos & Molhados quase estabeleceram de vez a fatia rock dentro do panorama brasileiro. Talvez tivessem conseguido se tivessem sobrevivido mais tempo. Mas desacertos monetários entre Gerson e Ney de um lado e João e seu pai João Apolinário (também letrista) do outro eliminaram esse futuro do rol dos possíveis. Desfeito o grupo, Ney virou astro da MPB e os outros, apesar de periódicas tentativas de repor o bloco na rua, ficaram nas glórias do passado (DAPIEVE, 2015, p. 22).

Para os desatentos: naqueles anos de 1973-1974, a conjuntura não seria diferente do resto do Continente Latino-Americano: o Brasil era um país imerso em uma ditadura militar, sem direitos políticos, as pessoas eram obrigadas a viverem caladas ou na clandestinidade, e o maior desejo era o fim das torturas e da censura. Era preciso escrever nas entrelinhas do que se queria dizer; escrever muitas vezes através de metáforas. Para escaparem da censura, João Ricardo criou melodias em poemas já publicados de escritores famosos da Literatura brasileira e estrangeira: João Apolinário, Solano Trindade, Vinícius de Moraes, Cassiano Ricardo, Manoel Bandeira, Julio Cortázar, Fernando Pessoa, Oswald de Andrade:

O Secos & Molhados colocou em cena ingredientes de um planeta distante, em sintonia com galáxias contemporâneas, e distante daquele ambiente brasileiro de estéticas banais, em que ou você era a favor ou contra (o regime). Nada que estivesse fora dessa régua seria tolerado. A banda de João Ricardo, Ney Matogrosso e Gérson Conrad punha na mesa temas como a antropofagia musical (rock inglês + fado português + modinhas brasileiras etc.), a androginia e o lúdico da cultura. E, para isso, se apoiava em versos de Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Solano Trindade e Fernando Pessoa.

[...] O regime militar trataria a cultura brasileira com requintes de masmorra medieval ao instituir censura às obras artísticas e perseguir alguns de seus principais criadores e críticos. Muitos deles foram presos para interrogatórios, outros chegaram a ser torturados e outros, ainda, deixaram o país no papel de exilados políticos. Tiveram sorte diante de outros adversários do regime, brindados com mortes por afogamento, balas às costas ou execuções sumárias sob rajadas de metralhadora. Mas a mensagem estava gravada em ameaças garrafais: um verso contundente ou mesmo uma declaração torta à imprensa despertaria a ira verde-oliva dos militares, e o criador estaria em maus lençóis ou, pior, no pau de arara.

Por isso a estratégia estética de João Ricardo para seu futuro grupo, naquele início da década de 1970, em pleno governo do general Emílio Garrastazu Médici, soava ousada à esquerda (por ser universalista) e à direita (por não ter letras alienadas). Em uma ideia quase prosaica, que mais atendia a uma tática, decidiu que colocaria música em poemas de autores consagrados. Bastava escolher os melhores versos entre os livros. Ou seja, trabalhos em circulação e, portanto, com seu teor político então já exposto ao humor bipolar dos milicos. Não sendo os censores do período leitores contumazes de poesia, não era incomum petardos acerbos contra o regime, sem muita perturbação, virem estampados em páginas assinadas por autores como João Cabral de Melo Neto, Vinícius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, entre outros. Sendo uma ditadura à brasileira, muita coisa passava despercebida debaixo dos bigodes e quepes das autoridades, ainda mais por ser a poesia uma linguagem mais elaborada. Na verdade, os militares se importavam com as grandes audiências – primeiro, com a televisão; depois com a música; em terceiro lugar, com o teatro e o cinema. Enfim, a poesia escapava ao radar deles, por possuir menor alcance de público. 

[...] As artimanhas para burlar o aparato censório, com o intuito de chegar ao grande público e não deixar de registrar as angústias daquela situação, até denunciá-las, eram diversas e provocavam celeumas ideológicos entre as fileiras militantes dos artistas mais à esquerda. Cada qual usava a sua carta na manga (ALMEIDA, 2019, p. 10; 24-25).

As pessoas que militavam e faziam uma política de esquerda eram os alvos preferidos do regime ditatorial; muitas foram presas e mortas. Era um país de sombras onde o Governo Médici alegava que o país vivia uma guerra revolucionária subversiva e para a qual era exigido o combate ideológico implacável e força bruta:

Na gestão de Médici, a tortura era o prato do dia. O presidente havia tomado posse com um discurso no qual prometia reinstaurar a democracia no país, mas nos porões o pau cantava. E no centro de repressão estavam justamente os serviços secretos militares.

Nos quatro anos que esteve à frente da Presidência, Médici negou peremptoriamente a existência de tortura no país. Mas ao mesmo tempo nunca perdeu uma oportunidade de exaltar o trabalho dos homens envolvidos na repressão. A contradição nas palavras do presidente caía como uma senha nas masmorras do regime: a tortura seria tolerada, mas ninguém admitiria isso em público. Os agentes que operavam naquele circuito, por sua vez, podiam dormir tranquilos, pois gozavam de prestígio com Médici. 

(...) Médici tinha sido posto na Presidência justamente para acabar com a luta armada e sufocar as pressões contra o governo, e cumpria sua missão com gosto. Procurava, contudo, evitar que transpirasse para a população quais eram os métodos utilizados nessa guerra. A censura – institucionalizada com o AI-5 – estava aí para isso (FIGUEIREDO, 2005, p. 192-193).

Dentro deste contexto o surgimento do Secos & Molhados foi como uma lufada de ar novo, numa sociedade sufocada pelo terror, sufocada pela morte. A Arte consiste e insiste sempre em brotar, germinar em lugares onde há um resquício de vida. As pessoas, desde crianças até idosos, se sentiam atraídas pela arte libertadora e ousada do Secos & Molhados por causa de sua imensa espontaneidade explicita. O Secos & Molhados era moderno demais para aquele período da história brasileira; e continua sendo hodierno. A Arte surge como expressão da liberdade, um desafio comportamental, sendo voz-canção-corpo-dança numa sociedade silenciada e imobilizada pelo ódio e pelo medo.

O Secos & Molhados surge num período que marcou o fim dos históricos festivais de música das TVs Excelsior, Record e Globo – a famosa “Era dos Festivais”. Foi numa época de muita repressão e ao mesmo tempo de criatividade e resistência. Tanto eu quanto outros nomes da música tivemos problemas com a censura da ditadura. Caetano, Chico, Gal, Gonzaguinha, Raul Seixas, Luís Melodia sofremos com aquele clima de tolhimento e anulação de liberdades, presente no ar de forma cada vez mais intensa.

[...] A censura também ficou de olho em nós, os integrantes do Secos & Molhados – éramos considerados um problema para a moral e os bons costumes da época. Chegaram a proibir que as câmeras em programas de televisão me colocassem em close. A força do Secos & Molhados estava justamente em não assumir uma postura de enfrentamento com a ditadura, mas em se constituir um desafio comportamental através da dança, das roupas, da subjetividade (MATOGROSSO in MELLO, 2018, p. 66-67).

O sucesso do Secos & Molhados se deu pela fusão, pela simbiose de três pessoas completamente diferentes, mas que iriam fazer da arte, a beleza e a estética que faltavam no cenário cultural brasileiro, que estava silenciado por causa da ditadura militar. Iriam provocar mudanças. O Secos & Molhados deve ser analisado a partir das melodias, e neste artigo, das letras que fizeram, do mise-en-scène[12] que proporcionaram, dos poetas escolhidos. É claro, muitos ensaios. Ensaiaram tanto que quando chegaram no estúdio, pouco se mexeu nos arranjos. A repetição leva à perfeição. O novo pode superar as velhas estruturas viciadas. 

Um sucesso instantâneo e corajoso, dá uma ideia daquele momento, da criatividade de dois compositores que sabiam escolher as palavras e usar certeiramente as metáforas para dizerem o que queriam, e de uma voz inigualável:

EL REY[13]

(Gérson Conrad / João Ricardo)

Eu vi El Rey andar de quatro

De quatro caras diferentes 

De quatrocentas celas

Cheias de gente

Eu vi El Rey andar de quatro

De quatro patas reluzentes

De quatrocentas mortes...

Eu vi El Rey andar de quatro

De quatro poses atraentes

De quatrocentas velas

Feitas duendes (SECOS & MOLHADOS, 1973).

Atentamente, observa-se que a letra denuncia o golpe militar e tudo o que ele acarretou para os/as brasileiros/as: as muitas dores, as angústias, o choro, os traumas até os dias de hoje. A letra aponta a estatística da morte presente: “De quatrocentas celas / Cheias de gente”, “De quatrocentas mortes...”, “De quatrocentas velas”. É o retrato de um tempo terrível, em que a vida estava ameaçada; foram os piores tempos da história brasileira, onde o governo Médici tinha uma dupla face: a do “milagre econômico” e a sangrenta repressão política: tudo era severamente censurado. “Eu vi El Rey andar de quatro”, aparece por três vezes no início de cada estrofe, como um mantra, porém, como um prelúdio realístico-esperançoso de que o poder haveria de estar um dia nas mãos daquelas pessoas que naquele momento histórico eram oprimidas. As metáforas presentes na canção fazem uma simbiose entre o fantástico, o mítico e a realidade humana.

O movimento de oposição à ditadura cresceu em 1968, com estudantes, professores/as, artistas, intelectuais, pastores e padres progressistas invadiram as ruas para protestarem contra a ditadura militar. No dia 13 de dezembro de 1968, a ditadura militar decretou o Ato Institucional n5 (AI-5), a principal peça jurídica do regime, o mais violento de todos os atos institucionais até então outorgados. Com este novo Ato, o governo fechou o Congresso Nacional, suspendeu os direitos políticos e as garantias constitucionais, incluindo o habeas corpus por crime político, implantou intervenção federal em estados e municípios, podia decretar o estado de sítio sem autorização do Congresso, implantou a censura aos meios de comunicação; cerceou as liberdades de expressar a opinião. O AI-5 veio para dar cobertura legal à brutalidade do regime. Do seio dessa brutalidade, três personagens surgem para fazer a diferença, e proporem através dos rostos pintados, da poesia, da canção e da dança uma revolução não violenta, porém, atenta aos sinais.

Os Secos e os Molhados

João Ricardo Carneiro Teixeira Pinto, o João Ricardo, nasceu em Arcozelo, freguesia do município de Ponte de Lima, em Portugal, no dia 21 de novembro de 1949, cantor e compositor radicado no Brasil desde 1964, filho do poeta e jornalista português João Apolinário. João Ricardo é conhecido por ser a cabeça pensante do Secos & Molhados.

Miguel de Almeida a respeito de João Ricardo diz:

Em fevereiro de 1973 João Ricardo tinha 23 anos, um passado como jornalista às voltas com vários bicos e a sede de quem deseja mudar o mundo.

(...) Longe de ser um militante, João Ricardo desde cedo havia sido contaminado por um ardor revolucionário. Estava impregnado em seu temperamento, sequer podia lutar contra seus rompantes: fazia parte de sua ânsia. Fora criado em um universo de intenso questionamento por um lado e, na outra via, de obediência cega às decisões (ALMEIDA, 2019, p.41).

Gérson Conrad, nasceu em São Paulo, no dia 15 de abril de 1952, cantor e compositor. Gérson Conrad é conhecido como o S&M caladão, três anos mais novo que João Ricardo e onze a menos que Ney Matogrosso. É a voz do meio, uma ponte harmoniosa entre a voz de Ney e a voz de João.

Miguel de Almeida a respeito de Gérson Conrad diz:

Àquela altura, primeiro semestre de 1971, Gérson Conrad era estudante de arquitetura na Faculdade Braz Cubas, em Mogi das Cruzes, e já havia se livrado do serviço militar obrigatório. Não teve muito como negar o pedido. Sorriu apenas e viu que seu parceiro João Ricardo jamais aceitaria um aceno que não fosse um assentimento – enfático, de preferência. Ali naquela soleira da porta, ainda surpreso com o convite, Conrad passou a integrar o futuro Secos & Molhados. João Ricardo transmitia rapidamente as novidades, em tom de urgência, em fala apressada. Parecia não querer perder tempo com muitos detalhes, à sua vista, irrelevantes diante do futuro que se aproximava.

Poucos meses depois, João Ricardo e Conrad embarcaram em um trem noturno na estação da Luz rumo ao Rio de Janeiro. Mal sabiam que aquele trajeto determinaria mudanças brutais em suas vidas – um divisor de águas.

Ao surgirem no final da manhã seguinte, ainda insones e amarfanhados, na casa de Luhli, nos altos de Santa Teresa, e serem apresentados a um hippie magro e de fala baixa, alcunhado apenas Ney, sem sobrenome, João Ricardo e Conrad não tinham ideia da força que em breve iriam mover na sociedade brasileira (ALMEIDA, 2019, p. 60-61).

Ney de Souza Pereira, o Ney Matogrosso, nasceu em Bela Vista, no Mato Grosso do Sul, fronteira com o Paraguai, no dia 1 de agosto de 1941, continua sendo, aos 83 anos, um dos artistas mais aclamados do Brasil, uma referência quando se falam de vozes especiais, mesmo cantando quase todos os gêneros, sua postura rock’n roll continua presente a cada apresentação. É considerado pela revista Rolling Stone[14] como a terceira maior voz brasileira de todos os tempos e, pela mesma revista, trigésimo primeiro maior artista brasileiro de todos os tempos. Rita Lee, na reportagem diz: 

Ney Matogrosso é incomparável. Nunca houve entre os cantores brasileiros uma figura tão sedutora, chique e atrevida. Públicos feminino e masculino são hipnotizados por sua voz e presença. Não há quem não fique apaixonado. O timbre da voz é inigualável. Quando se ouve, sabe-se na hora quem é. Isto se chama personalidade e ele a aplica em todos os poros de sua arte (LEE in ROLLING STONE, 2013).

O álbum das cabeças servidas numa mesa

A mesma revista Rolling Stone[15] (13ª.edição – 29/10/2007), colocou este primeiro trabalho do Secos & Molhados na quinta posição em sua lista dos 100 maiores discos da história da Música Popular Brasileira. A fotografia é de Antonio Carlos Rodrigues, sobrinho do jornalista, escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, que havia recebido o prêmio de Melhor Fotógrafo de 1972 por uma mostra no MASP.

Segundo Miguel de Almeida:

Em 1973, a Continental destinou cerca de 100 reais (valor nos dias de hoje) para a produção da capa do primeiro disco do Secos & Molhados. Era uma quantia irrisória, insuficiente para a remuneração de um bom profissional.

[...] João Ricardo, Ney, Gérson e Marcelo surgiram no estúdio de Rodrigues, uma casa charmosa na rua Groenlândia, no Jardim Europa. Haviam acabado de gravar o disco, estavam entusiasmados.

[...] – Vou colocar a cabeça de vocês na mesa. Como o nome é Secos & Molhados, minha ideia é esparramar pela mesa algumas coisas de comida. Vamos assumir o conceito do nome que é muito bom.

[...] – E aí? Vamos seguir essa ideia?

João Ricardo, Ney e Gérson, balançaram a cabeça em sinal positivo. Marcelo Frias não fez gesto nenhum. Mal sabiam, estavam dando o.k. para serem atores de uma das capas de disco mais chocantes do país.

[...] Quando entraram no estúdio fotográfico, João, Ney, Gérson e Marcelo encontraram Rodrigues entusiasmado. Ele logo mostrou o cenário montado. Ao centro, uma mesa coberta por toalha branca, cercada com potentes refletores de abas largas. Com dinheiro do primeiro bolso, havia comprado os hoje famosos ingredientes da foto da capa – garrafas de vinho, pão, cebola, linguiça, barras de doce, grãos e azeites. E pratos de papelão laminado onde seriam postas as cabeças.

[...] Rodrigues, junto de sua assistente, contou como seria feita a foto, discutiu a posição deles na mesa. Depois de algumas conversas, ficou combinado: num primeiro plano, Ney à esquerda; levemente atrás, João à direita; ao fundo, à esquerda Gérson e à direita Marcelo. Rodrigues contou a eles que se inspiraria no seu último trabalho, possuía ligação com o clima político do Brasil, com a censura imposta pelos militares, a prisão de opositores do regime, os desaparecimentos de militantes políticos (ALMEIDA, 2019, p. 171; 173; 175-176; 179).

As cabeças expostas em bandejas, faz uma longínqua referência ao texto do Evangelho segundo Mateus 14,6-11[16], onde o tetrarca Herodes manda decapitar a cabeça de João Batista, depois que sua sobrinha dançou e ele lhe prometeu sob juramento, dar-lhe o que pedisse, e ela pediu: “Dá-me agora mesmo, numa bandeja, a cabeça de João Batista”. 

Secos & Molhados - 1973[17]

O álbum das cabeças de cestos de palha

José Roberto Zan contextualiza o momento que surge este álbum:

As gravações desse esperado álbum foram feitas em junho de 1974 nos estúdios SONIMA, em São Paulo, sob a coordenação de produção de Julio Nagib. João Ricardo definiu o repertório sem ouvir os demais integrantes, o que contribuiu para acirrar a animosidade entre eles. O disco contém treze faixas, das quais seis são poemas musicados de Julio Cortázar, Fernando Pessoa, Oswald de Andrade e João Apolinário. Algumas músicas foram vetadas pela censura, dentre elas, “Tem gente com fome”, versos do poeta Solano Trindade com melodia de João Ricardo, o que obrigou o grupo a compor às pressas outras canções para completar o álbum. A balada “Delírio”, de Gerson Conrad e Paulinho Mendonça, única sem a participação autoral do líder, foi uma delas. A instrumentação manteve padrões similares aos do primeiro disco, com a atuação de músicos habilidosos em arranjos compactos, oscilando entre as baladas pop e o rock progressivo. A capa repete, em certos aspectos, as características conceituais do primeiro disco. Produzida por Antonio Carlos Rodrigues, traz as fotos dos rostos maquiados dos três integrantes do grupo sobre um fundo preto. Através da superposição de imagens, cabeças parecem impressas sobre cestos de palha. O disco foi bem produzido e a Continental elaborou um extenso plano de divulgação e marketing, incluído cartazes e filmes comerciais que seriam exibidos em salas de cinema das principais cidades brasileiras. Porém, não teve a receptividade esperada por parte do público e nem da crítica. Na opinião de Ana Maria Baiana, num texto escrito logo após o lançamento, tratava-se de “um disco frio e distante da força e de um certo encanto mágico e ingênuo” do álbum de estreia. A autora destacou ainda a excessiva pretensão “literária” ao se trazer para o campo da canção os poemas de Julio Cortázar, Oswald de Andrade e Fernando Pessoa, além de certa “literatice” que caracterizava especialmente as letras de Paulinho Mendonça. O crescente clima de discórdia entre os membros do grupo impediu que fossem cumpridos todos os compromissos previstos na extensa agenda de eventos destinados à divulgação e promoção montada pela gravadora, o que certamente prejudicou as vendas. Antes de o trio anunciar a sua dissolução no início de agosto, foram produzidos na TV Globo dois clips para o programa Fantástico, com as canções “Flores astrais” e “Tercer mundo”. A primeira (2ª. faixa do lado A) é uma típica balada pop de João Ricardo e João Apolinário. O arranjo, à base de piano, guitarra elétrica, contrabaixo, flauta e bateria, integra-se ao canto em três vozes. Na gravação para a TV, Ney Matogrosso usa uma fantasia futurista feita pela escultora Mari Yoshimoto, composta por um cocar de metal prateado, luvas com dedos longos e pontiagudos confeccionadas com o mesmo material, e um grande brasão cintilante fixado no centro do peito. João Ricardo e Gerson Conrad, maquiados e com fantasias mais discretas, atuam como coadjuvantes. O cenário é formado pela imagem ampliada da capa do LP, tendo ao fundo uma grande lua dourada. Essa foi a canção que se tornou mais conhecida e que impulsionou a vendagem do disco. A composição “Tercer mundo”, a primeira faixa do álbum, é um poema de Julio Cortázar com melodia de João Ricardo composta a partir de clichês da música flamenca. Ney Matogrosso se apresenta com o cabelo preso por uma fita vermelha, formando um coque na altura da nuca, costeletas longas, um grande brinco em forma de argola na orelha esquerda e braceletes de metal nos braços. Sem máscara e penachos, usa apenas sobras escuras sobre os olhos e batom encarnado. O vestido preto, com amplo decote, deixa expostos os ombros e o peito peludo. Esses adereços, somados à gestualidade ao estilo das divas do flamenco e ao seu timbre vocal característico, acentuam a ambivalência da performance (ZAN, 2013, p. 18-19).

Sobre a capa do segundo e último álbum do Secos & Molhados com a formação clássica, Miguel de Almeida explica:

A capa, de novo assinada por Antonio Carlos Rodrigues, é sisuda, enigmática e descortina o clima pesado reinante: o rosto maquiado dos três membros do grupo surgia sobre um fundo negro, com tramas de tecido.

[...] É uma bela peça de Rodrigues, com um design e fotos em estilo noir, enigmáticas, estampando o clima de desconforto entre seus integrantes. Mas com a dissolução do grupo, logo em seguida, passou despercebida. Ao contrário da primeira capa, com as cabeças cortadas, vista como um clássico, e eleita em 2001 pela Folha de S. Paulo como a melhor capa de LP na história da música popular brasileira (ALMEIDA, 2019, p. 260).

No repertório deste álbum, três músicas foram censuradas: Pasárgada, baseada no poema Vou-me Embora Pra Pasárgada, de Manuel Bandeira; Tristeza Militar, com letra e música de João Ricardo; e Tem Gente com Fome, versão de João Ricardo para poema de Solano Trindade. Este disco é pouco valorizado e conhecido. O disco não teve as falhas técnicas do primeiro disco, foi muito bem feito e acabado, porém, um disco sem inovações.

Sergio Vaz apresenta-nos um ponto de vista, que não tira seu brilho, porém, nos faz pensar sobre o segundo e último trabalho do Secos & Molhados:

Não que o primeiro disco de Secos & Molhados seja ruim, nem que o segundo disco seja ruim. As falhas do primeiro – as falhas técnicas, de produção e gravação – foram corrigidas. O disco é bem feito e bem acabado. Não há nenhuma música ruim; são todas agradáveis, bonitas, bem executadas e maravilhosamente bem cantadas. Duas ou três são na verdade emocionantes, como “Tercer Mundo”, que João Ricardo fez para o poema de Cortazar, “O doce e o amargo” e “Preto Velho”, também de João Ricardo.

Mas o importante é que esse segundo disco mostrava a rota que o conjunto seguiria, se não tivesse sido desfeito. Pelo que o primeiro disco mostrou, e agora esse novo, é fácil perceber que Secos & Molhados não estava de forma alguma interessado em criar, inovar, inventar, mudar, crescer – como um Caetano, um Gil, um Chico Buarque, um Milton Nascimento (VAZ, 1974, p. 1).

Secos & Molhados 1974[18]

Prece Cósmica: Teologia da Libertação e Arte Libertadora.

Que os 4 como num teatro

Conservem a mão sem nenhum gesto

Que o vinho quente do coração

Lhes suba à cabeça espessa

Que do bolso de cada um dos 4

Como num teatro voem pombas

(Pombas brancas)

... E amanheça[19] (SECOS & MOLHADOS, 1973).

A Teologia da Libertação (TdL) tem sua origem nos textos bíblicos do Primeiro Testamento[20] e do Segundo Testamento[21], principalmente os Evangelhos em que sobressaem a pedagogia e a prática libertadora de Jesus de Nazaré e sua opção radical pelos pobres. Jesus de Nazaré é, portanto, o centro desta Teologia. Portanto, as passagens do Deus Libertador no Primeiro Testamento: no Êxodo, nos Profetas, nos Salmos, onde Deus se faz presente na luta do povo em defesa da vida, não deixam margem para dúvida por uma opção pelos pobres. No Segundo Testamento, encontram-se as Palavras e as Ações de Jesus de Nazaré nos Evangelhos, juntamente com o testemunho das Primeiras Comunidades Cristãs e as cartas de amor e compromisso redigidas por pessoas que viveram até as últimas consequências a alegria do Evangelho. A Palavra de Deus é a fonte original e primordial da Teologia da Libertação.

A Teologia da Libertação está presente nas inspirações do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), no Pacto das Catacumbas (1965), em sua recepção profética e pastoral na Conferência de Medellín (1968), nas opções e rostos na Conferência de Puebla (1979), no silêncio a seu respeito da Conferência de Santo Domingo (1992), em sua refundação na Conferência de Aparecida (2007), seu fortalecimento com o novo Pacto das Catacumbas (2019) e em sua retomada na Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe (2021) enquanto processo de educação na fé e sua sinodalidade.

A Teologia da Libertação tem o grande mérito de ser uma teologia latino-americana e caribenha, de ser uma teologia da esperança, da profecia, da paz, em saída, e do cuidado com a Casa Comum que se atualiza com o passar dos anos. Ela traz subsídios valiosos para o pensamento teológico universal e a certeza de que o que é importante não é a Teologia da Libertação, mas a salvação e libertação do povo. Ela permanece útil e necessária.

Victor Codina sobre a permanência da Teologia da Libertação nos diz:

Após 50 anos, permanece uma nova forma de fazer teologia, uma ruptura epistemológica, uma teologia que não é mero reflexo da teologia europeia como tem sido até agora, mas uma teologia pós-colonial, uma teologia do Sul, que parte da realidade histórica dos pobres e oprimidos da América Latina, que lutam pela mudança social, porque acreditam que outro mundo é possível, um mundo livre de estruturas injustas e dependentes.

Permanece a dimensão espiritual do encontro com Cristo nos pobres (Mt 25) e a exigência de uma tarefa teológica que não reduz a salvação a questões socioeconômicas e políticas, mas afirma que a salvação é histórica e acontece através de mediações históricas libertadoras. Neste sentido, a TdL é espiritual e um ato segundo, mas sem substituir Cristo pelos pobres.

Permanece a natureza de ser uma teologia que não é parcial nem genitiva, que não se reduz à moral política ou à doutrina social da Igreja, mas é uma visão global da fé cristã a partir de outro lugar teológico, dos pobres, orientada para a práxis libertadora, uma teologia que vai desde a Trindade até à escatologia.

A TdL continua sendo uma teologia que parte de um povo pobre com raízes profundamente religiosas e cristãs, muito diferente do mundo ocidental desenvolvido e secularizado.

Permanece a metodologia de partir da realidade para refletir sobre ela à luz da fé e para promover um compromisso libertador de ver, julgar e agir.

O recurso sócio analítico das ciências sociais permanece, não como força motriz desta teologia, mas como instrumento de mediação a ser utilizado com discernimento crítico à luz do Evangelho, sem o sacralizar ou demonizar, como São Tomás usou a filosofia aristotélica.

O paradigma do Êxodo permanece: um povo escravizado e oprimido que procura a libertação da dependência e da escravatura. A atitude profética de denunciar as estruturas injustas que oprimem o povo pobre e simples também permanece.

As duas linhas evangélicas que animam esta teologia permanecem, a saber: o seguimento do Jesus histórico no seu projeto de Reino e a opção pelos pobres (CODINA in GUIMARÃES, SBARDELOTTI & BARROS, 2022, p. 271-272).

A Arte Libertadora surge num contexto em que vivíamos massacrados por uma cruel e sangrenta ditadura militar, que desapareceu com muitas pessoas do cenário político-cultural latino-americano e caribenho resultando num atraso intelectual sem precedentes no Continente, retornando com velhas ideias e práticas político-econômicas que desvalorizam a vida no planeta Terra e endeusam a morte. 50 anos atrás não tínhamos os desafios aflorados que batem em nossas portas hoje: fundamentalismo e fanatismo religioso exacerbados, feminicídio, racismo, racismo religioso, intolerância religiosa, política e cultural, e outros inúmeros tipos de violência que só crescem no nosso cotidiano social e religioso. Sem Arte Libertadora morreríamos de tédio e apatia.

A arte e a espiritualidade são partes fundamentais da Teologia da Libertação, pois oferecem um sabor diferenciado, apresentam um rosto com várias nuances das características da realidade, da cultura e da vida latino-americana e caribenha. Sem arte e espiritualidade não existiria a Teologia da Libertação. As teólogas e os teólogos da libertação são artistas da Beleza, são artistas de Deus, pois colocam em pauta a relação entre arte, espiritualidade e teologia, tendo como locus theologicus o Povo de Deus.

A Arte e a Espiritualidade são expressões da transcendência divina nos caminhos da refundação humana.

A Arte e a Espiritualidade despertam e aprofundam o que há de melhor no ser humano.

[...] A Arte e a Espiritualidade da Libertação estão interligadas à Teologia da Libertação. Elas são a face mais bela, ousada e profunda deste itinerário pastoral, profético e cultural, presentes nas Comunidades Eclesiais de Base, nos eventos das Pastorais Sociais, nas parcerias com os Movimentos Sociais.

A Arte e a Espiritualidade da Libertação são as rodas do veículo, onde a Palavra de Deus é o motor, e Jesus de Nazaré o seu motorista, o seu condutor. Nós somos o resto do veículo. Os/As poetas, os/as profetas são os/as mecânicos/as, os/as responsáveis pela vistoria, pelo check-up geral no veículo, observando o que impede o veículo de funcionar bem, e colocando-o de novo na estrada (SBARDELOTTI in GUIMARÃES, SBARDELOTTI & BARROS, 2022, p. 302; 306).

Naqueles anos de 1973/1974 em que o Secos & Molhados fizeram uma verdadeira revolução cultural na sociedade brasileira, a Teologia da Libertação estava dando seus primeiros passos a partir das obras de Gustavo Gutiérrez – Teologia da Libertação – Perspectivas (1971); e de Leonardo Boff – Jesus Cristo Libertador (1971/2); tais livros estavam na ordem do dia: a irrupção dos pobres, o viés libertador fincava suas raízes no chão adubado com o sangue de muitas mártires, de muitos mártires.

O diálogo entre o Secos & Molhados e a Teologia da Libertação, 50 anos depois, de ambos, terem surgido no Brasil, na América Latina e Caribe, são acontecimentos, diríamos, revolucionários, evolutivos, tanto para o contexto da época, como para os nossos dias. As mensagens contidas nos álbuns do Secos & Molhados estão em sintonia com a profecia defendida e difundida pela TdL; de fato, ambas são facilmente entendidas, pois suas raízes estão no povo, são do povo, correm pelas veias abertas do povo. O Secos & Molhados abria seu álbum com a canção Sangue Latino, que além de ser uma canção de protesto, é uma canção de amor, e de consciência do lugar social e teológico que vivemos:

SANGUE LATINO[22]

(João Ricardo / Paulinho Mendonça)

Jurei mentiras

E sigo sozinho.

Assumo os pecados.

Os ventos do Norte 

Não movem moinhos.

E o que me resta 

É só um gemido.

Minha vida, meus mortos,

Meus caminhos tortos.

Meu sangue latino.

Minh’alma cativa.

Rompi tratados,

Trai os ritos.

Quebrei a lança,

Lancei no espaço:

Um grito, um desabafo.

E o que me importa

É não estar vencido (SECOS & MOLHADOS, 1973).

A Censura não entendeu os versos desta canção que abre o álbum de estreia dos Secos & Molhados: ela é um grito dilacerante, expondo todas as feridas, ecoando todas as vozes silenciadas principalmente pela violência ditatorial que fez as pessoas jurarem mentiras, e com o desaparecimento e ou a morte de seus entes queridos, precisaram caminhar sozinhas e assumir os pecados oriundos destas mentiras necessárias; era preciso resistir, porém, manter a vida com dignidade. A utopia é que os ventos estadunidenses não movem moinhos; a certeza é que por conta destes ventos, o que resta é um gemido: de dor, de tristeza, de partida. O refrão realisticamente esperançoso: “Minha vida, meus mortos, / Meus caminhos tortos. / Meu sangue latino. / Minh’alma cativa.”, evoca a vida, evoca os mortos pela defesa da vida, os caminhos tortos que foram precisos, com a lembrança do ditado popular: “Deus escreve certo por caminhos tortos”; porém, a alma cativa o sangue latino que jorra em nossas veias sempre abertas!

Segundo Paulinho Mendonça, o que o levou a escrever a letra do jeito que a gente conhece: 

Fazia parte das minhas preocupações na época... E eu acho essa questão do latinismo, a metáfora pelo momento político pra você poder escrever alguma coisa sobre o momento político que se vivia no país... Ou seja, foi a maneira de você exprimir esse tipo de coisa. Eu acho que eu sempre estive muito engajado com esse olhar latinista, né, acho que é uma luta que continua até hoje, eu continuo sendo, pelo menos, aficionado da cultura latina.

[...] Talvez por eu ter gostado de numa determinada fase muito recente da minha vida ter descoberto Borges, ter descoberto Cortázar, o meu primeiro filme, um curta que eu dirigi é baseado num conto de Cortázar, ou seja, é sempre o olhar da literatura... Eu acho que como eu sou um letrista, ou seja, a origem das coisas sempre parte da ideia literária, não é? Isso fazia parte da minha maneira de entender, ou de pelo menos buscar entender como eu deveria me posicionar num mundo meio arredio como aquele que era o Brasil da época. E, então aquilo, exprimir, estava expressando exatamente o que eu gostaria de dizer, ou seja, sobre a minha posição pessoal, a minha maneira de entender e de me posicionar diante daquelas coisas né...

[...] A sensação que eu tenho é exatamente essa, interessante isso, porque acho que num momento, o que é que existia no Brasil, existe um vazio cultural muito grande... Caetano, Chico, ou seja... O pessoal estava saindo, no momento existiu um momento de meio, uma festividade meio afetiva, ou seja, era a época do desbunde... Eu acho que de repente surge alguma coisa que tem um olhar reflexivo sobre a situação política do país... Ou seja, metaforicamente falando, mas não tão metaforicamente por não permitir que as pessoas entendam o que está sendo dito ali (MENDONÇA in GAVIN, 2017, p. 108-109).

Para Gérson Conrad em depoimento para o Canal Musicalidade: “Uma das músicas mais importantes do nosso cancioneiro, do nosso repertório da chamada MPB. As pessoas adoravam e cantavam totalmente, de cor e salteado. Essa letra mostra em verdade todo o envolvimento com a latinidade. Ela fez sucesso de imediato e as rádios tocaram exaustivamente” (CONRAD, 2024).

Para José Roberto Zan:

O primeiro fonograma do lado A é a composição de João Ricardo e Paulinho Mendonça, intitulada “Sangue Latino”, que se soma a outras quatro canções com conotações políticas e sociais mais acentuadas. Após a introdução de oito compassos com um riff de baixo acompanhado por percussão de pandeiro (ou meia lua), marcando o ritmo em 4/4, o violão de doze cordas prepara o canto. A melodia é simples e o arranjo tem características da música pop da época, especialmente da folk music norte americana. O acompanhamento discreto com poucos instrumentos permite que a voz de Ney Matogrosso se destaque, numa entoação ligeiramente passional. A letra, poeticamente bem construída, faz alusão à condição dos povos latinoamericanos submetidos ao um doloroso processo de dominação colonial e imperialista. Os versos “os ventos do norte não movem moinhos/e o que me resta é só um gemido/minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos/ Meu sangue latino/Minha alma cativa” dão a chave do significado mais geral da composição. Ao mesmo tempo, o cancionista, numa imagem um tanto alegórica, ressalta a força com a qual essa gente resiste à dominação: “Rompi tratados, traí os ritos/Quebrei a lança, lancei no espaço: um grito, um desabafo/E o que me importa e não estar vencido” (ZAN, 2013, p. 13-14).

Teologia da Libertação é o significado de quem tem fé e resiste à dominação.

Teologia da Libertação é uma expressão que segundo Gustavo Gutiérrez nasce com esse nome pouco antes da Conferência de Medellín (em Chimbote, Peru, julho de 1968). Para Gutiérrez:

A consciência de estar em uma nova etapa na vida de nossos povos e a necessidade de tentar compreendê-la como um chamado do Senhor para anunciar devidamente seu Evangelho acompanham desde então o desenvolvimento da teologia da libertação na América Latina. Ambas estimulam esta reflexão, exigindo dupla fidelidade: ao Deus de nossa fé e ao povo latino-americano. Esta matriz faz que não possamos separar processo histórico libertador e discurso sobre Deus (GUTIÉRREZ, 2000, p. 12).

Segundo Leonardo Boff, num contexto de vigilância policial, de sequestros, torturas e assassinatos políticos foi escrito Jesus Cristo Libertador: 

Em grande parte, a teologia da libertação se construiu ao redor do tema Jesus Cristo Libertador. Se não anunciarmos a Jesus como Libertador não anunciamos o Jesus que os Apóstolos conheceram e nos transmitiram. Sua prática, sua mensagem, sua morte como consequência de seu compromisso com o Pai e com os bens do Reino na história e, finalmente sua ressurreição, inauguração da libertação em plenitude, fundaram uma mística poderosa de solidariedade e até de identificação com os pobres contra a sua pobreza. O seguimento de Jesus firmava o comportamento cristão na sociedade a ser transformada (BOFF, 2009, p.13-14).

É ponto comum entre as duas obras que a pobreza significa morte! Libertar opõe-se a dominar. Libertar é sinônimo de viver. Dominar é sinônimo de morrer. 

Seguir Jesus de Nazaré na opção pelos pobres, é saber que tal opção não acontece porque são os melhores, mas por que são as vítimas! Quem são os pobres de hoje? Todas as pessoas que sofrem qualquer tipo de violência! Toda e qualquer violência retira da pessoa sua dignidade enquanto ser humano.

Experimentar a fé em Jesus de Nazaré é se comprometer com a libertação histórica dos povos crucificados! O grande desafio é fazer descer da cruz os povos crucificados! E esse desafio começa a ser realizado quando lemos a nossa realidade, o chão em que pisamos, a partir da Palavra de Deus pelo viés libertador, jamais pelo viés fundamentalista e fanático.

Se tivéssemos que resumir numa frase o que é a Teologia da Libertação, essa seria: Opção pelos Pobres! Sua marca nestes mais de 50 anos de ortopráxis é a opção pelos pobres e a espiritualidade libertadora, contra toda a pobreza, a favor da vida, da justiça e da liberdade. O que move a Teologia da Libertação é o seguimento à Jesus de Nazaré, sua pedagogia, sua prática e sua espiritualidade libertadora.

Que uma autêntica Teologia da Libertação seja sempre pensada e experimentada por todas as pessoas que sofrem algum tipo de violência, fazendo ecoar sua voz, seu grito, inclusive, através da arte libertadora, sendo semente neste chão adubado com o sangue dos/as mártires da caminhada latino-americana e caribenha. Comprometer-se com os pobres é comprometer-se com a abundância da vida para todo o Povo de Deus.

Conclusão

Não vou buscar

A esperança

Na linha do horizonte

Nem saciar 

A sede do futuro

Da fonte do passado

Nada espero

E tudo quero

Sou quem toca

Sou quem dança

Quem na orquestra 

Desafina

Quem delira

Sem ter febre

Sou o par

E o parceiro

Das verdades

À desconfiança[23] (SECOS & MOLHADOS, 1974)

Em apenas dois anos, com apenas dois discos, o último sucesso espontâneo cultural brasileiro, não fabricado pela mídia, o Secos & Molhados da forma que surgiu, desapareceu; deixando-nos um legado de persistência, de resistência e de enfrentamento a tudo o que era violentamente imposto. O Secos & Molhados soube burlar o sistema imposto e colocar nos corações e mentes, a sua mensagem de rebeldia, de enfrentamento não violento, de sonhos que poderiam ser realizados. O Secos & Molhados ganhou a admiração e o respeito de grande parte da população brasileira que ia aos seus shows, e com isso, a Censura não pode agir com maior truculência com a banda, prestaram mais atenção ao rebolado e as roupas dos rapazes do Secos & Molhados e não prestaram tanta atenção nas canções. Ao se apresentarem em praticamente todos os programas de auditório da época, invadiram as casas dos/as brasileiros/as, e isso fez com que famílias inteiras quisessem ver de perto aquele grupo tão estranho e fenomenal. Para se ter uma ideia, as crianças iam com seus rostos pintados para assistirem a performance de Ney Matogrosso. A banda estava muito visada pela ditadura militar

Ao seu lado, sem que soubessem, estava a Teologia da Libertação que trazia para o cenário latino-americano e caribenho a certeza que Jesus de Nazaré se compadecia de nossas dores, tormentos e traumas, e se fazia (e se faz) companheiro-irmão de caminhada. O não aceitamento da Teologia da Libertação até os dias atuais se dá, porque ela traz presente a consciência de que para se entrar no Reino de Deus, é preciso que as orações estejam ligadas com as práticas no cotidiano, que tem por objetivo a defesa constante da vida, de todas as vidas. É preciso cumprir à risca o que Jesus de Nazaré pede e faz nos Evangelhos. Não dá para enrolar ou improvisar.

Escutar os dois álbuns do Secos & Molhados, 50 anos depois, é trazer viva a memória de um tempo em que a morte reinou livre no Brasil; que a denúncia velada das canções procurava suavizar a dor dos torturados e diminuir o barulho dos canhões. São canções que tiveram a força de falar nas entrelinhas do silêncio imposto, que era preciso lutar, que era preciso acreditar que a vida era/é mais importante que a morte. Hoje em dia, talvez, estes dois álbuns não alcançassem o impacto da época em que foram lançados. Mas não dá para julgar com o olhar do presente, a intuição do passado. E o Secos & Molhados foi deveras intuitivo ao ofertar para todo o Brasil algo que ninguém esperava receber: poemas de artistas consagrados em melodias simples com um forte viés revolucionário não-violento. Essa é a grandeza do Secos & Molhados, uma banda de rock que soube melhor do que muita gente que já estava na estrada a dizer coisas importantes através de melodias simples que as pessoas entendiam, e que talvez...talvez hoje em dia não entendam.

As canções do Secos & Molhados são tão impressionantes e presentes, que na Campanha da Fraternidade de 2023: Fraternidade e Fome – “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14,16), durante uma formação que assessorei, utilizei justamente a canção censurada do Secos & Molhados: Tem Gente com Fome (João Ricardo/Solano Trindade), passando o clipe em que Ney Matogrosso está em cima de um vagão em movimento. Nenhuma das pessoas presentes esperavam que eu trabalhasse uma canção como aquela dentro de um encontro paroquial. Muitas pessoas não entenderam a mensagem. Outras ficaram assustadas e acharam ofensivo. Pouquíssimas vieram me dizer que adoraram a ousadia de trazer uma canção de fora da bolha religiosa e que entenderam o objetivo da Igreja em trabalhar uma questão tão séria como a fome. E me agradeceram por ter apresentado a elas aquela canção:

TEM GENTE COM FOME[24]

(João Ricardo / Solano Trindade)

Trem sujo da Leopoldina

Correndo, correndo, parece dizer

Tem gente com fome

Tem gente com fome

Tem gente com fome

Tem gente com fome

Tem gente com fome

Tem gente com fome

Tem gente com fome

Estação de Caxias

De novo a correr

De novo a dizer

Tem gente com fome

Tem gente com fome

Tem gente com fome

Tem gente com fome

Tem gente com fome

Tem gente com fome

Tem gente com fome

Tantas caras tristes

Querendo chegar em algum destino

Em algum lugar

Sai das estações

Quando vai parando

Começa a dizer

Tem gente com fome

Dá de comer

Se tem gente com fome

Dá de comer

Se tem gente com fome

Dá de comer

Se tem gente com fome

Dá de comer

Mas o freio de ar todo autoritário

Manda o trem calar

Concluo que o diálogo existente entre as canções do Secos & Molhados e a Teologia da Libertação proporcionam (para as pessoas que lutaram contra a Ditadura Militar e para nós, que somos filhos e filhas daqueles e daquelas que lutaram contra ela, e por isso, não aceitamos de forma alguma o seu retorno) uma oportunidade de reencontrar aquela regra de ouro: “Tudo o que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles”. O Secos & Molhados fizeram o que era muito bom, e por isso, recebem todas as homenagens possíveis até hoje; a TdL continua fazendo o que é bom, o correto, o verdadeiro: lutar contra toda injustiça para que não haja mais pobreza. É o que está no Evangelho. Penso que o resultado deste trabalho seja o interesse que virá das pessoas que o leem, em procurar ouvir as canções do Secos & Molhados e buscarem ler ou reler os livros clássicos e os atuais sobre a TdL. Ficarei imensamente feliz.

Que as canções do Secos & Molhados, que as inspirações da TdL nos ajudem a lutar contra a tentação de reviver uma ditadura civil-militar. Deus nos ajude, e não permita que esse mal volte a acontecer!

Referências

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VAZ, Denise Pires. Ney Matogrosso – um cara meio estranho. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1992.

VAZ, Sergio. O sucesso meteórico do Secos & Molhados. + De 50 anos de Textos, São Paulo, 2024. Disponível em: <https://50anosdetextos.com.br/1974/o-sucesso-meteorico-do-secos-e-molhados/>. Acesso em: 25 mar. 2024.

ZAN, José Roberto. Secos & Molhados: metáfora, ambivalência e performance. ArtCultura. Uberlândia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul-dez. 2013. Disponível em: <file:///E:/Backup%202019/Downloads/admin,+4++ARTIGO+Secos+e+Molhados+metafora,+ambivalencia+e+performance%20(1).pdf>. Acesso em: 30 dez. 2024.

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[1] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Q2tTpEb6JwA&list=OLAK5uy_m1Fr6av0mIZgd-oIzhiXegVvRMzFOGiaQ&index=27>. Acesso em: 23 mar. 2024.

[2] FERRAZ, Joana D’arc Fernandes. UFF Responde: 60 anos do golpe militar – 21 mar. 2024. Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 21 mar. 2024. Disponível em: <https://www.uff.br/?q=noticias/21-03-2024/uff-responde-60-anos-do-golpe-militar>. Acesso em: 23 mar. 2024.

[3] Esta é a grafia correta que está nas capas dos álbuns de 1973 e 1974, que será usada em todo o artigo.

[4] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=BZWXQ5grXt8>. Acesso em 19 dez. 2024.

[5] Disponível em: <https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_m1Fr6av0mIZgd-oIzhiXegVvRMzFOGiaQ>. Acesso em: 23 mar. 2024.

[6] “Sob o lema “Segurança e Desenvolvimento”, Médici dá início, em 30 de outubro de 1969, ao governo que representará o período mais absoluto de repressão, violência e supressão das liberdades civis de nossa história republicana. Desenvolve-se um aparato de “órgãos de segurança”, com características de poder autônomo, que levará aos cárceres políticos milhares de cidadãos, transformando a tortura e o assassinato numa rotina. [...] Até o final do mandato de Médici, seguirá crescendo a imagem do Brasil no exterior como um país de torturas, perseguições, exílios e cassações” (CARDEAL ARNS, 2019, p. 61).

[7] “Nos seus cinco anos de mandato, Geisel aplica uma política que tem como linha básica a revigoração do prestígio do regime, a reativação da vida partidária, a reabertura do diálogo com setores marginalizados das elites e a contenção da dinâmica oposicionista dentro de limites que não ameaçassem a chamada Segurança Nacional. Haverá repressão, sim, e dura, mas temperada com medidas de abertura, mesclada com gestos de abrandamento, tudo visando, em última instância, a manutenção do sistema instaurado em 1964. [...] Os primeiros meses do Governo Geisel marcam um período em que os órgãos de repressão optam pelo método de ocultar as prisões seguidas de mortes para evitar o desgaste que as versões repetitivas de “atropelamento”, “suicídio” e “tentativa de fuga” certamente enfrentariam, num clima de maior liberdade de imprensa. Em consequência, torna-se rotina o fenômeno do “desaparecimento”, que já ocorria no período anterior, mas em escala relativamente menor. Cerca de vinte cidadãos, presos por esses órgãos de segurança na época da posse do General Geisel, nunca mais foram localizados, apesar das provas de suas detenções. [...] O governo da “distensão” queria deixar claro, dessa forma, que a abertura da vida política não implicava tolerar a presença das forças consideradas de esquerda” (CARDEAL ARNS, 2019, p. 62-63).

[8] Cf.: ALMEIDA, Miguel. Primavera nos Dentes: a história do Secos & Molhados. São Paulo: Três Estrelas, 2019, p. 39.

[9] Disponível em: <https://shopee.com.br/Secos-Molhados-1973-Disco-de-Vinil-Lp-Encarte-i.385574245.3394235702>. Acesso em: 19 dez. 2024.

[10] Disponível em: <https://shopee.com.br/Vinil-Lp-Secos-Molhados-1974-i.358583586.15350643714>. Acesso em: 19 dez. 2024.

[11] Disponível em: < https://youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_m1Fr6av0mIZgd-oIzhiXegVvRMzFOGiaQ&si=LcUDuTTP3cHlOQ-4>. Acesso em: 19 dez. 2024.

[12] Assista os vídeos gravados: 1. Sangue Latino. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_CSjq-UyaWA>. Acesso em: 24 mar. 2024. 2. O Vira. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=tBxf_gp2Xho>. Acesso em: 24 mar. 2024. 3. Amor. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=5sJxATIDheg>. Acesso em: 24 mar. 2024. 4. Rosa de Hiroshima - Show no Maracanãzinho. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NKCrYCObq1E>. Acesso em: 24 mar. 2024. 5. Flores Astrais. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=xx9uObfU1RI>. Acesso em: 24 mar. 2024. 6. Tercer Mundo. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=QV844hGjzBk>. Acesso em: 24 mar.2024.

[13] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=tfj052d5Di8&list=OLAK5uy_m1Fr6av0mIZgd-oIzhiXegVvRMzFOGiaQ&index=8>. Acesso em: 23 mar. 2024.

[14]Disponível em: <https://web.archive.org/web/20150110130122/http://rollingstone.uol.com.br/listas/100-maiores-vozes-da-musica-brasileira/ney-matogrosso>. Acesso em: 23 mar. 2024. 

[15] Disponível em: <https://rollingstone.uol.com.br/galeria/os-100-maiores-discos-da-musica-brasileira/>. Acesso em: 23 mar. 2023.

[16] “Ora, enquanto se celebrava o aniversário de Herodes, a filha de Herodíades dançou diante de todos e agradou tanto a Herodes que este prometeu, sob juramento, dar-lhe o que pedisse. Ela, instigada por sua mãe, disse: ‘Dá-me agora mesmo, numa bandeja, a cabeça de João Batista’. O rei se entristeceu; mas, por causa do juramento e dos convivas, ordenou que lhe fosse dada, e mandou decapitar João no cárcere. Trouxeram a cabeça numa bandeja, entregaram-na à moça, que a levou à sua mãe”.

[17] Ficha Técnica: Coordenação de Produção – Sidney Morais / Direção Artística: Júlio Nagib / Direção de Produção: Moracy do Val / Direção Musical: João Ricardo / Fotos – Antonio Carlos Rodrigues / Técnico de gravação e mixagem: Francisco Luis Russo (Zorro) / Arranjos: SECOS & MOLHADOS (arranjo especial pra música FALA de Zé Rodrix) / Estúdios Prova – São Paulo / Gravado em maio-junho de 1973 / Técnicos – Luiz Roberto Marcondes e Aluízio de Paula Salles Jr. / Fotos – Antonio Carlos Rodrigues / Lay-Out – Décio Duarte Ambrósio / Músicos: Sérgio Rosadas – Flauta transversal e flauta de bambu / John Flavin – Guitarra elétrica e violão de 12 cordas / Zé Rodrix – Piano, acordeom, ocarina e sintetizador / Willi Verdaguer – Contrabaixo elétrico / Emilio Carrera – Piano / Ney Matogrosso – Vocal / João Ricardo – Violões de 6/12 cordas, harmônica de boca e vocal / Gérson Conrad – Violões de 6/12 cordas e vocal / Marcelo Frias – Bateria e percussão / Duração: 30m54s / Gravadora: Continental / Lançamento: agosto de 1973 / Gêneros: MPB, vocal, folk, rock progressivo, glam rock, pop psicodélico. 

Repertório: 1. Sangue Latino (João Ricardo / Paulinho Mendonça) – 2:07; 2. O Vira (João Ricardo / Luhli) – 2:12; 3. O Patrão Nosso de Cada Dia (João Ricardo) – 3:19; 4. Amor (João Ricardo / João Apolinário) – 2:14; 5. Primavera nos Dentes (João Ricardo / João Apolinário) – 4:50; 6. Assim Assado (João Ricardo) – 2:58; 7. Mulher Barriguda (João Ricardo / Solano Trindade) – 2:35; 8. El Rey (Gérson Conrad / João Ricardo) – 0:58; 9. Rosa de Hiroshima (Gérson Conrad / Vinícius de Moraes) – 2:00; 10. Prece Cósmica (João Ricardo / Cassiano Ricardo) – 1:57; 11. Rondó do Capitão (João Ricardo / Manoel Bandeira) – 1:01; 12. As Andorinhas (João Ricardo / Cassiano Ricardo) – 0:58; 13. Fala (João Ricardo / Luhli) – 3:13.

[18] Ficha Técnica: Produção: João Ricardo / Fotos – Antonio Carlos Rodrigues / Técnico de gravação e mixagem – Francisco Luis Russo (Zorro) / Assistente de produção – Sergio Carlos Rocha / Coordenação de produção – Julio Nagib / Arte – Sergio Grecu e Oscar Paolillo / Estúdio da Sonima – São Paulo / Gravado em junho de 1974 / Duração: 28m37s / Músicos: Norival D'Angelo - Bateria, timbales e percussão / Sérgio Rosadas – Flauta transversal e flauta de bambu / John Flavin – guitarra elétrica e violão de 12 cordas / Willi Verdaguer – Contrabaixo elétrico /  Emilio Carrera – Piano, órgão e acordeom / Triana Romero – Castanholas / Jorge Olmar do Nascimento - Violões e viola / Ney Matogrosso – Vocal / João Ricardo – Violões de 6/12 cordas, harmônica de boca e vocal / Gérson Conrad – Violões de 6/12 cordas e vocal / Gravadora Continental / Lançamento: agosto de 1974 / Gêneros: MPB, vocal, folk, rock progressivo, glam rock, pop psicodélico. 

Repertório: 1. Tercer Mundo (João Ricardo / Julio Cortázar) – 2:36; 2. Flores Astrais (João Ricardo / João Apolinário) – 3:51; 3. Não: Não Digas Nada (João Ricardo / Fernando Pessoa) – 1:37; 4. Medo Mulato (João Ricardo / Paulinho Mendonça) – 2:18; 5. Oh! Mulher Infiel (João Ricardo) – 1:30; 6. Vôo (João Ricardo / João Apolinário) – 2:34; 7. Angústia (João Ricardo / João Apolinário) – 2:45; 8. O Hierofante (João Ricardo / Oswald de Andrade) – 2:15; 9. Caixinha de Música do João (João Ricardo) – 1:04; 10. O Doce e o Amargo (João Ricardo / Paulinho Mendonça) – 1:52; 11. Preto Velho (João Ricardo) – 1:01; 12. Delírio (Gérson Conrad / Paulinho Mendonça) – 2:39; 13. Toada & Rock & Mambo & Tango & etc. (João Ricardo / Luhli) – 2:08.

[19] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=oCus1Z6Cwx0&list=OLAK5uy_m1Fr6av0mIZgdoIzhiXegVvRMzFOGiaQ&index=10>. Acesso em: 25 mar. 2024.

[20] Cf.: Ex 3,7-10; Sl 82,2-4; Pr 28,1-6; Is 61,1-3; Jr 1,4-10; Ez 37,1-14.

[21] Cf.: Mt 5,1-12; Mc 12,1-12; Lc 24,13-35; Jo 4,1-42; At 2,41-47; Ap 21,1-8.

[22] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=IAPwnl1NSF4&list=OLAK5uy_m1Fr6av0mIZgd-oIzhiXegVvRMzFOGiaQ&index=2>. Acesso em: 25 mar. 2024.

[23] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=5I3FAHPe3fg&list=OLAK5uy_m1Fr6av0mIZgd-oIzhiXegVvRMzFOGiaQ&index=25>. Acesso em: 25 mar. 2024.

[24] “Censurada pela ditadura militar, em 1974, a canção “Tem gente com fome”, de João Ricardo sobre poema de Solano Trindade, foi impedida de integrar o segundo disco do Secos & Molhados. Em 1979, já com a carreira consolidada como intérprete solo, Ney Matogrosso conseguiu sua liberação para colocá-la em seu LP Seu Tipo. O novo trabalho do cantor, na verdade, esconde alguma nostalgia do Secos & Molhados ao incluir, além da canção de João Ricardo, o registro de “Rosa de Hiroshima”, de Gérson Conrad sobre poema de Vinícius de Moraes. Ao longo de sua carreira pós-S&M, Ney não se furtaria a revisitar o repertório de seus ex-companheiros de viagem. Depois de cinco anos sem se falar, com certas farpas trocadas pela imprensa, em 1979, no Rio, Ney reencontrou João Ricardo, que vinha acompanhado do jornalista e letrista Nelson Motta. Após os cumprimentos de praxe, Ney disse que estava pensando em colocar “Tem gente com fome” no seu próximo disco. E gostaria que ele participasse da gravação. Joao Ricardo se mostrou surpreso e concordou de imediato. Depois para ensaiar a canção, os dois se reencontraram em São Paulo. João Ricardo, ao violão, tocava a composição. Uma, duas, três vezes. Até que Ney passou a cantá-la, de início sob a guia do autor, depois já imprimindo sua versão. [...] Na gravação da faixa, com João Ricardo acompanhando-o no violão de doze cordas, e Serginho Dias, Os Mutantes, na guitarra, Ney apresenta os registros habituais. O poema de Solano Trindade reproduz criativamente o trajeto de uma viagem de trem entre os subúrbios cariocas, quando observa a miséria escondida ao longo da linha férrea. [...] A música foi uma das escolhidas pela gravadora para alavancar o LP Seu Tipo. O Fantástico produziu e exibiu o clipe de “Tem gente com fome”, gravado ao longo de uma tarde ensolarada, com Ney, em uma interpretação veemente e sem camisa, cantando sobre o vagão em movimento de um trem de carga próximo à estação do Maracanã, no Rio. Foi mais um dos grandes sucessos da parceria de Ney e João Ricardo – o último, na verdade” (ALMEIDA, 2019, p. 301-303).

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=I5FUX3e089I>. Acesso em: 23 mar. 2024.