Ricardo Alexandre Ferreira
Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ). Contato: raf.ricardo@yahoo.com.br
Resumo: O diálogo teopoético aproxima diferentes concepções e autores a partir da confluência de temas e propósitos comuns oferecendo, por um lado, novas chaves de leitura para a literatura, e por outro, compreensões mais alargadas de importantes questões teológicas. Tendo isso em vista, o presente artigo propõe-se a promover um encontro entre autores de diferentes contextos a partir da experiência de solidariedade que perpassa suas obras: Johann Baptist Metz, teólogo alemão cuja obra é marcada pelo holocausto dos judeus em Auschwitz, e Scholastique Mukasonga, escritora, refugiada, sobrevivente e testemunha do processo que culminou no genocídio ruandês de 1994, a partir do qual delineia toda sua obra. O intento da reflexão é demonstrar como o diálogo entre teologia e literatura pode colaborar com a recuperação da identidade histórica e cultural da sociedade, promovendo debates sempre mais profundos sobre experiências de solidariedade, resistência, justiça, esperança, entre tantos outros temas que colaboram para um melhor desenvolvimento do sentido de humanidade no mundo contemporâneo.
Palavras-chave: solidariedade; resistência; violência; Metz; Mukasonga.
Abstract: The theopoetic dialogue brings together different conceptions and authors through the confluence of themes and common purposes, offering, on the one hand, new interpretative keys for literature, and on the other hand, broader understandings of important theological issues. Therefore, the present article aims to promote an encounter between authors from different contexts based on the experience of solidarity that permeates their works: Johann Baptist Metz, a German theologian whose work is marked by the Holocaust of the Jews in Auschwitz, and Scholastique Mukasonga, a writer, survivor and witness of the Rwandan genocide, which profoundly shapes her entire body of work. The intention of this reflection is to demonstrate how the dialogue between theology and literature can contribute to the recovery of society's historical and cultural identity, promoting ever deeper debates on experiences of solidarity, resistance, justice, hope, and many other themes that foster a deeper sense of humanity in the contemporary world.
Keywords: solidarity; resistance; violence; Metz; Mukasonga.
O presente artigo visa refletir sobre a solidariedade a partir da articulação entre a teologia do alemão Johann Baptist Metz e a literatura testemunhal da ruandesa de Scholastique Mukasonga. Trata-se de um exercício teopoético cujo objetivo é identificar como as linhas comuns entre os autores contribuem para uma reflexão antropológica mais profunda acerca do ser humano e sua dimensão de fé a partir de elementos concretos da vida.
Destarte, é necessário destacar a importância da linguagem para a construção e compreensão das mais diversas realidades que forjaram e forjam as diferentes identidades que constituem o tecido humano e social dos diversos povos e culturas que habitam o planeta. Como afirma Judith Butler, é preciso reconhecer que “somos todos, em algum sentido, seres linguísticos, seres que requerem linguagem para ser” (BUTLER, 1997, p. 10). Seja pela expressão escrita ou narrada, é imperioso afirmar que a linguagem e a arte foram e são fundamentais na preservação da história, da cultura e das balizas éticas que permeiam as relações humanas. Dessa forma, como defende o filósofo alemão Peter Sloterdijk em sua recente obra Fazendo o céu falar, edificações poéticas e mitológicas exercem papel fundamental, encontrando-se antes mesmo da criação de sistemas e dogmas racionais (SLOTERDIJK, 2024, p. 145). Assim, falar de teopoética nesse contexto, é compreender que no encontro entre literatura e teologia abre-se espaço para refletir sobre as mais diversas situações humanas, tendo como ponto chave o caráter unificador da palavra no que tange à compreensão do que seja o humano em suas diversas perspectivas.
A teopoética é, pois, o fundamento sobre o qual busca-se navegar ao longo das próximas páginas, tendo como elementos fundamentais a dinâmica criativa que faz dos escritos de Mukasonga um testemunho de grande densidade antropológica, e a sensibilidade teológica de Metz, cujos escritos refletem seu compromisso com um cristianismo aberto ao diálogo com o mundo moderno. Para cumprir esse intento, o texto foi dividido em três sessões que se complementam.
As duas primeiras sessões do texto concentram-se nos autores referenciados: a primeira reflete sobre o conceito de solidariedade na teologia de Metz, levando-se em conta elementos da biografia do teólogo e o contexto onde o assunto é posto em destaque; a segunda parte evidencia a obra de Mukasonga, pondo em destaque o livro “A mulher dos pés descalços”, onde a autora procura apresentar elementos de sua cultura, bem como narrar diversas experiências de solidariedade e cuidado representados na figura materna e na convivência comunitária em meio ao exílio no campo de refugiados de Nyamata.
O ponto culminante do texto é o exercício de aproximação entre as questões propostas pelo teólogo e as vivências testemunhadas pela escritora, com o intento de destacar o entrelaçamento entre literatura e teologia no que concerne à tradução prática daquilo que se reflete através da construção teológica.
O século XX marca uma importante evolução na concepção antropológica do ser humano. O que, por sua vez, tem importante impacto para a noção de solidariedade enquanto característica que move a perspectiva humana a partir da ideia do ser humano enquanto ser de relação, suplantando a influência de uma antropologia que favorece o individualismo e fundamenta o sistema neoliberal que supõe “uma antropologia visivelmente penetrada pela vontade de poder que leva o indivíduo a dominar os outros para se autoafirmar”. (GARCIA RUBIO, 2001, p. 448). O tema solidariedade, aos poucos, permeia o fazer teológico e filosófico do século XX, à medida que se estabelecem novas maneiras de pensar o universo e a ação humana no planeta. Dessa forma, diversos autores se notabilizam atualmente pelo empenho em gerar a uma reflexão sobre o nível de corresponsabilidade humana e a capacidade de se estabelecer novas balizas sobre as quais pensar o desenvolvimento do mundo contemporâneo. Leonardo Boff, por exemplo, defende a necessidade de “um novo paradigma civilizacional que reflita as relações dos seres humanos para com a vida e a terra” (BOFF, 2013, p. 9); já Juvenal Arduíni fala de uma solidariedade estrutural, capaz de promover uma “humanização do mundo, estabelecendo a articulação entre direitos humanos e solidariedade”. (ARDUÍNI, 2002, p. 113)
Nesse contexto se pode compreender a importância da obra de Johann Baptist Metz, criador da chamada Nova Teologia Política e importante influenciador do pensamento teológico latino-americano e africano. Nascido na Alemanha em 1928, o teólogo tem sua trajetória marcada por conflitos vividos por seu país naquele período histórico. No contexto da Segunda Guerra Mundial, foi obrigado a prestar o serviço militar aos 16 anos, tornando-se, por essa experiência, testemunha dos horrores provocados pelas violentas batalhas, situação que marcaria profundamente sua reflexão teológica. (METZ, 2013, p. 100)
Graduou-se em filosofia pela Universidade de Innsbruk, em 1952. Foi ordenado presbítero em 1954 e se doutorou em teologia tendo como orientador o compatriota Karl Rahner. Como professor de Teologia Fundamental, preocupou-se em desenvolver um pensamento que pudesse fornecer uma razão prática para a fé cristã, buscando responder aos desafios de uma sociedade secularizada.[1] Sua teologia política entende o processo de secularização como condição necessária para uma experiência autêntica, reconhecendo que o distanciamento entre cristianismo e secularização contribui para uma visão distorcida da fé.
No cerne de seu pensamento está a necessidade de se recuperar na teologia o dado da história, pensado aqui não a partir de vencedores, mas dos excluídos. Critica firmemente a prática de uma religião privada e aponta a vida pública e política como mediações necessárias para uma verdadeira teologia. Entende que a fé não pode ser puramente contemplativa, mas também operativa, orientada para o futuro em busca de alternativas. Nesse sentido, a compreende enquanto práxis dentro da história e da sociedade, concebida como esperança solidária no Deus de Jesus como Deus dos vivos e dos mortos, que convida a ser sujeito em sua presença.
A experiência de Auschwitz influencia decisivamente sua vida cristã, fazendo-o interpelar-se sobre como pensar o ser cristão a partir dos episódios de horror na história humana. Profundamente questionado por esse evento, procura pensar uma teologia capaz de incluir os grandes sofrimentos da história, dar voz e deixar-se interpelar pelas vítimas.
Em um contexto de crise do cristianismo e sua relação com a modernidade, entende que não pode a religião cristã ficar alheia às questões políticas e sociais enfrentadas nesse momento. Porém, com o cuidado para não adentrar no campo das ideias e práticas totalitaristas, afinal, sua garantia ancora-se na dimensão da “reserva escatológica”, onde a última palavra é sempre de Deus (XHAUFFLAIRE, 1974, p. 46). E essa Palavra é a certeza de que os sofrimentos e injustiças não serão esquecidos, não ficarão sem resposta[2].
Por essa razão, a Nova teologia política de Metz busca dialogar com diferentes contextos e autores da modernidade, evitando o risco de fechar-se no horizonte eclesiástico. Permeada pela questão da teodiceia, do problema de Deus em relação ao sofrimento do mundo, sublinha três categorias como fundamentais: a memória[3], a narração e a solidariedade. Vale assinalar que, para o teólogo, memória e narração não tem valor prático sem solidariedade e essa não atinge seu objetivo específico sem aquelas.
A principal dessas categorias é a memória, conceito-chave que se pode definir como “memória perigosa” enquanto confronta o meio histórico e social vigente, o que é possível somente se o conteúdo dessa memória for o sofrimento (memoria passionis) dos pequenos, pobres e excluídos. Assim, contrapõe-se ao esquecimento, tornando-se salvação, uma vez que restitui o ser-sujeito desses personagens:
“Memória” – como deveria ter-se tornado claro no contexto das reflexões anteriores, não é usada aqui como um anticonceito resignativo (sic) ou tradicionalista da “esperança” – mas, sob o título de “recordação perigosa” – como a forma da esperança escatológica elaborada na sua mediação histórica e social.
Nesse sentido, recordação tem um significado central e teologicamente básico na sua forma de “solidariedade para trás”, de solidariedade memorativa com os mortos e vencidos, que quebra o encantamento de uma história enquanto história dos vencedores interpretada evolucionística e dialeticamente. (METZ, 1984, p. 213)
A memória enquanto "perigosa" possui uma evidente dimensão social e histórica: ao reclamar o ser-sujeito, o direito à história e à identidade aos esquecidos afronta a insensibilidade geral no plano prático e, no plano teórico, se opõe àquela definição de História que se impôs a partir do século XVIII e que se descreve como manifestação do espírito humano em progresso sob o comando de uma seleção natural dos vencedores.
Na visão de Metz, a memória, enquanto memória do sofrimento, torna-se orientação para um agir relacionado à liberdade e à emancipação. Seu uso não pode restringir-se ao aspecto teórico-crítico, pois sua mediação é de natureza prática. Por outro lado, adquire uma estrutura narrativa sob o primado cognitivo da memória narrada, como consciência envolvida em histórias, opondo-se a uma consciência abstrata e a um processo meramente cibernético de recordação.
Intimamente ligada à memória, a narração é compreendida como expressão das experiências vividas nas diversas fases do cristianismo até a dimensão escatológica. Metz aponta o risco de que uma negação da narrativa possa se “resumir” em conteúdos teológicos exclusivamente na linguagem dos dogmas e ritos, tirando do ato de narrar sua força de troca de experiências:
Uma razão que se fecha à troca narrativa de tais experiências do novo ou que a interrompe totalmente, em nome da sua natureza crítica e da sua autonomia esgota-se na construção limitada e permanece, afinal, um pedaço de técnica, como observa T. Adorno nas passagens finais de seu Mínima Moralia”. (METZ, 1984, p. 241)
Contextualizado numa época considerada pós-narrativa, entende que toda narração verdadeira possui utilidade prática (aberta ou oculta), podendo consistir em orientação moral, prática ou de regramento de vida. Com Martin Buber, defende que o próprio narrar é acontecimento e tem a unção de ação sagrada[4]. Por isso, afirma, a narração é mais do que reflexo, e a essência sagrada que ela testemunha continua a viver nela. Nesse contexto, a função da teologia argumentativa seria:
proteger a memória narrativa da salvação no nosso mundo científico, colocá-la criticamente em jogo na interrupção argumentativa e induzir, sempre de novo, a narrar, sem o que a experiência da salvação permaneceria nula. (METZ, 1984, p. 250)
Articulada à memória e a narração, a solidariedade tem papel central na determinação da teologia fundamental prática de Metz[5]. Ela se faz presença qual ânimo, uma vez que aspira o ser-sujeito de todos perante Deus, quer atualmente presentes, quer no passado ou nas futuras gerações. Torna-se, também, a qualidade distintiva da memória e narração, pois preza ser uma categoria de assistência sem a qual seriam inconcebíveis a recordação e a narração.
Solidariedade como categoria de uma teologia fundamental prática é uma categoria da assistência do apoio e levantamento do sujeito frente às ameaças agudas e sofrimentos a que está exposto. [...] Memória e narração da salvação adquirem nessa solidariedade a sua práxis místico-política específica. Memória e narração sem solidariedade não são categorias práticas da teologia, como tampouco solidariedade, sem elas, exprime a forma humanizante do cristianismo. Só conjuntamente, memória, narração e solidariedade podem ser categorias de uma teologia fundamental prática. (METZ, 1984, p. 267-268)
O parâmetro para compreender a solidariedade no pensamento de Metz é o místico-político. Nasce da fé como memória e narrativa da vida de Jesus, por isso é mística. A solidariedade cristã antevista pelo pensador necessita evitar o rumo de uma teologia fundamental privatizada que a concebe como um relacionamento de trocas de interesses. Para o teólogo, a verdadeira solidariedade escapa aos acordos e arranjos deste tipo, estendendo-se a todos os esquecidos e, portanto, incapazes de oferecer qualquer proveito ou vantagem ao outro. Isso se torna evidente quando se fala da solidariedade em relação aos mortos, uma vez que não haverá um proveito prático nesse tipo de relação:
A solidariedade memorativa cristã com os mortos não é determinada por um interesse abstrato e também não, primordialmente, pelo cuidado: o que acontece “comigo” na morte? Mas sim: o que acontece “contigo” na morte?, portanto, com os outros, especialmente com aqueles que sofrem, (e, só em conexão com isto, pela preocupação com a própria identidade da morte). Na sua estrutura dupla: místico-política a solidariedade surge, por isso, como categoria de salvação do sujeito onde ele está ameaçado: pelo esquecimento, pela opressão, pela morte; como categoria de empenhamento em favor do homem, pare ele se tornar sujeito e permanecer sujeito. (METZ, 1984, p. 269)
Dessa forma, no esquema de uma teologia fundamental prática, a solidariedade é pensada como solidariedade para trás, inclinada aos mortos, vítimas e toda a história de sofrimento humano. Para Metz, a pretensão universal da teologia fundamental prática é corroborada na categoria de solidariedade e esta se torna autêntica somente enquanto prática.
Só se o cristianismo se insere no surgir de uma sociedade universal ele pode fazer valer nela e para ela sua compreensão de uma sociedade sem ódio e sem violência. No entanto, amor ao inimigo, oposição ao ódio e à violência não dispensam o cristianismo da luta pelo ser-sujeito de todos. De outro modo ele não cumpriria sua missão: ser pátria de uma esperança – aquela esperança no Deus dos vivos e dos mortos, que chama todos os homens a ser-sujeitos diante de sua face. (METZ, 1984, p. 276).
Assim, a solidariedade deve ser entendida como parte constituinte do ser humano uma vez que, tendo o referencial do Verbo encarnado, uma teologia que não se pretenda como capaz de intervir na realidade deixa escapar a dimensão do cuidado enquanto vocação humana e exercício de sua conformação ao Deus revelado por Jesus, modelo de compaixão e solidariedade com o próximo.
Por fim, Metz assinala o caráter de dinamicidade da solidariedade como elemento que perpassa a história, de forma a comprometer-se com a memória de sofrimento e, ao mesmo tempo, se põe no ritmo da esperança para o futuro.
A solidariedade ganha, portanto, contorno ético, tornando-se expressão da liberdade do ser-sujeito. Torna-se, além disso, importante chave de leitura do cristianismo que, no entender de Metz, deve ser o reflexo do rosto de um Deus comprometido com a dignidade do ser humano. À vista disso, a teologia fundamental prática proposta pelo teólogo tem na dinâmica da solidariedade a expressão máxima do comprometimento cristão, cuja ação e identidade reflete o próprio ser de Deus.
O genocídio ocorrido no fim do século XX, marca profundamente a história de Ruanda, pequeno país da região central do continente africano, conhecido como o país das mil colinas por causa do relevo acidentado de seu território. No entanto, é preciso salientar que as origens desse acontecimento remontam a pelo menos três décadas antes, quando da independência daquele povo em relação à Bélgica, que controlou a então colônia até 1962, e sustentou um regime monarquista local conduzido pela minoria tutsi, deposta do poder em 1959, a partir de uma revolta da maioria hutu que, anos depois, conduziu o processo de independência do país.
O massacre de Ruanda foi identificado como um genocídio a partir do reconhecimento de que ele aconteceu a partir de um plano meticulosamente arquitetado cuja intenção era aniquilar totalmente os rastros da presença tutsi no território ruandês, a partir de uma estrutura marcada “por três grandes frentes: a força coercitiva do Estado, o aparelho administrativo e a propaganda” (PINTO, 2012, p. 10). Esses elementos foram fundamentais para a mobilização da maioria hutu, como a incitação do ódio através dos veículos de comunicação, o mapeamento da localização de famílias, tutsis, a convocação e armamento de milícias, entre outros artifícios. Além do que, o evento ficou marcado também pela utilização do estupro como arma de guerra, num procedimento particularmente violento contra as mulheres.
[...] a violência sexual era uma ferramenta essencial para o genocídio. Esses eventos não eram nem espontâneos ou dispersos, mas sistemáticos. Eles serviam para manter a população Tutsi em terror e serviam como uma constante lembrança do estado totalmente rebaixado que os Tutsi agora ocupavam. (MULLINS, 2009, p. 26)
Essa experiência dramática foi determinante para o surgimento de uma nova literatura ruandesa, fundada sobre a necessidade dos sobreviventes em contar suas histórias e testemunhos diante dos horrores enfrentados não somente no ápice do conflito, mas ao longo do caminho percorrido desde o início das perseguições. Além disso, essa literatura emerge como forma de cultivar a memória das vítimas e a cultura do povo.
Nesse contexto é que a escritora Scholastique Mukasonga surgiu para o mundo da literatura em 2007, cerca de treze anos após os trágicos acontecimentos de Ruanda, apresentando o teor de sua literatura testemunhal. Dessa forma se pode perceber que suas obras nascem como expressão de uma dor compartilhada pelos sobreviventes desse genocídio, reconhecido como uma das maiores tragédias humanas do século XX.
Mukasonga nasceu em 1956, num território dividido pelos colonizadores belgas, que permaneceram naquela região até 1962, quando foi criada oficialmente a “República do Ruanda”. Um dos pontos culminantes desse processo colonizador foi a divisão do país em etnias, marcadas por diferenças anatômicas e no modo de trabalho: os Hutus – grupo majoritário, normalmente ocupados com o cultivo da terra; os Tutsis, pastores de rebanhos, cujos traços foram vistos como um pouco mais refinados, mais próximos do europeu; e os Twas - conhecidos como pigmeus, um povo de característica nômade. Essa divisão é o ponto de partida para os conflitos que o país passa a viver desde sua independência, quando a maioria hutu passa a dominar o campo político, promovendo um ambiente de revanchismo contra a minoria tutsi, que ocupou postos mais favoráveis durante o governo colonial. Nesse sentido, a criação de narrativas do colonizador e dos missionários cristãos com bases em interpretações bíblicas controversas:
Após a colonização, os europeus interpretaram a história de Ruanda em termos de raças, invasão e feudalismo. Foi o nascimento de um mito etnológico, amplamente difundido na literatura acadêmica e missionária, que criou uma divisão catastrófica. Os tutsis tornaram-se estranhos em seu próprio país, estrangeiros que era necessário caçar ou exterminar. Haveria “verdadeiros ruandeses” – hutus com direito à terra – e aqueles que não estão em casa, os tutsis. A criação belga de uma carteira de identidade étnica em 1931 selaria a divisão. (LUCAS, 2020, p. 8)
Esse tipo de narrativa resulta numa perseguição implacável aos tutsis, que é escalada a partir de 1959, quando parte dessa população é expulsa de seu território e obrigada a se exilar em Nyamata, região semidesértica que viria a se tornar um enorme campo de refugiados. Em sua obra sobre o genocídio, o jornalista e escritor Philip Gourevitch sublinha que esse exílio acontece em meio a uma extensa e organizada onda de violência provocada pelos líderes hutus, que organizavam a formação de milícias para facilitar o programa de perseguição que tinha em vista a eliminação total da etnia tutsi. (GOUREVITCH, 2006, p. 59)
Em Nyamata, Scholastique vive até a adolescência, quando é enviada pelos pais para o Burundi. Nesse país permaneceu até 1992, quando partiu para a França, de onde acompanhou de longe a escalada nos conflitos que chegaram ao trágico desfecho do genocídio, em 1994, episódio em que perdeu quase toda sua família.
A literatura entra na vida de Mukasonga anos depois do genocídio. A visita a Ruanda, ocorrida apenas dez anos após os trágicos eventos de 1994, é o ponto de partida para o desejo de reconstruir, através da escrita, o país que já não consegue reconhecer depois da aniquilação de sua família e comunidade: “Estou só em uma terra estranha onde ninguém mais me espera” (MUKASONGA, 2018, p. 177). O vazio da esperança de ao menos conseguir sepultar dignamente os seus gera a necessidade de dar rosto e voz para que se pudesse reconhecer sua historicidade e dar sentido a sua existência, além de trabalhar internamente o sentimento de culpa que experimenta como sobrevivente.
Escrevo em dois tempos. Houve o primeiro tempo, que era mais espontâneo, em que escrevia para mim, para o meu filho. Tinha pressa de salvar a memória porque estava ameaçada por mim mesma. Não sabia o que poderia acontecer de uma hora para outra. Não! Eu nunca me descontrolei ao ponto de me tornar completamente louca, de cair na loucura e de não ser mais capaz de reencontrar minhas lembranças, porque eu escrevia sobre o que foi vivido. Minha mãe salvava os filhos e eu, eu salvei a memória. Portanto, não havia um processo, joguei as palavras como elas me chegavam. (MUKASONGA, 2020, p. 222-223)
Vale destacar que Mukasonga afirma, em muitas ocasiões, que seus livros não lidam com o luto, porque ele é um processo natural e o que aconteceu em Ruanda foge à normalidade. No entanto, faz questão de lembrar que a escrita lhe permitiu fazer o caminho de conciliação com o seu passado. Conseguir “reviver o passado” é o que a faz continuar em pé e lutando, por meio da escrita, para garantir que essas pessoas sejam lembradas e, a partir dessa memória, seguir em frente. Dessa forma, suas obras tratam de questões duras como a violência e o luto. Porém, procuram enfatizar importantes elementos positivos, tais como: a solidariedade que permeia as estratégias de sobrevivência familiar e comunitária de seu povo; o papel decisivo das mulheres na preservação da vida e da cultura; a necessidade de humanização e historicização das vítimas. Desse modo, torna-se um potente testemunho sobre a capacidade humana de ressignificar suas relações em vista de um futuro de esperança.
Dentre as principais obras de Mukasonga, destaca-se a história relatada em A mulher dos pés descalços, livro dedicado à Stefânia, a mãe da escritora, que é também a personagem central da obra. A história, permeada de elementos ricos em significado, mescla situações reais com interpretações e interações da autora, que exerce o papel de narradora dos acontecimentos, nos quais muitas vezes está implicada e é participante ativa. O romance é composto por 10 capítulos, intitulados respectivamente: Salvar os filhos, As lágrimas da lua, A casa de Stefânia, O sorgo, Medicina, O pão, A beleza dos casamentos, O casamento de Antonie, O país das histórias e História de mulheres, que narram com profundidade o ominoso genocídio ruandês e temas como religiosidade, tradição e a luta das mulheres por sobrevivência.
Stefânia é uma mulher simples, analfabeta e que desconhece ou desconfia de muitos dos costumes ocidentais que foram impostos pelos colonizadores. Ao mesmo tempo, carrega consigo experiências culturais aprendidas de seus ancestrais e a necessidade de manter vivos os costumes que forjaram sua identidade. Nesse sentido, a história representa mais que a imagem perdida de uma mãe, mas a personificação da luta pela sobrevivência da família, da comunidade e da cultura. Assim, a mulher dos pés descalços simboliza a resiliência, os desafios e as lutas das mulheres ruandesas. Elas foram fundamentais para resguardar a memória de uma comunidade num contexto de perda da humanização e de uma violência particularmente cruel contra as genitoras da vida de novos ruandeses. Vale ressaltar que um dos aspectos mais aterradores da tentativa de apagamento da população tutsi se dá exatamente no modo como as mulheres são atacadas e no uso da violência física, moral e sexual como arma de guerra e tradução do ódio.
“Eles não miravam no coração, repetia minha mãe, e sim nos seios, somente nos seios. Eles queriam dizer a nós, mulheres tutsis: ‘Não deem vida a mais ninguém, pois, na verdade, se colocarem mais alguém no mundo, vocês vão acabar trazendo a morte. Vocês não são mais portadoras de vida, são portadoras de morte”. (MUKASONGA, 2017b, p.22)
Ao mesmo tempo, o título do livro remete também à religiosidade, marcada pelo sincretismo entre o cristianismo, religião oficial do estado ruandês, e as tradições antigas ligadas às manifestações religiosas anteriores à fé cristã, imposta pelo processo de colonização.
Já no início da obra, encontra-se o pedido da mãe às filhas. Stefânia fala da morte e dos costumes de sua cultura. Essa cena, carregada de dramaticidade inaugura a narrativa de uma história permeada de um sentido de resistência que passa pela necessidade de não se deixar perder os costumes que forjam sua identidade. Dessa forma, o livro inicia um caminho onde o leitor, mais que tragédias humanas, terá a possibilidade de mergulhar no coração de um povo, cuja trajetória, ainda que ameaçada pelo apagamento, permanece como ponto de convergência e identificação comunitária:
Quando eu morrer, quando vocês perceberem que eu morri, cubram o meu corpo, não se pode deixar ver o corpo de uma mãe. Vocês, que são minhas filhas, têm a obrigação de cobri-lo, cabe somente a vocês fazer isso. Ninguém pode ver o cadáver de uma mãe, senão ela vai perseguir vocês que são as filhas... ela vai atormentá-la até o dia em que a morte leve vocês também, até o dia em que vocês vão precisar de alguém para cobrir seus corpos. (MUKASONGA, 2017a, p. 12)
Na tradição ruandesa da etnia tutsi, os filhos aprendem desde criança à tarefa de cobrir o corpo de sua mãe com um pano, assim que receber a notícia de que ela morreu. Devem-se cobrir especialmente os seus pés. Caso esse rito não seja cumprido, sua alma não encontrará descanso e ficará vagando pela eternidade. No entanto, o genocídio impede que Mukasonga pudesse realizar essa tarefa[6], e, por isso mesmo, torna-se fundamental para a autora recriar espaços que possibilitem eternizar a memória materna, como síntese das memórias coletivas que tornaram possível a sobrevivência de seu povo.
A história descrita apresenta em primeiro lugar o papel de Stefânia junto a sua família, seguindo as tradições apreendidas de seus antepassados: ela é a provedora da vida cotidiana, cuidando dos alimentos e do fogo, a curandeira, que com seus remédios e unguentos cuida da saúde de todos, mas, sobretudo, a vigilante atenta que passa os dias a tecer estratégias de sobrevivência para os filhos, diante do risco eminente da morte, consciente de sua escolha de sacrificar-se pelos seus.
[...] nunca estava satisfeita com os seus planos de sobrevivência. Sempre ficava pensando em como melhorar a camuflagem, em como construir outros refúgios. Mas, no fundo, ela sabia que a única maneira de garantir nossa sobrevivência seria atravessar a fronteira e partir para o Burundi, como tantos tutsis já tinham feito. Contudo, ela nunca considerava esse exílio para si mesma. Nem meu pai nem minha mãe pensavam em se exilar. Acho que eles tinham escolhido morrer em Ruanda. Eles seriam mortos na sua terra; ali, eles se deixariam assassinar. Mas as crianças tinham de sobreviver. Minha mãe planejava, em caso de emergência, nossa fuga para o Burundi. Ela saía sozinha no meio do matagal para explorar as trilhas que levavam até a fronteira. Ela colocava balizas no trajeto, e nós devíamos, sem entender muito bem o porquê, seguir esse estranho jogo de caça ao tesouro. (MUKASONGA, 2017a, p. 15-16)
Outro ponto forte a se observar na narrativa é o comprometimento entre as famílias, sobretudo as mães da comunidade. Nesse contexto, a questão da sobrevivência não é particularizada, mas adensada em cada experiência que se torna parte do convívio dos exilados. Daí a necessidade de criar espaços de celebração e alegria mesmo no meio de tantos perigos: seja pelo nascimento de mais uma criança, pela conquista de alguém, pelo sucesso na produção da cerveja de sorgo (um acontecimento solene para toda a comunidade). Tudo, de alguma forma, precisa ser celebrado, porque o exílio não justifica a perda da identidade, mesmo em meio à miséria e à certeza de que não retornariam à condição de cidadãos plenos de seu país. Nyamata representa um caminho sem volta, e somente a solidariedade comunitária pode aplacar o peso da condenação ao exílio:
Durante muito tempo os desterrados esperaram o dia de voltar para casa, para “Ruanda”, como diziam. Mas depois das represálias sangrentas dos primeiros meses de 1963, eles perderam as ilusões. Por fim, compreenderam – e os militares de Gako estavam lá, caso precisassem se lembrar: eles nunca cruzariam de volta o rio Nyabarongo, nunca veriam outra vez as colinas de onde foram arrancados. Eles tinham sido condenados ao desterro eterno, nesse país de desgraça e exílio que Bugeresa sempre representara na história de Ruanda. Uma terra que, nos contos, ficava no fim do mundo habitado, onde segundo a tradição, despistavam os guerreiros vilãos, as moças desonradas e as esposas adúlteras, para que nunca encontrasse o caminho de volta para Ruanda. Na beira dos grandes pântanos, onde erravam os Espíritos dos mortos e onde, para tantos, a morte ficava à espreita. (MUKASONGA, 2017a, p. 30-31)
Nesse lugar de sofrimento Stefânia se torna exemplo de cuidado com a vida, sendo capaz de dividir os conhecimentos que acumula das histórias ancestrais. Dessa forma se torna referência de resistência às doenças e males que afligem a comunidade, principalmente as crianças, naturalmente mais fragilizadas. Assim ela é descrita por Mukasonga como:
[...] uma dessas curandeiras que consultamos em casos graves, com esperança e medo, mas, como a maioria dos ruandeses, ela conhecia muitos medicamentos que ela própria confeccionava e aplicava, conforme o caso, com convicção e, me parece, na maioria das vezes, com sucesso. Sua farmácia era feita de ervas, tubérculos, raízes, folhas de árvores da savana. Ela ensinava aos que queriam cultivar as plantas quais deveriam ser respeitadas e colhia, em seu jardim medicinal, as que usava para fazer os remédios. Como boa mãe de família, mamãe tinha todos os tipos de receitas para enfrentar doenças que, cedo ou tarde, atingiriam os seus. (MUKASONGA, 2017a, p. 59)
Além disso, a figura materna é também símbolo de uma liderança feminina que se impõe pela sabedoria, o cuidado e a acolhida. Frente ao ódio e a violência, representa o papel fundamental da mulher na reconfiguração da comunidade a partir de uma solidariedade que resiste à matança, dando alento e novo fôlego na luta pela sobrevivência. Assim, a partir de planos bem construídos, a humanidade retoma sentido quando a tradição é suplantada pela necessidade do cuidado.
Foi o estupro de Viviane que fez com que todas as mulheres passassem a questionar o comportamento que a tradição tinha imposto até então. Viviane era uma moça bem jovem, ainda adolescente. [...] Dessa vez, a solidariedade e a compaixão foram mais fortes do que o normal. Não relegaram Viviane e a família à quarentena que a tradição exigia. Stefânia e outras mulheres vieram cuidar das feridas, que cicatrizaram, mas logo perceberam que Viviane estava grávida. As mulheres do vilarejo não deixavam de dar à jovem conselhos e instruções. Ela deu à luz na casa da família. As matriarcas que eram chamadas para os partos ajudaram Viviane a pôr no mundo um bebê bonito, um menino. (MUKASONGA, 2017a, p. 151)
Desse processo de acolhida da vítima surge a semente da esperança que permeia a vida dos exilados. Nesse sentido, os pés descalços são símbolos da necessidade de refazer o caminho, resistir ao desânimo e ao medo, para que a comunidade viva.
Nem toda a água de Rwakibirizi e todas as nascentes de Ruanda teriam bastado para “lavar” as vítimas da vergonha pelas perversidades que sofreram. Nem toda a água seria suficiente para limpar os rumores que corriam dizendo que essas mulheres eram portadoras da morte e fazendo com que todas as rejeitassem. Contudo, foi nelas, nelas próprias e nos filhos nascidos do estupro que essas mulheres encontraram uma fonte viva de coragem e a força para sobreviver e desafiar o projeto dos seus assassinos. A Ruanda de hoje é o país das Mães coragem. (MUKASONGA, 2017a, p. 153-154)
O estupro foi uma das mais terríveis formas de destruição utilizadas ao longo da história dos conflitos internos de Ruanda. Esse método, não só significava a desumanização na relação entre hutus e tutsis, como também contribui de maneira significativa para espalhar o vírus H.I.V. nas comunidades, provocando estragos que ultrapassariam o período da guerra, deixando marcas para muitas gerações futuras. Além disso, a violação do corpo de uma mulher significava lançar o mal sobre ela e sua família. Dessa forma, o rompimento do costume de isolar a vítima da comunidade tem um significado profundo para as relações comunitárias. Mais que acolher a uma pessoa, significa demonstrar que nenhuma forma de violência seria maior que a fraternidade que une os exilados. Nesse sentido, a solidariedade com as vítimas se mostra na forma de uma profunda cumplicidade e compromisso de não deixar à margem os que mais sofrem, os que levam no corpo a marca da exclusão e da vergonha pela violência de que são reféns.
Nesse sentido, a solidariedade se manifesta numa multiplicidade de formas e sentidos, sem perder o que há de essencial: trata-se de resgatar o rosto e a humanidade das pessoas, conferindo-lhes identidade, formas, historicidade. Assim, cada um dos personagens se torna protagonista, num processo em que todo o grupo participa de uma fraternidade capaz de resistir ao mal que arrisca eliminar os vestígios de fraternidade que dão sentido à experiência da comunidade de exilados.
Embora num primeiro momento pareçam distantes, uma leitura mais atenta consegue perceber que há muitos elementos que aproximam tanto as histórias pessoais, quanto as concepções de Metz e Mukasonga. Nesse sentido, não somente a compreensão de solidariedade, mas o escopo dos elementos centrais que fundamentam suas obras parece se identificar em uma diversidade de questões.
De início, percebe-se que os dois escritores têm em comum a experiência de nascer e crescer numa realidade de conflitos e perigo à vida humana, e isso marca decisivamente suas formas de enxergar a vida. Metz tece sua reflexão teológica a partir do trágico acontecimento de Auschwitz, onde a humanidade parece encontrar sua face mais cruel. Dessa forma, procura trabalhar em suas obras o dado da história, compreendendo a memória como categoria fundamental para recuperar o ser sujeito da comunidade humana. A realidade de uma Europa assolada pela guerra e de um cristianismo que parece refém do risco da privatização dão impulso a uma reflexão que confronta o cristão e o ser humano desse tempo a repensar seu compromisso vital com o outro e o mundo. Já Mukasonga, sobrevivente do último grande genocídio do século XX, encontra na concepção de memória e narração um caminho não só de elaboração do luto, mas de resistência ao apagamento da história de seu povo, de sua família e de sua cultura. Nesse sentido, sua luta, expressa em palavras e ações, é para que a história dos seus não seja resumida à violência do conflito, mas também a seus tesouros culturais, suas conquistas e sua contribuição para a construção da identidade ruandesa. Trata-se de dar rosto e voz aos vencidos, vítimas de uma perseguição implacável e de um genocídio longamente arquitetado, que levou milhões à morte e produziu nos sobreviventes marcas inapagáveis de dor e trauma.
Nesse sentido, a solidariedade se torna um dos elementos fundamentais para aproximação entre os dois autores porque demonstra o quanto o projeto de ambos se inclina para uma reflexão profunda sobre o ser humano e seus desafios no processo de humanização que deve ser constante. Olhar para a história sem conceber nela a responsabilidade do ser humano seria como ler suas obras e não se deixar tocar pela realidade que desafia a identidade cristã.
Em sua busca por uma teologia capaz de dialogar com o mundo secular, Metz salienta a necessidade de recuperar o dado da memória como traço fundamental do cristianismo, que se realiza no compromisso com o Cristo cuja vida e morte dá sentido para a missão do discípulo e, portanto, de toda a igreja. Nesse contexto, a solidariedade se torna elemento distintivo da práxis cristã porque colabora com a recuperação do ser sujeito da humanidade.
Na literatura de Mukasonga, põe-se relevo fundamental na experiência de uma solidariedade concreta entre os vivos e com os mortos. A partir da concepção de Metz, poderia se falar da solidariedade para trás, voltada para os que ficaram à margem no processo de evolução da sociedade moderna. Na concepção de uma literatura da memória, a autora vivencia na prática o que o teólogo define em teoria: ao devolver a historicidade dos mortos, Mukasonga lhes confere novamente o ser sujeito, ou seja, faz justiça a sua existência e à participação de cada um na história maior de sua comunidade. Ao relembrar, por exemplo, dos momentos da família na casa de Nyamata, dos trabalhos diários, dos pequenos e cotidianos rituais de fé, cumpre a tarefa de demonstrar o quanto de vida perpassa por sua história, e o quanto sua própria existência está ligada à vida daqueles com quem compartilhou parte do seu tempo. Não se trata apenas de olhar para as figuras dos pais e irmãos com a lembrança saudosa de suas presenças, mas antes com uma profunda solidariedade em relação ao destino que lhes fora reservado. Como Metz, que marca seu posicionamento teológico a partir de Auschwitz, sobre o que jamais poderá ignorar ao longo de seu trajeto teológico, a escritora terá na vida dos seus sua própria condição de existir e ser. Daí que promove um ato de grande solidariedade, ao trazer para a história o rosto e a vida dos que a precederam.
Por fim, a solidariedade se entrelaça no pensamento dos dois autores como dever da memória, uma vez que explicita a necessidade de reinterpretar a história a partir da justiça para com as vítimas. Para isso faz-se necessário recuperar seus rostos e suas trajetórias, além de situá-las no tempo e no espaço ao qual pertenceram. Sem a historicidade, a encarnação da pessoa em seu contexto histórico, a luta contra o apagamento se torna inviável. Por isso, para Metz não basta falar do holocausto, mas é necessário o recorte histórico de Auschwitz, como para Mukasonga é importante tratar precisamente dos exilados de Nyamata, entre os quais encontram-se seus familiares. Essas delimitações cumprem o papel de demonstrar na escrita que esses lugares existiram, portanto, são exemplos concretos de que o horror de que tratam suas obras não está situado na esfera das abstrações, mas ainda existem e testemunham as situações experimentadas por seres humanos cujas histórias foram abreviadas. Assim, cada autor, a seu modo, ao mesmo tempo em que compartilha seu testemunho, interpela seu interlocutor a um compromisso solidário com a memória narrada.
Dentre os mais diversos desafios humanos e sociais da atualidade encontra-se a experiência de uma solidariedade prática e universalizante. Nesse sentido, a reflexão proposta por Metz permanece atual, na medida em que aponta a urgência desse tema em relação não somente aos acontecimentos do passado mais distante como também de situações mais recentes e menos exploradas no universo midiático. A proposta do teólogo abarca uma série de situações muitas vezes ignoradas, principalmente no que se refere aos mortos, para os quais a solidariedade se traduz como dever da memória, numa busca incessante pela justiça.
Dessa forma torna-se possível aproximar esse trabalho teológico da literatura testemunhal de Mukasonga, uma vez que os escritos dessa autora transparecem de forma cristalina a necessidade de reafirmar seu compromisso com as vítimas da violência da qual foi também testemunha. O Genocídio de Ruanda demonstra o risco do fracasso civilizatório de um mundo que não foi capaz de compreender a pergunta lançada em Auschwitz, apresentando um nível de crueldade tão grande que somente pode ser vencido por meio de uma profunda experiência de solidariedade, traduzida na luta pela justiça e no cultivo da memória cultural e identitária de todo um povo. Assim, a literatura que nasce da tragédia cumpre o nobre papel de reescrever a história, abarcando os que foram vencidos, e cujas história passaram pelo risco do apagamento, diante da violência extrema e da desfiguração do sentido de humanidade provocado pela manipulação da sociedade em nome de um projeto de destruição.
Tendo isso em vista, nota-se a importância da aproximação desse tipo de literatura com a teologia, uma vez que ambas se constituem como formas de questionar a realidade imposta, redesenhar as margens e devolver às vítimas sua humanidade e dignidade.
Referências
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MUKASONGA, Schoastique. Baratas. São Paulo: Nós, 2018.
MUKASONGA Scholastique. Nossa senhora do Nilo. São Paulo: Editora Nós, 2017.
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RIZZI, Armido. Teologia della Solidarietà, em RIZZI, A. e outros. Teologia e solidarietà. Torino: Ed. Gruppo Abele, 1993, 209-232.
SLOTERDIJK, Peter. Fazendo o céu falar: sobre teopoesia. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2004.
XHAUFFLAIRE, M. Introduzione alla “Teologia Politica” di Johann Baptist Metz. Brescia: Queriniana, 1974, p. 46.
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[1] Há na teologia de Metz uma constante preocupação com a questão da linguagem da teologia em relação ao tempo, compreendendo que “o discurso cristão sobre Deus precisa ser um discurso sensível ao tempo, que não só explica e ensina, mas também experimenta e aprende.” (METZ, 2013, p. 15).
[2] Refletindo sobre esse lugar de Deus no contexto de uma teologia política, afirma que “o discurso sobre Deus, é um discurso sobre a visão de uma promessa de grande justiça, mas que também repercute nos sofrimentos passados, ou é um discurso vazio e carente de promessas” (METZ, 2007, p. 18).
[3] O termo memória é substituído em algumas traduções como “recordação”. Considerou-se utilizar o primeiro termo por entender que possui um sentido mais abrangente para a língua portuguesa.
[4] Metz destaca também, no pensamento de Buber, uma correlação intrínseca entre narração e sacramento, a partir do caráter narrativo dos sacramentos. Para ele, o sinal sacramental pode ser caracterizado como ação verbal enquanto palavra atuante e efeito prático. Disto deriva a importância de se elaborar, de modo mais claro, a constituição narrativa básica da ação sacramental, que traz como consequência uma ação enquadrada em histórias da vida e de sofrimento a serem esclarecidas nelas como narração salvífica.
[5] Em Fé em história e sociedade, Metz acentua dois modos da solidariedade: 1) Solidariedade memorativa com os mortos e vencidos; 2) Solidariedade histórica, para frente (em direção ao futuro) e para trás (em sua dimensão de compromisso sócio-histórico com o passado).
[6] Sobre essa ausência em relação à tarefa atribuída pela mãe, Mukasonga reflete continuamente, como demonstra ainda no início: Os assassinos puderam ficar um bom tempo diante do cadáver mutilado pelos facões. As hienas e os cachorros, embriagados de sangue humano, alimentaram-se com a carne dela. Os pobres restos de minha mãe se perderam na pestilência da vala comum do genocídio, e talvez hoje, mas isso não saberia dizer, eles sejam apenas osso sobre osso e crânio sobre crânio (MUKASONGA, 2017a, p. 06-07)