Emerson Sbardelotti
Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor no Centro de Estudos CEBI. Contato: prof.poeta.emerson@gmail.com
A Carta do Santo Padre Francisco sobre o papel da Literatura na Educação, assinada em Roma, em São João de Latrão, no dia 17 de julho de 2024, décimo segundo ano do pontificado de Francisco; comunica uma série de ideias que o Papa Francisco possui sobre Literatura; e deseja que essas ideias sejam promovidas entre os seminaristas (público primeiro da Carta) durante sua formação. Sublinha o valor da leitura de romances e poemas no caminho do amadurecimento pessoal
O documento tem 13 páginas, 44 pontos. É uma Carta de tom poético, sem grandes construções teologais ou doutrinais, soando como recomendação pessoal do Papa Francisco, endereçada aos seminaristas, sacerdotes, agentes de pastoral (leigos e leigas?) e, qualquer cristão e cristã. Versa sobre a importância da leitura, do uso da Literatura no caminho de amadurecimento pessoal. Contudo, Francisco reclama da falta de atenção dada à Literatura pelos futuros e atuais sacerdotes, que movidos muitas vezes por fake news, não conseguem fazer desabrochar a riqueza da sua própria pessoa após lerem um livro.
A estrutura básica da Carta:
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Apresentação |
Fé e Cultura |
Nunca um Cristo sem carne |
Um grande bem |
Ouvir a voz de alguém |
Uma espécie de ginásio de discernimento |
Atenção e Digestão |
Ver através dos olhos dos outros
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O poder espiritual da Literatura |
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1 – 7 |
8 – 13 |
14 – 15 |
16 – 19 |
20 - 22 |
23 – 29 |
30 – 33 |
34 – 40 |
41 – 44 |
A Carta cita documentos escritos por Francisco, a Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo Gaudium et Spes, e os autores: R. Latourelle, R. Fisichella, A. Spadaro, K. Rahner, São João Paulo II, M. Proust, C.S. Lewis, J.L. Borges, São Paulo VI, T.S. Eliot, Santo Inácio de Loyola, M. De Certeau, J. Cocteau, J. Maritain e P. Celan. Nota-se a ausência de obras escritas por mulheres.
Na Apresentação: o Papa Francisco insiste na atenção que deva ser dada à Literatura pelos futuros sacerdotes, que muitas vezes a consideram como algo não essencial. Tal perspectiva não é boa e está na origem de uma forma de grave empobrecimento intelectual e espiritual, privando-os de um acesso privilegiado ao coração da cultura humana, ao coração do ser humano (n.4). Para Francisco: a Literatura tem a ver com o que cada um de nós deseja da vida, uma vez que entra numa relação íntima com a nossa existência concreta: tensões, desejos e significados (n.6).
Na seção Fé e Cultura: Francisco retoma o Vaticano II: a Literatura inspira-se na cotidinianidade vivida. A missão eclesial soube desenvolver-se toda a sua beleza graças à Literatura exprimindo toda riqueza e profundidade do Evangelho. O contato com diferentes estilos literários e gramaticais permitirá sempre aprofundar a polifonia da Revelação sem a empobrecer ou reduzir quer às próprias exigências históricas quer às próprias estruturas mentais (n. 10). Segundo Francisco é graças ao discernimento evangélico da cultura que é possível reconhecer a presença do Espírito na realidade humana. Cita o apóstolo Paulo e seu contato com a Literatura: o diálogo edifica pontes.
Na seção Nunca um Cristo sem carne: continua a preocupação de Francisco com a promoção da literatura no processo formativo dos seminaristas e uma urgente tarefa: anunciar o Evangelho no nosso tempo exige, dos fiéis e dos sacerdotes, o compromisso que permita a cada homem encontrar-se com um Jesus Cristo feito carne, feito homem, feito história. Todos devemos estar atentos para nunca perder de vista a “carne” de Jesus Cristo: aquela carne feita de paixões, emoções, sentimentos, histórias concretas, de mãos que tocam e curam, de olhares que libertam e encorajam, de hospitalidade, perdão, indignação, coragem, intrepidez; numa palavra, de amor (n.14). Faz lembrar uma outra frase de Francisco, com o mesmo sentido: “Quem acaricia os pobres, toca a carne de Cristo!”. Conclama a todos, todas nós a nunca perdermos de vista a carne de Jesus Cristo. Com isso, Francisco quer que o recurso assíduo à literatura torne os futuros sacerdotes e todos os agentes pastorais ainda mais sensíveis à plena humanidade do Senhor Jesus, na qual se derrama toda a sua divindade, e anunciar o Evangelho de tal modo que todos, possam experimentar o mistério do Verbo encarnado (n.15).
Na seção Um grande bem: o hábito de ler produz muitos efeitos positivos na vida de uma pessoa. Preparando-a para compreender e enfrentar as situações que surgem na vida. É preciso urgentemente redespertar o amor pela leitura!
Na seção Ouvir a voz de alguém: cita Jorge Luis Borges: "o mais importante é ler, entrar em contato direto com a Literatura, mergulhar no texto vivo que se tem diante de si, mais do que fixar-se em ideias e comentários críticos". Alerta para ouvir a voz de alguém! Não esqueçamos o quanto é perigoso deixar de ouvir a voz do outro que nos interpela! (n.20). Tocar o coração! Comover! Abrir-se! (n.21).
Na seção Uma espécie de ginásio do discernimento: cita Karl Rahner quando estabelece um paralelo entre o sacerdote e o poeta: “só a palavra é intimamente capaz de libertar tudo o que mantém encarceradas as realidades não expressas: a mudez da sua orientação para Deus” (n.25). O objetivo da vida: conduzir ao bem e à beleza! Ato de ler = Ato de discernir. O sujeito da leitura é objeto do que está lendo. E é lido pelas palavras que vai lendo (n.29).
Na seção Atenção e Digestão: Francisco reconhece que a literatura é como “telescópio” apontado para os seres e as coisas, indispensável para medir “a enorme distância” que o cotidiano abre entre a nossa percepção e o conjunto da experiência humana. A “utilidade” da literatura: “desenvolver” as imagens da vida, levar-nos a interrogar sobre o seu significado. Fazer a experiência da vida (n.30). Recomenda a necessidade de contrabalançar a inevitável aceleração e simplificação da vida cotidiana, tomando distância do imediato, reduzindo a velocidade, contemplando e escutando o que está ao redor quando se detém para ler um livro (n.31). A Literatura ajuda-nos a dizer a nossa presença no mundo, a “digeri-la” e a assimilá-la, captando o que vai para além da superfície da experiência; serve para interpretar a vida, discernindo significados e tensões fundamentais (n.33).
Na seção Ver através dos olhos dos outros: a Literatura nos faz ver através dos olhos das outras pessoas, produzindo em nós um descentramento, alargando a nossa humanidade, exprimir e transmitir a riqueza da experiência, aumentando nossa empatia, tolerância e compreensão. Nada do que é humano me é indiferente (n.37). A Literatura educa o seu olhar para a lentidão da compreensão, para a humildade da não simplificação, para a mansidão de não pretender controlar a realidade a condição humana através do julgamento (n.39). O leitor aceita o dever de julgar não como instrumento de domínio, mas como impulso para uma escuta incessante e como disponibilidade para se envolver nessa extraordinária riqueza da história (n.40).
Na seção O poder espiritual da Literatura: Francisco espera ter evidenciado o papel que a Literatura pode desempenhar na educação do coração e da mente do pastor ou futuro pastor, no sentido de um exercício livre e humilde da sua racionalidade, de um reconhecimento fecundo do pluralismo das linguagens, de um alargamento da sua sensibilidade humana e, finalmente, de uma grande abertura espiritual para escutar a Voz através de muitas vozes (n.41). É necessário quebrar os ídolos das linguagens autorreferenciais, que por vezes correm o risco de contaminar o nosso discurso eclesial, aprisionando a liberdade da Palavra (n.42). Francisco afirma que a afinidade entre o sacerdote e o poeta manifesta-se nesta misteriosa e indissolúvel união sacramental entre a Palavra divina e a palavra humana, dando vida a um ministério que se torna serviço cheio de escuta e compaixão, a um carisma que se traduz em responsabilidade, e a uma visão do verdadeiro e do bem que se abre como beleza (n.44).
A Carta de Francisco sobre o papel da Literatura vem carregada da profunda experiência pessoal do Bispo de Roma. Nas palavras de Antonio Spadaro esta certeza: “Jorge Mario Bergoglio é uma pessoa que vive a poesia e a expressão artística como parte integrante da sua espiritualidade e pastoral” (SPADARO, 2024, p. 1). E continua: “Para Bergoglio, literatura e arte são vida. E é por isso que hoje ele chega a defini-lo em termos inequívocos como “essencial” para a formação dos padres e daqueles que cuidam da pastoral das pessoas” (SPADARO, 2024, p.1).
Literatura é a arte verbal. Expressa-se por meio da palavra em contraste com os sinais visuais da pintura, da escultura, da música. A Literatura tem o poder de seduzir, de interpelar, provocando e revelando o mais profundo do ser humano. É um poder que se manifesta na capacidade que ela tem de penetrar nas entrelinhas da existência humana levando a pessoa a se interrogar, se descobrindo e abrindo novas possibilidades de se situar no mundo, na relação com os outros e com o próprio Deus.
A Carta é um convite amoroso à leitura de forma geral. Ler aumenta a criatividade, e automaticamente a própria escrita se torna criativa e diversificada. Num mundo onde o imediato é que comanda todas as ações, parar e tirar um tempo para a leitura de um livro, torna-se um verdadeiro oásis. Ler é um ofício. Um processo de crescimento.
Contudo, a Carta deixa-nos, em suas entrelinhas, tarefas inacabadas, ou a estratégia tenha sido essa mesma: o Papa Francisco precisou se debruçar para dizer o óbvio quando tudo o que disse na Carta já deveria ser regra de conduta e vivência. Em poucos trechos da Carta Francisco volta a aludir ao caráter interpretativo e de exercício de discernimento crítico, provavelmente, esteja acompanhando e vendo os poucos futuros sacerdotes que utilizam-se desse ofício para se tornarem seres humanos melhores. Parece fazer pouco sentido em um mundo no qual esse exercício de leitura, interpretação, analise crítica e reflexiva, está em queda.