A fonte, a palavra e a água: Uma leitura de “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, a partir de Tertuliano

The spring, the word, and the water: A reading of Guimarães Rosa’s “The third bank of the river” based on Tertullian

Mateus de Novaes Maia
Mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Contato: mateusnovaes@id.uff.br


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RESUMO: Este ensaio aborda o conto “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa, à luz da perspectiva simbólica e teológica de Tertuliano de Cartago, exegeta que viveu entre os séculos II e III. Explorando a centralidade que a água adquire no conto roseano, analisa-se seu aspecto transcendental na narrativa a partir de uma associação com sua função mediadora entre o terreno e o espiritual na tradição cristã. O estudo destaca as tríades presentes no texto, como rio/pai/filho, relacionando-as ao pensamento de Tertuliano acerca da natureza da Santíssima Trindade. O pai, figura enigmática e mitificada, é comparado ao Criador; o filho, narrador e intérprete frustrado, reflete a trajetória de Jesus Cristo; enquanto o rio, como símbolo do Espírito Santo, atua como conexão entre ambos em um espaço de transcendência. Valendo-se da reflexão de Tertuliano sobre a água como veículo de ação sobrenatural, o ensaio sugere uma forma de representação do rio de Rosa como um canal para o extraordinário. Assim, propõe-se uma leitura que combina elementos literários e teológicos, evidenciando a riqueza interpretativa da obra de Rosa e sua ampla capacidade dialógica.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura e espaço; Fantástico; Exegese; Teologia; Literatura Brasileira

ABSTRACT: This essay examines the symbolic and theological elements of the short story “The third bank of the river” by João Guimarães Rosa through the lens of Tertullian of Carthage, an exegete who lived between the 2nd and 3rd centuries. By exploring the central role of water in Rosa’s narrative, the analysis focuses on its transcendental aspect, linking it to its mediating function between the earthly and the spiritual in the Christian tradition. The study highlights the triads present in the text, such as river/father/son, relating them to Tertullian’s reflections on the nature of the Holy Trinity. The father, an enigmatic and mythicized figure, is associated with the Creator; the son, both narrator and frustrated interpreter, mirrors the trajectory of Jesus Christ; and the river, symbolizing the Holy Spirit, connects them within a space of transcendence. The essay draws on Tertullian’s reflections on water as a vehicle for supernatural action, to suggest a representation of Rosa’s river as a channel to the extraordinary. It thus proposes a reading that combines literary and theological elements, highlighting the interpretive richness of Rosa’s work and its potential to engage in dialogue with diverse sources.

KEYWORDS: Literature and space; Fantastic; Exegesis; Theology; Brazilian Literature

As águas são a epifania da criação. 

Manoel de Barros, Menino do Mato

Introdução

Publicado no livro Primeiras Estórias (1962), o conto “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa, é caracterizado por uma obliquidade que suscitou interpretações profundamente contrastantes ao longo da história de sua recepção crítica. Dentre estas, abundam estudos pautados na identificação de um caráter transcendental na obra, com leituras teológicas que frequentemente recorrem à mobilização de elementos da tradição judaico-cristã em sua análise (ARAÚJO, 2016).

Embora o exame do corpus literário roseano frequentemente privilegie sua relação com uma religiosidade popular estritamente cristã, investigações como a de Sperber (1976) e Uteza (1994), que tiveram acesso ao acervo da biblioteca pessoal do autor, bem como a de Di Axox (2009), que se debruçou sobre seus cadernos de anotações pessoais, correspondências, além de entrevistas e relatos de pessoas próximas, apontam para um repertório esotérico que perpassava a astrologia, a numerologia, a tradição hermética e diferentes fontes da filosofia oriental. Como afirma Uteza, “[s]em dúvida alguma, a análise do fundo depositado no IEB da Universidade de São Paulo confirma a importância das preocupações metafísicas do escritor” (UTEZA, 1994, p. 32).

Com base em seus achados, Sperber chega a propor uma categorização do diálogo intertextual que Rosa estabelece com essas leituras “místicas” em cada uma de suas obras. Em sua análise, o livro de contos em tela seria caracterizado por uma “epifanicidade filosófica”:

[...] com respeito a Primeiras Estórias, verificamos que personagens, ação, espaço se fundem. Desta fusão decorre uma concentração do núcleo, com sua conseqüente redução. O núcleo, extremamente reduzido, contém menos que um núcleo: é, na verdade esboço de um núcleo, ou resumo das conseqüências de um núcleo: não são seqüências, senão tópicos. São praticamente os semas das seqüências – que não são referidas. A este reduzidíssimo núcleo soma-se a expansão muito ampla, por meio de indícios [...]. Como em Primeiras Estórias há textos concentradamente indexados, e os signos são símbolos, tanto pela sua função, como pela redução dos núcleos, o sentido denotado é negado. O sentido conotado torna-se impossível, porque a conotação se dá no nível sintagmático. Os indícios têm sanção paradigmática e implicam relata metafóricos. Desta forma remetem para um tertium comparationis. Daí a epifanicidade da narrativa, que corresponde à epifanicidade filosófica [sic] (SPERBER, 1976, p. 154).

Mais do que isso, Sperber entende que Guimarães Rosa “partiu de uma imitação do real para transcendê-lo. O real existiu na ação, pelas palavras e foi transcendido na ação, pelas palavras. Os temas das narrativas não se revelaram transcrição de leituras espirituais, senão que Joãozito [Rosa] delas partiu para ultrapassá-las pela forma” (SPERBER, 1976, p. 155). Em uma nota semelhante, Luiz Fernando Valente aproxima a obra de Rosa da de Italo Calvino, destacando que se fazem latentes em “A terceira margem do rio” “[...] a consciência dos limites do racionalismo, o interesse pelo relacionamento entre o autor e o leitor no processo criativo, e a crença na imprescindibilidade da ficção” (VALENTE, 2011, p. 86).

A despeito do próprio hermetismo de certas reflexões sobre a interseção entre o esotérico e a obra de Rosa, bem como à revelia de posições que as desautorizem, parece-nos válido pautar-nos, em se tratando da crítica literária, de um preceito exposto pelo próprio Rosa. No sexto item de “Sobre a escova e a dúvida”, um de seus múltiplos prefácios à obra Tutaméia (1967), ele destaca a seguinte epígrafe, atribuída a Sêneca:

Problemas há, Liberális excelente, cuja pesquisa vale só pelo intelectual exercício, e que ficam sempre fora da vida; outros investigam-se com prazer e com proveito se resolvem. De todos te ofereço, cabendo-te à vontade decidir se a indagação deve perseguir-se até o fim, ou simplesmente limitar-se a uma encenação para ilustrar o rol dos divertimentos (ROSA, 2001, p. 221).

Desse modo, entendemo-nos escusados de pleitear a validade destas ou de quaisquer interpretações subsequentes de sua obra. São, afinal, esses os elementos que convidam a um exame de “A terceira margem do rio” sob um prisma pouco ortodoxo — não por isso menos coerente com o método do autor.

Como elemento constituinte do titular rio, a água ocupa lugar central no conto de Guimarães Rosa em tela. Não só isso, mas a riqueza de simbolismos associados a esse elemento deixa entrever veredas interessantes para se guiar pela constelação de figuras que o autor mobiliza no decorrer da trama.

Diante da profunda relação de Rosa com uma literatura de cunho místico, as elocubrações de Tertuliano de Cartago, um dos Pais da Igreja Católica, acerca da significação da água para a tradição cristã oferecem um vetor de análise produtivo para a interpretação do conto. Outras aproximações entre o texto de Rosa e a tradição cristã também são mobilizadas para municiar a interpretação da narrativa a partir das ideias do teólogo cartaginense.

Tertuliano e Rosa: uma proposição

Em sua análise de “A terceira margem do rio”, Andrade e Cardoso (2015) analisam os recursos discursivos do texto a partir de uma perspectiva bakhtiniana, a começar pelo trio cardeal de margens do título que prontamente causa no leitor o estranhamento que o acompanhará ao longo da narrativa. Essa terceira margem escapa à lógica formal da estrutura de um rio, assim como sugere uma ordenação (sucessão ou hierarquização) que foge à equidade natural entre duas margens fluviais.

Há, portanto, elementos textuais que apontam para o caráter fantástico desta terceira margem, assim como para a relevância das tríades que se repetem ao longo da narrativa. Papette (2009) vê motivos religiosos tanto nessas tríades (rio/pai/filho; divino/humano/natural; corpo/mente/espírito; terra/céu/água) quanto na constante referência do narrador ao seu pai como “nosso pai”, em possível alusão ao “Pai Nosso” da oração homônima. Ainda sobre possíveis correspondências com a oração em questão, Andrade e Cardoso (2015) destacam as similaridades entre o clímax do conto, quando o filho se oferece para tomar o lugar do pai na canoa, e os primeiros versos da oração em questão:

Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o teu nome;

venha o teu Reino;

seja feita a tua vontade

como no céu, assim também na terra.

(MATEUS, 2020, p. 10, grifos nossos).

— “Pai, o senhor está velho, já fêz o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...” (ROSA, p. 1968, p. 36-37, grifos nossos).

Os autores propõem que a repetição dos verbos grifados sugere a evocação da figura do pai como um ser mítico. Sua resolução insondável de permanecer na canoa no centro do rio por anos a fio e o fato de sobreviver aparentemente sem provisões por todo esse tempo também contribuem para essa conclusão, o que, por sua vez, suscita questionamentos sobre a natureza dessa mística que envolve o pai, bem como sua relação com o filho e o rio (ANDRADE; CARDOSO, 2015, p. 39-40).

Não por coincidência, a água é um elemento privilegiado na mediação entre o divino e o terreno na tradição cristã. Tertuliano de Cartago (155-240) — o primeiro autor cristão em língua latina e um dos Pais da Igreja — é um dos expoentes do debate em torno da significância da água para o cristianismo, e defende a primazia desse elemento em um tratado dedicado ao batismo valendo-se da seguinte argumentação:

Pois [a água] é uma das coisas que, antes da criação do mundo, repousava junto a Deus, ainda despida de forma. [...] Deve-se reverenciar, antes de tudo, a antiguidade das águas, pois sua substância é antiquíssima; em segundo lugar, a sua dignidade, por ter sido o assento do Espírito Divino, sendo mais aprazível [a Ele], sem dúvida, do que quaisquer outros elementos então existentes. [...] apenas a água — uma substância sempre perfeita, vivaz, singela e pura em essência — pôde servir como um veículo digno de Deus[1] (TERTULIANO, 1869, p. 233-234, tradução nossa).

Tertuliano prossegue em sua exposição ao argumentar como a intervenção divina costuma se dar através da manipulação da água, citando diferentes momentos da Criação, passando pelo dilúvio até a abertura do Mar Vermelho. Essa identificação divina com a água é cara ao autor em sua defesa da tese de que o Espírito Santo seria a faceta da Trindade Divina que interage com o mundo terreno.

Seria justamente o Espírito Santo a água a que Jesus se refere na passagem “Aquele, porém, que beber da água que eu darei, nunca mais terá sede, mas a água que eu darei se tornará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna” (JOÃO, 2020, p. 151), uma vez que é através dele — e de seu meio por excelência, a água — que se dá o batismo. Sobre as demais partes desse poder trino, Deus seria o Criador, a fonte primeva da potência divina, e Jesus o logos — a Palavra, sua razão atuante no campo espiritual (TERTULIANO, 1869, p. 93-94).

Conquanto a proposição da água como elemento fundamental não seja uma exclusividade do pensamento de Tertuliano (o próprio autor demonstra, em outros escritos, estar familiarizado com a proposição de Tales de Mileto sobre a água como arché fundador), sua relevância para o cristianismo primitivo — aquele dos primeiros séculos de seu desenvolvimento, quando essa fé era professada de forma clandestina e descentralizada — adquiria contornos mais profundos. Também no texto dedicado ao batismo, Tertuliano defende que os fiéis seriam como “pequenos peixes” (TERTULIANO, 1869, p. 232), tanto pelo fato de que eles seriam “renascidos na água” através do batismo quanto pela já corrente associação da Igreja à palavra “peixe” em grego, Icthys (ΙΧΘΥΣ), acrônimo para “Ἰησοῦς Χριστός, Θεοῦ Υἱός, Σωτή” (Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador).

A apropriação das proposições de Tertuliano sobre a água como ponte entre o divino e o terreno e, em especial, sua particular identificação com o Espírito Santo, municiam a identificação de outros paralelos bíblicos no conto. À já recorrente aproximação entre o pai de “A terceira margem do rio” e o Pai da Tríade Sagrada, soma-se a associação do filho com Jesus e do rio com o Espírito Santo.

Sobre o pai, contribui para essa identificação a forma como ele “paira” sobre as águas por toda a narrativa, além de sua “criação” do filho seguida de uma ausência etérea somada à sua incomunicabilidade após sua partida. O desenrolar de suas ações e as consequências delas são transmitidos ao leitor pelo filho, e as tentativas de contato da família com o pai se dão necessariamente através do rio. Dessa forma, o filho se apresenta como o narrador autodiegético e, como tal, aquele que é ao mesmo tempo o mensageiro e o frustrado intérprete da palavra do pai.

Como o nazareno, ele é o filho fiel aos ensinamentos do pai que fatalmente deve se juntar a ele pela sua via crucis. Entretanto, diferente de Cristo, que fraqueja, mas cumpre seu propósito terreno, o filho vira as costas para o fardo do pai, buscando se redimir ofertando ao rio não seu espírito em vida, mas seu corpo depois da morte.

A partir desse raciocínio, caberia ao rio maior riqueza polissêmica em relação aos demais membros da Tríade. Sendo efetivamente a água presentificada no conto, ele carrega consigo uma carga simbólica que vai além da mera identificação com o Espírito Santo. Na sua associação com esta terceira parte da trindade, o rio se apresenta como um canal com o extraterreno, uma manifestação telúrica do mistério divino, justamente o elemento fantástico do texto.

Em outra curiosa inversão do paralelo bíblico, o pai primeiro cria o filho e depois se retira para pairar sobre as águas, condição da qual ele aparentemente só pode sair quando rendido pelo filho. Cabe aqui retomar a valorização que Tertuliano faz da água por sua existência anterior à própria Criação, o que confere à permanência do pai no meio do rio uma suspensão tanto no tempo quanto no espaço.

A própria ilustração que acompanha a entrada do conto no “índice ilustrado”[2] presente nas primeiras edições de Primeiras Estórias corresponde de certa forma a essa interpretação. Baseada em um esboço do próprio Rosa, a figura, de autoria de Luís Jardim, ilustra um homem em uma canoa entre dois símbolos que, à luz do profundo conhecimento de Rosa sobre iconografia esotérica atestado por Di Axox (2009), parecem representar o signo de libra — expressões de um estado de equilíbrio dinâmico, como as margens de um rio —, com uma flecha — símbolo do signo de sagitário, associado à transcendência e movimento — à esquerda, e um símbolo do infinito à direita.

Figura 1 - Representação do conto “A terceira margem do rio” no índice ilustrado de Primeiras Estórias

Fonte: JARDIM, 1968, p. 177.

Gérard Genette argumenta que o “valor de comentário” das ilustrações, enquanto paratexto, é “às vezes muito forte”, chegando a “compromete[r] a responsabilidade do autor, não só quando ele próprio as produz [...] ou as encomendas com especificações” (GENETTE, 2009, p. 356-357). Entretanto, a intencionalidade de Rosa em constituir o livro Primeiras Estórias como “projeto editorial, como unidade, como obra integral”, tal como definido por Sanseverino (2012), vai de encontro a essas suposições. 

Ao interpretar as imagens que ilustram a capa e o índice do livro como um “comentário visual dos contos”, Sanseverino vale-se de categorias do próprio Genette para defender que esses elementos corresponderiam a uma “textualização das marcas paratextuais”. Dessa forma, “o índice e a capa passam a fazer parte da obra, não apenas dialogando com o texto, mas se integrando a ele” (SANSEVERINO, 2012, p. 51).

Portanto, em consonância com essa expressão visual dos elementos narrativos, a terceira margem do rio seria a expressão de um eterno devir, instrumento de transfiguração do ordinário em fantástico, do mundano em um divino que parece se configurar não em um estado transcendente, mas na própria busca estática por ele. Dessa forma, mesmo mantendo-se fiel ao pai por toda a vida, ao fim do conto o filho não dá o salto de fé que significaria sua transcendência e recusa-se a tomar o lugar do pai na canoa, falhando na hora do sacrifício derradeiro e assim se dissociando do papel que cumpria até então no mistério da tríade da narrativa:

Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não para, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro—o rio (ROSA, 1968, p. 37). 

A sua decisão de embarcar no rio só depois da morte em uma frágil embarcação, deixando dissolver sua identidade nas águas, é uma afirmação da sua identificação com a temporalidade efêmera da existência mundana. Configura-se, assim, uma narrativa em que, figurativamente, Jesus escolhe não morrer na cruz.

Considerações finais

Embora não haja indicativos concretos de que Guimarães Rosa tenha efetivamente tido contato com os escritos de Tertuliano, seu extenso repertório religioso — e sua posse, atestada por Uteza (1996, p. 33), do livro Patrologie et Histoire de la Théologie (1938), de Fulbert Cayré, que contém um capítulo dedicado ao cartaginense — tornam plausível sua familiaridade com as ideias do teólogo.

Para além dessas suposições, as características destacadas por Valente (2011) como representativas do conto em tela, como a consciência dos limites do racionalismo e a busca por ultrapassar o real pela forma, reforçam a pertinência de uma leitura que considere o diálogo de Rosa com um repertório místico amplo e complexo. Assim, ainda que a leitura direta de Tertuliano por Rosa não possa ser afirmada, sua proposição prescinde dessa confirmação.

O que se intenta com este ensaio não é propor taxativamente a existência de uma relação de intertextualidade entre o pensamento de Tertuliano e o conto de Rosa, mas, antes, render-se à lógica de um recurso ao qual o autor de “A terceira margem do rio” não era de todo estranho. Retoma-se aqui o sexto item do texto “Sobre a escova e a dúvida”, um dos prefácios de Tutaméia (1967), em que Guimarães Rosa discorre sobre sua relação com eventos inexplicáveis, pretensamente sobrenaturais:

Tenho de segredar que — embora por formação ou índole oponho escrúpulo crítico a fenômenos paranormais e em princípio rechace a experimentação metapsíquica — minha vida sempre e cedo se teceu de sutil gênero de fatos. [...] No plano da arte e criação — já de si em boa parte subliminar ou supraconsciente, entremeando-se nos bojos do mistério e equivalente às vezes quase à reza — decerto se propõem mais essas manifestações (ROSA, 2001, p. 221-222).

Rosa enumera, ludicamente, a forma como certos episódios de seu cotidiano e, sobretudo, como a inspiração para algumas de suas produções literárias lhe pareceram dever-se a um impulso externo, “equivalente às vezes quase à reza”. Em suas rememorações, ele remete ao próprio “A terceira margem do rio”, afirmando que o conto “[...] veio-me, na rua, em inspiração pronta e brusca, tão ‘de fora’, que instintivamente levantei as mãos para ‘pegá-la’, como se fosse uma bola vindo ao gol e eu o goleiro” (ROSA, 2001, p. 222). 

Longe de propor uma intencionalidade autoral nos paralelos entre a obra de Rosa e a do exegeta cartaginense — quanto menos uma explicação calcada em uma suposta inspiração divina —, interessa recorrer às elocubrações, tipicamente roseanas, do próprio autor sobre essas coincidências: “Só sei que há mistérios demais, em torno dos livros e de quem os lê e de quem os escreve; mas convindo principalmente a uns e outros a humildade” (ROSA, 2001, p. 225-226).

Nesse mesmo prefácio de Tutaméia — especificamente, no trecho omitido da citação anterior —, o autor se debruça sobre algumas situações inexplicáveis que lhe sucederam, a rigor, “[s]onhos premonitórios, telepatia, intuições, séries encadeadas fortuitas, toda a sorte de avisos e pressentimentos. Dadas vezes, a chance de topar, sem busca, pessoas, coisas e informações urgentemente necessárias” (ROSA, 2001, p. 222, grifo nosso). Este excerto é acompanhado pela seguinte nota de rodapé:

Meu colega amigo Dayrell, do Serro-Frio, faz tempo contaram-me que isso, transposto do inglês, chamar-se-ia “soroptimícia”. Num hotel, fio que no Baglioni de Florença, li numa porta “Soroptimist Club” e vi-me em reunião de sociedade internacional, espécie de Rotary feminino. Só mais tarde, no “Brewer’s Dictionary of Phrase & Fable”, encontrei o nome: SERENDIPITY. “Feliz neologismo cunhado por Horace Walpole para designar a faculdade de fazer por acaso afortunadas e inesperadas “descobertas”. Numa carta a Mann (28 de janeiro de 1754) ele diz tê-lo tirado do título de um conto de fadas, “Os Três Príncipes de Serendip” que — “estavam sempre obrando achados, por acidente ou sagacidade, de coisas que não procuravam” (ROSA, 2001, p. 222).    

O entendimento por parte de Rosa dessa “serendipidade” ou “serenditismo” (formas pelas quais o termo serendipity é comumente vertido para o português), como um elemento constituinte de seu processo de criação literária — que resulta em obras frequentemente também oníricas e caracterizadas pela abertura ao fantástico — parece um convite a uma análise que se paute no reconhecimento desses acasos fortuitos, especialmente produtivos na análise de sua produção. Seja por um influxo “subliminar ou supraconsciente” do autor ou de quem se disponha a realizar a exegese de “A terceira margem do rio”, há de se reconhecer que o “mistério” roseano admite interpretações das mais diversas, prestando-se a um diálogo inesgotável com o rico manancial da experiência humana.

Referências

ANDRADE, Carlos Augusto Baptista de; CARDOSO, Diogo Souza. Um mergulho discursivo sobre A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa. Bakhtiniana, v.10, n.1. São Paulo, 2015, p. 28-41.

ARAÚJO, Bárbara Del-Rio. A Poética Moderna em “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa. Em Tese, v. 22, n. 1. Belo Horizonte, 2016, p. 10-20.

BARROS, Manoel. VI. In: BARROS, Manoel. Menino do Mato. São Paulo: Editora Reviravolta, 2021.

DI AXOX, Chiara de Oliveira Carvalho Casagrande Ciodarot. Sob o Tapatrava de Gimarães Rosa: o misticismo na vida e na literatura de Joãozito. Dissertação (Mestrado em Letras) — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

GENETTE, Gérard. Paratextos Editoriais. Cotia: Ateliê Editorial, 2009.

JARDIM, Luís. Índice Ilustrado. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1968, p. 177-178.

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LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITÔRA – LJOE. Verso da Folha de Rosto. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1968, s/p.

MATEUS. Evangelho Segundo Mateus. In: Evangelhos – Tradução Oficial da CNBB. Brasília-DF: Edições CNBB, 2020, p. 1-54.

PAPETTE, Lorenzo. A Canoa e o Rio da Palavra. In: Espaços e Caminho de Guimarães Rosa: dimensões regionais e universalidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1968, p. 31-37.

ROSA, João Guimarães. A. Sobre a Escova e a Dúvida. In: Tutaméia (Terceiras Estórias). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 209-233.

SANSEVERINO, Antônio Marcos Vieira. Primeiras Estórias: o livro e a obra. Brasil/Brazil, v. 25, n. 46. Porto Alegre, 2012, p. 50-70.

TERTULIANO. Apologeticus. In: ROBERTS, Alexander; DONALDSON, James (eds.). The Ante-Nicene Christian Library: Translations of the Fathers down to A.D. 325, Vol. XI. The Writings of Tertullian Vol. I. Edinburgh: T&T Clark, 1869, p. 53-140.

TERTULIANO. On Baptism. In: ROBERTS, Alexander; DONALDSON, James (eds.). The Ante-Nicene Christian Library: Translations of the Fathers down to A.D. 325, Vol. XI. The Writings of Tertullian Vol. I. Edinburgh: T&T Clark, 1869, p. 231-256.

UTÉZA, Francis. JGR: Metafísica do Grande Sertão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994.

VALENTE, Luiz Fernando. Mundivivências: leituras comparadas de Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

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[1] No original: “For [water] is one of those things which, before all the furnishing of the world, were quiescent with God in a yet unshapen state. […] The first thing, O man, which you have to venerate, is the age of the waters, in that their substance is ancient; the second, their dignity, in that they were the seat of the Divine Spirit, more pleasing [to Him], no doubt, than all the other then existing elements. […] water alone — always a perfect, gladsome, simple material substance, pure in itself — supplied a worthy vehicle to God”.

[2] Como consta no verso da folha de rosto da edição de 1968: “Estas Primeiras Estórias apresentam também pela primeira vez — e supomos seja novidade na bibliografia internacional — um índice ilustrado: a pedido do Autor, Jardim fêz [sic] desenhos-miniaturas, com paciência chinesa, para cada uma das estórias, compondo o conjunto de outro índice geral reproduzido no final do livro” (LJOE, s/p, 1968).